Consultor Jurídico

Empréstimos compulsórios não são tributos, são empréstimos

26 de dezembro de 2022, 8h00

Por Fernando Facury Scaff

imprimir

Existem temas que são quase um tabu, em face da esmagadora concordância da doutrina e da jurisprudência sobre seu entendimento. Debater o assunto se torna mais exótico quando se verifica que não é objeto de aplicação prática há mais de 36 anos  que me lembre, foi em 1986 a última vez que foi aplicado no Brasil, durante o Plano Cruzado (Decreto-lei 2288/86), embora tenha havido certa discussão durante o Plano Collor, envolvendo o bloqueio de cruzados novos (Medida Provisória 168, de 15/03/90). O tema diz respeito aos empréstimos compulsórios, previstos no artigo 148 da Constituição de 1988, e que felizmente andam esquecidos pelo governo federal — espero que assim permaneçam.

Spacca
Essa introdução é apenas para dizer que cometerei a ousadia de discordar da esmagadora maioria da doutrina sobre o tema, arriscando-me a tomar umas pauladas doutrinárias dos amigos — mas assim é a vida. Não pretendo convencer a ninguém, apenas expor o assunto sob meu ponto de vista.

Não discutirei se a classificação das espécies tributárias é dupla (impostos e taxas), tripla (acrescendo as contribuições de melhoria), quadrupla (incluindo as contribuições), quíntupla (somando os empréstimos compulsórios) ou as diversas variações existentes, que tanto empolgam os colegas tributaristas. Vou me cingir apenas a discutir a natureza jurídica dos empréstimos compulsórios.

Como é conhecido por todos, os empréstimos compulsórios se caracterizam por serem um instituto pelo qual a União, através de lei complementar, estabelece uma cobrança compulsória, para atender a uma de duas finalidades específicas: 1) ou para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; 2) ou para investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional. Entendo não ter sido recepcionada pela CF/88 a hipótese prevista no CTN, artigo 15, III, associada à "conjuntura que exija absorção temporária de poder aquisitivo". Em qualquer dos casos, a aplicação desses recursos será sempre vinculada à despesa que fundamentou sua instituição.

Os empréstimos compulsórios, são, como o nome indica, empréstimos que o governo obtém dos contribuintes de forma compulsória, cujo valor necessariamente deve ser devolvido na forma que vier a ser estabelecida pela lei complementar que o instituir, sendo necessário que tal norma determine o prazo do empréstimo e as condições de seu resgate (CTN, artigo 15, parágrafo único). Parece óbvio que, sendo o empréstimo obtido pela União em dinheiro, deve ser pago também em dinheiro, corrigido e acrescido de juros.

Dito isso, deve-se dividir em dois momentos distintos essa operação de empréstimo, como é feito com qualquer outra semelhante: a débito e a crédito. Na instituição do empréstimo ocorre o débito sobre os contribuintes, sendo que surge ao mesmo tempo um crédito para estes, aguardando sua devolução/pagamento. Para o governo federal a operação é a mesma, com os sinais trocados, pois esta se encontra no outro polo da relação creditícia.

Aqui reside a sutileza da distinção que proponho: empréstimo compulsório não "é" tributo, mas, na operação a débito do contribuinte (e a crédito do Fisco), "se aplicam" as normas tributárias. Observem que uma coisa é dizer que algo "é"; outra coisa é dizer que tais ou quais normas "se aplicam" a esse algo  aqui reside a diferença que busco salientar: à operação de arrecadar empréstimos compulsórios se aplicam as normas de direito tributário, mas, em sua essência, empréstimos compulsórios não são tributos.

O atento leitor ou leitora certamente usará o artigo 4º do CTN para me contraditar, pois nele consta que "a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la 1) a denominação e demais características formais adotadas pela lei, e 2) a destinação legal do produto da sua arrecadação".

Tal argumento não altera em nada a exposição acima, pois a natureza jurídica dos empréstimos compulsórios é composta por duas partes, uma a débito e outra a crédito, e afirmo que "se aplicam" as regras de direito tributário à primeira parte dessa operação, a que retira dinheiro do contribuinte para o Fisco por empréstimo  afinal, não esqueçamos, trata-se de uma operação de empréstimo, embora compulsória. Logo, nessa primeira fase, em que o dinheiro sai do bolso do contribuinte em direção aos cofres públicos, "são aplicadas" as regras tributárias protetivas aos contribuintes. Todavia, na segunda fase, em que o dinheiro sairá dos cofres públicos, as regras aplicáveis serão outras, de direito financeiro.

É extremamente importante considerar que o instituto "empréstimo compulsório" é uno, embora constituído necessariamente de duas operações: a débito e a crédito. Jamais se poderá imaginar um empréstimo dessa natureza que apenas debite do contribuinte, sem estabelecer a forma pela qual ocorrerá sua devolução à crédito do mesmo contribuinte. Se a devolução não ocorrer, poderá o Fisco ser processado judicialmente para que realize o pagamento, ocasião em que o contribuinte se tornará credor do Fisco, e não seu devedor (ou seja, deixou de ser contribuinte, isto é, aquele indivíduo que contribui, mas se tornará credor do Fisco, o qual estará inadimplente).

Apenas para marcar a diferença: tributos acarretam operações apenas a débito para os contribuintes, jamais a crédito, porém, é da natureza jurídica dos empréstimos compulsórios a necessária existência de duas operações: a débito e a crédito, pois tais empréstimos não se caracterizam como receita pública, mas como ingressos que devem ser devolvidos e remunerados. Receita pública são os tributos.

Visando afastar mal-entendidos, reitero que a distinção que exponho é sutil, e não afasta nem um milímetro as garantias tributárias dos contribuintes que vierem a ser objeto de empréstimos compulsórios, mas contesta a natureza jurídica dessa operação complexa como sendo integralmente tributária, uma vez que é composta por partidas dobradas  a débito e a crédito.

Pode-se até dizer que a primeira parte da operação de empréstimo compulsório "é" tributo, mas isso cindirá o incindível, motivo pelo qual opto por afirmar que sobre essa primeira parte "aplicam-se" as normas de direito tributário, embora não sejam aplicadas na segunda parte, que obriga sua devolução. Cindir essa operação será dizer que o direito tributário não está no mundo, mas apenas em laboratórios que isolam os fenômenos jurídicos em partes que são dissecadas para caber em lâminas de microscópio  ocorre que o direito tributário faz parte do direito, e está no mundo.

Peço desculpas ao caro leitor ou leitora que acompanhou a exposição até aqui, pois, na verdade, o que se está discutindo nesta coluna é quase que o "sexo dos anjos" ou uma "ponta de lenço" doutrinária  mas é inegável que esta posição diverge da esmagadora maioria dos qualificados e queridos amigos doutrinadores desta matéria.