Opinião

Relevância da questão de Direito Infraconstitucional e instrumentos semelhantes

Autor

  • Osmar Mendes Paixão Côrtes

    é advogado pós-doutor em Direito Processual pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB) e professor do doutorado e do mestrado do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP/DF).

20 de dezembro de 2022, 6h35

O Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário, da FGV (Fundação Getulio Vargas), realizou detalhado estudo sobre o novo filtro da relevância da questão de direito federal. A coordenação geral da pesquisa foi do ministro Luis Felipe Salomão, com a coordenação acadêmica de Caroline Tauk. Participei da pesquisa ao lado de Fernanda Bragança, Humberto Dalla, Mariana Devezas, Renata Braga, Rodrigo Cunha Mello Salomão e Teresa Arruda Alvim.

Entre outras questões, tratou-se, no estudo, da comparação entre a relevância e os instrumentos semelhantes da transcendência (TST) e da repercussão geral (STF).

A arguição de relevância, abolida pela Constituição da República de 1988, foi a primeira experiência que tivemos com filtros de recursos pelas cortes superiores. Posteriormente, em 2004, a Emenda Constitucional 45 instituiu a repercussão geral para o Supremo Tribunal Federal. E a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) regulou a transcendência no Tribunal Superior do Trabalho (já existente desde 2001).

Em 1975, o Regimento Interno do STF, no artigo 308, dispôs ser cabível o recurso extraordinário, a despeito das limitações estabelecidas, sempre que houvesse "ofensa à Constituição Federal ou relevância da questão federal".

Tratava-se de imposição de limites ao cabimento do recurso extraordinário que, à primeira vista, esvaziariam o seu conteúdo, mas que, ao contrário e em tese, aumentaram a sua importância, de fiscal da legislação federal constitucional e infraconstitucional.

Em 1977, foi alterada a redação do §1º do artigo 119, pela Emenda Constitucional nº 07/1977, ficando o Supremo autorizado a indicar, no regimento interno, as causas que, com base nas alíneas "a" e "d" do item III do artigo que então regulava o cabimento do recurso extraordinário, seriam julgadas, atendendo "à sua natureza, espécie, valor pecuniário ou relevância da questão federal".

Essa arguição, nos termos do Ristf, deveria ser feita em capítulo destacado da petição do recurso extraordinário e o seu exame era anterior ao do recurso. Funcionava como um pré-requisito de admissibilidade.

A questão federal era tida como relevante, nos termos do artigo 327 do Ristf [1], quando, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigisse a apreciação do recurso extraordinário. Era examinada em sessão do conselho, no Supremo , previamente ao recurso propriamente dito [2].

Essa arguição foi muito criticada pois, ao mesmo tempo em que autorizava uma filtragem de processos a serem apreciados, poderia levar à discricionariedade do STF.

 Abolido pela Constituição de 1988, instrumento (a princípio) semelhante à arguição, com a Emenda Constitucional 45, reapareceu com o nome de "repercussão geral".

Na verdade, não se tratou da volta da "arguição", porque há diferenças entre os dois instrumentos, mas de uma provável solução ao grande número de processos em tramitação perante o Supremo, que partiu dos mesmos princípios da "arguição".

Inicialmente idealizada e prevista como um filtro recursal, a repercussão passou (e hoje é) a ser o conteúdo do rito dos recursos repetitivos. Isto é, uma vez afetado um recurso para o nível repetitivo, o STF aplica a técnica de suspensão, comunicação, etc., e antes de definir o mérito, decide se a questão tem ou não repercussão geral.

Se não tem repercussão geral, todos os processos sobrestados são imediatamente indeferidos. Se tem, passa-se à análise do mérito (artigo 1035, §§8º e 9º, do CPC).

E, após a definição do precedente sobre a repercussão geral, não só os ministros do Tribunal podem aplicá-lo, mas os órgãos inferiores também (para indeferir o processamento de um recurso interposto para a Suprema Corte  artigo 1030, I, a, do CPC).

Então, pode-se afirmar — a repercussão geral evoluiu: de filtro individual para um instrumento importante no microssistema objetivo de demandas repetitivas, sendo, hoje, um mecanismo pluri-individual.

Por outro lado, a transcendência foi inserida na legislação processual trabalhista já em 2001, pela MP 2226, que incluiu o artigo 896-A à CLT, segundo o qual o "Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica".

O artigo não chegou a ser regulamentado até a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) incluir os parágrafos 1º a 6º. 

Não resta dúvida que o instrumento é uma forma de filtro para os recursos de revista no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, que, previamente ao exame dos requisitos de admissibilidade do recurso, apreciará se tem ou não transcendência a matéria em debate. A parte deve demonstrar que o tema tem transcendência de algum tipo. Deve haver argumentação nesse sentido.

O filtro é tipicamente individual. Não depende, para aplicação, da referência a decisão paradigma anterior e não produz efeitos para além do processo.

Cabe, então, a reflexão sobre qual filtro é mais eficaz até para saber qual o caminho ideal a ser seguido pelo novo instrumento da relevância da questão de direito federal.

A intenção imediata da relevância é reduzir o volume de processos em trâmite perante o STJ (Superior Tribunal de Justiça), racionalizando a prestação jurisdicional e trazendo segurança jurídica, cabendo saber se é mais eficaz que a Corte aproveite a experiência do STF com a repercussão geral, que hoje não é mais um simples filtro recursal individual (como ainda é a transcendência do recurso de revista trabalhista), mas integra o microssistema de demandas repetitivas, sendo um filtro pluri-individual.

