Indulto de natal de Bolsonaro pode abranger PMs envolvidos no massacre do Carandiru
23 de dezembro de 2022, 11h41
Em seu último indulto de natal, o presidente Jair Bolsonaro (PL) concedeu perdão a agentes de segurança condenados, mesmo que de forma provisória, por crimes cometidos há mais de 30 anos e que não eram considerados hediondos à época. Foi o primeiro indulto de natal de Bolsonaro que incluiu um artigo dessa natureza.
"Será concedido indulto natalino também aos agentes públicos que integram os órgãos de segurança pública de que trata o artigo 144 da Constituição e que, no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de 30 anos, contados da data de publicação deste decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática", diz o texto.
De acordo com promotores ouvidos pelo jornal Folha de S.Paulo, o indulto pode abranger os policiais militares envolvidos no massacre do Carandiru, que ocorreu em outubro de 1992 e, portanto, completou 30 anos em 2022. A defesa dos PMs, inclusive, informou à Folha que deve pedir o trancamento das ações contra eles com base no indulto.
Isso porque o crime de homicídio só passou a ser enquadrado como hediondo em 1994, após forte mobilização popular pelo assassinato da atriz Daniella Perez. Em 1992, quando houve o massacre do Carandiru, apenas estupro, latrocínio e extorsão mediante sequestro eram considerados crimes hediondos no Brasil.
111 mortos
Em 2 de outubro de 1992, presos do Pavilhão 9 do Carandiru, em São Paulo, iniciaram uma rebelião que foi contida de forma violenta por tropas da PM comandadas pelo coronel Ubiratan Guimarães, que assassinaram 111 detentos. O episódio foi parcialmente televisionado e teve destaque internacional.
A Justiça brasileira levou 17 anos para pronunciar os 116 policiais envolvidos — apenas em 2010 ficou definido que eles iriam ser julgados pelo júri popular. O caso passou brevemente pela Justiça Militar até ser encaminhado à Justiça Estadual, graças a conflito de competência julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
O primeiro a ser condenado foi o próprio coronel Ubiratan Magalhães, a pena de 632 anos em primeiro grau, em 2001. Por ser réu primário, pôde concorrer em liberdade. Em 2002, foi eleito deputado estadual por São Paulo. Concorreu com o número 14.111 — sendo 111 uma referência à quantidade de mortos no Carandiru.
Com isso, passou a ter foro especial, o que levou seu processo para o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde acabou absolvido. A corte entendeu que Ubiratan agiu em estrito cumprimento da ordem e em legítima defesa, tese que passou a ser defendida pelos demais réus. Ubiratan foi assassinado em 2006, dentro de casa.
Para os demais acusados, a disputa judicial ainda não terminou. Até o momento, 74 deles foram condenados em quatro júris a penas que variam entre 48 anos e 624 anos de prisão.
Em 2016, o TJ-SP chegou a anular todas as condenações por entender que os jurados decidiram contra a prova dos autos, já que não há elementos capazes de demonstrar quais foram os crimes cometidos por cada um dos agentes.
Em abril de 2018, o STJ mandou o TJ-SP julgar novamente os embargos de declaração apresentados pelo Ministério Público estadual no caso. E ainda em 2018, a corte paulista confirmou que os 74 policiais militares deveriam ser submetidos a novo júri popular.
Essa decisão foi reformada pelo Superior Tribunal de Justiça, que restabeleceu a condenação. Para a 5ª Turma, a impossibilidade de realizar perícia para saber qual policial militar atirou em qual preso é suficiente para amparar o julgamento da ação penal com base em outras provas nos autos.
O último recurso contra a condenação foi para o Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. Em agosto de 2022, ele negou seguimento aos recursos extraordinários, em decisão monocrática, que depois foi confirmada e transitou em julgado.
Assim, acabaram as possibilidades de questionamento judicial e o TJ-SP não tem mais alternativa a não ser discutir os desdobramentos da sentença, inclusive a pena e o regime de prisão que serão impostos aos policiais.
Em novembro de 2022, a 4ª Câmara Criminal do TJ-SP julgou um agravo interno, mas adiou o julgamento de duas apelações sobre o caso do massacre do Carandiru por pedido de vista do desembargador Edison Brandão.
O agravo foi rejeitado pela turma julgadora por unanimidade. A defesa pedia a suspensão do julgamento das apelações até decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito do Tema 1.087 ou até a superação da polarização política existente no país.
O julgamento do STF vai analisar se um tribunal de segunda instância pode determinar que seja feito um novo júri, caso a absolvição do réu tenha ocorrido com base em quesito genérico, por motivos como clemência, piedade ou compaixão, mas em contrariedade à prova dos autos.
É possível que toda essa discussão seja, ao fim e ao cabo, inócua. Isso porque a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou, em agosto, um projeto que anistia os envolvidos no episódio. O texto ainda será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça antes de ser levado a votação no Plenário.
Impacto cultural
É impossível, ainda hoje, afastar o impacto do massacre do Carandiru na sociedade brasileira. O episódio está ligado à fundação do Primeiro Comando da Capital, facção que surgiu nas penitenciárias paulistas para combater a opressão dentro do sistema criminal e, hoje, é uma das maiores organizações criminais do mundo.
A chacina foi retratada em livros, músicas e também no cinema. O filme Carandiru, de Hector Babenco, foi um enorme sucesso, multipremiado e que chegou a ser listado para concorrer a uma vaga pelo Oscar.
Inspirado no livro Estação Carandiru, de Dráuzio Varela, o filme foi lançado em 2003 e não agradou ao Coronel Ubiratan, que classificou-o de injusto, irresponsável e covarde. “Pergunto: se um dos jurados vir essas cenas e amanhã vier a julgar um daqueles homens que estavam comigo, ele já virá pré-concebido por ver a ação da Polícia Militar como violenta”, disse, à época.
A canção Diário de um detento, do grupo de rap Racionais MC's, retrata o massacre pela ótica de um preso. A música ficou em 52º lugar no ranking das 100 maiores canções brasileiras feito pela revista Rolling Stone.
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