A legislação em vigor consolidou o chamado microssistema de demandas repetitivas, o que guarda íntima relação com a mudança de paradigma iniciada já antes da atual legislação  do subjetivo para o objetivo [3].

Há muito se fala nessa mudança de paradigma. Os tribunais, notadamente os superiores, já sinalizam há um tempo que não pretendem continuar sendo cortes de varejo, mas, ao contrário, querem apreciar teses, leading cases, exercendo sua função nomofilácica de forma talvez mais pura e eficaz [4].

Prioriza-se a função de os tribunais firmarem teses e assim controlarem e preservarem a ordem jurídica, já que se viu que resolver todos os casos concretos com justiça é impossível.

Os julgamentos de casos repetitivos (e a repercussão geral, como visto, hoje está integrada à sistemática) bem ilustram essa modalidade de tutela, pois seleciona-se um caso representativo e aprecia-se a tese, que produz efeitos sobre inúmeros casos de jurisdição singular.

Definida a tese no caso afetado, todos os demais órgãos e juízes vinculados e hierarquicamente inferiores ao colegiado que decidiu deverão seguir a diretriz fixada, em casos presentes e futuros. E, no caso do STF, havendo a definição de que dada matéria não tem repercussão geral, a decisão produz efeitos sobre todos os recursos em tramitação, que serão indeferidos. Dentro desse microssistema, a repercussão geral ocupa papel central.

Como visto, inicialmente idealizada e prevista como um filtro de recurso  um instrumento individual, para ser utilizado com eventual barreira prévia de um caso pelo STF  a repercussão evoluiu, de filtro para um instrumento que integra o microssistema de demandas repetitivas, mais objetivo, que leva, de fato, a uma vinculação de entendimento em outros processos.

Tanto era um filtro individual que, pela Constituição, deveria ocorrer a análise da repercussão geral do recurso extraordinário só podendo haver a recusa do recurso se dois terços dos membros do tribunal decidissem pela sua ausência. Ou seja, a regra seria o exame dos recursos extraordinários. A não apreciação seria a exceção — maioria do colegiado deveria manifestar-se  no sentido de não ultrapassar a preliminar.

Hoje, a aplicação da repercussão geral pelo Supremo, alinhada e aperfeiçoada pelo atual CPC, confirma que, uma vez firmada a tese, há a delegação para a sua aplicação pelas instâncias inferiores, devendo, inclusive, os tribunais inferiores, ao exercerem o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários, indeferir o processamento dos que já tiverem a tese da repercussão geral negada pela Suprema Corte.

Ou seja, o Supremo firma a tese pela ocorrência (inocorrência) de repercussão geral e a aplicação dela passa a ser imposta aos demais órgãos do Poder Judiciário. A decisão originária sobre a repercussão é colegiada (ainda que virtual), mas a aplicação do paradigma firmado em repercussão é delegada e pode ser objeto inclusive de decisões monocráticas.

Tudo indica que a relevância da questão infraconstitucional do STJ siga o mesmo caminho (e não o da transcendência atualmente). E a própria proposta de regulamentação (anteprojeto de lei) elaborado recentemente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça deixa clara a intenção. Basta notar o acréscimo sugerido no artigo 1035-A do CPC, autorizando a suspensão nacional de todos os processos uma vez reconhecida a relevância. E também a autorização para que haja o indeferimento do recurso especial pela vice-presidência do Tribunal de segundo grau quando o STJ já tenha decidido pela não existência de relevância da matéria.

E parece acertado o caminho. Um filtro individual, como a transcendência, que pode ser aplicado monocraticamente independentemente da fixação prévia da tese pelo colegiado, e não produz efeitos sobre outros casos em tramitação ou futuros, pode passar a ideia de que é eficaz para reduzir o volume de processos em tramitação, mas, principalmente sob o enfoque da segurança jurídica, parece não ser o modelo ideal. Um filtro pluri-individual, como é a repercussão geral e será a relevância, impõe o tratamento isonômico dos casos — a decisão paradigma (sobre a existência ou não de repercussão e sobre o mérito) afetará outros tantos processos em tramitação.


[1] Com a redação dada pela Emenda Regimental nº 02/1985.

[2] Vale notar que a admissão da arguição de relevância não importava no necessário exame do recurso extraordinário. Tanto é assim que, se o recurso fosse denegado, mesmo se procedente a arguição de relevância, seria necessária a interposição de agravo de instrumento. Nesse sentido: STF, Agrag 146.435. Relator ministro Francisco Rezek. DJ, 26.09.1997. Segunda Turma. E, no sentido de que a arguição de relevância não é um meio de impugnação das decisões judiciais: STF, AgrRE 90.155. Primeira Turma. Relator ministro Xavier de Albuquerque. DJ, 11.12.1978.

[3] Em outra oportunidade, apreciamos o tema. Vide nosso A "objetivação" no processo civil: as características do processo objetivo no procedimento recursal in. REPRO 178, dezembro de 2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. pp. 220-226.

[4] Rodolfo de Camargo Mancuso anota que as Cortes Superiores têm o papel de preservar a ordem jurídica (nomofilácica), de fornecer parâmetros decisórios para os demais órgãos judiciais (paradigmática) e resolver com justiça o caso concreto (função dikelógica). MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes: natureza: eficácia:  operacionalidade. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 542.

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    é advogado, pós-doutor em Direito Processual pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB) e professor do doutorado e do mestrado do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP/DF).

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