Compensação ambiental pela legislação municipal de Mangaratiba (RJ)
20 de dezembro de 2022, 6h08
Os mais afetos às temáticas jurídico-ambientais estão habituados com inovações no ordenamento jurídico advindas deste ramo do Direito, e que desafiam à reflexão seus operadores, doutrinadores e também o poder judiciário.

Nessa esteira, tem-se a aqui intitulada "compensação ambiental pelo uso dos recursos naturais ou por impactos ambientais", identificada de forma pioneira no Código de Meio Ambiente do Município de Mangaratiba (RJ), Lei Municipal nº 1.209 de 6 de junho de 2019[1], e posteriormente replicada em outros municípios fluminenses[2]. É consignada nos seguintes dispositivos:
Art. 35. O solo somente poderá ser utilizado para destino final de resíduos poluentes de qualquer natureza se a sua disposição for feita de forma adequada, estabelecidos em projetos específicos, inclusive, de transporte, vedando-se a simples descarga ou depósito, seja em propriedade pública ou particular, conforme o disposto nas leis vigentes.
§ 1º. Toda e qualquer atividade que utilizar armazenamento de minério, material de escavação para beneficiamento ou não, no âmbito do município de Mangaratiba, no decorrer de suas atividades, deverão celebrar termo de medida compensatória e mitigadora com o órgão ambiental municipal, mensalmente enquanto durar suas atividades, sendo necessário que se comunique ao órgão ambiental o encerramento da atividade quando houver e apresentar o termo de encerramento do órgão ambiental licenciador
Art. 139. Toda e qualquer atividade que utilizar a influência marítima ou de qualquer recurso hídrico, além de solo, florestas e ar, no âmbito do município, no decorrer de suas atividades, deverão celebrar termo de medida compensatória e mitigadora com o órgão ambiental municipal, mensalmente enquanto durar suas atividades.
[…]
§2.o O presente artigo será regulamentado por Resolução do órgão ambiental municipal para os casos que couber, respeitando a valoração de que trata o parágrafo único do artigo 134 desta lei.
Em um primeiro momento pode ser confundida com a compensação ambiental prevista no artigo 36 da Lei 9.985/00 (Snuc). De um lado, algumas similitudes com esta, por analogia, lhe emprestam fundamento. Por outro, aquela se apresenta como instituto distinto, com contornos e alicerces específicos.
Ante o ineditismo no ordenamento jurídico, que já suscitou questionamentos judiciais ainda sob exame e sem julgamento de mérito em 1ª instância[3], entende-se oportuno elucidações sobre suas características e apontamentos, ainda que de forma breve e preliminar, sobre sua natureza jurídica e constitucionalidade, o que se faz à luz de precedentes do STF (Supremo Tribunal Federal).
No âmbito do licenciamento ambiental e através de avaliações de impacto, estes são identificados, mensurados e são propostas medidas preventivas e mitigadoras, que assumem caráter de essencialidade para respaldar a licença ambiental. Em alguns casos pode haver medidas compensatórias, decorrentes de impactos não mitigáveis e/ou de exigências complementares estabelecidas pela autoridade licenciadora.
Em adição, nos casos de significativo impacto, incide a “compensação ambiental”, cuja base normativa remonta às Resoluções do Conama 10/87 e 02/96 e que atualmente tem assento no artigo 36 da Lei 9.985/00.
Tal compensação não se confunde com a compensação mitigante do licenciamento ambiental. Lá, há uma correlação direta com os impactos específicos da atividade, identificados nos estudos ambientais e considerados nos programas delineados como condicionantes das licenças ambientais. Aqui, tem-se um instituto jurídico distinto, instrumento de internalização dos custos.
Ainda nessa mesma linha, tem-se a diferenciação com a compensação ecológica, decorrente de intervenções específicas, como compensação por supressão de vegetação.
Quando de sua instituição, a "compensação da Lei 9.985/00" se apresentou "inovadora" no ordenamento jurídico, gerando uma gama de discussões, especialmente no que tange à natureza jurídica e constitucionalidade. Foi objeto de análise pelo STF através da ADI 3378, proposta em 2004 e julgada em 2008. O acórdão restou assim ementado.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 36 E SEUS §§ 1º, 2º E 3º DA LEI Nº 9.985, DE 18 DE JULHO DE 2000. CONSTITUCIONALIDADE DA COMPENSAÇÃO DEVIDA PELA IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS DE SIGNIFICATIVO IMPACTO AMBIENTAL. INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL DO § 1º DO ART. 36. 1. O compartilhamento-compensação ambiental de que trata o art. 36 da Lei nº 9.985/2000 não ofende o princípio da legalidade, dado haver sido a própria lei que previu o modo de financiamento dos gastos com as unidades de conservação da natureza. De igual forma, não há violação ao princípio da separação dos Poderes, por não se tratar de delegação do Poder Legislativo para o Executivo impor deveres aos administrados. 2. Compete ao órgão licenciador fixar o quantum da compensação, de acordo com a compostura do impacto ambiental a ser dimensionado no relatório – EIA/RIMA. 3. O art. 36 da Lei nº 9.985/2000 densifica o princípio usuário-pagador, este a significar um mecanismo de assunção partilhada da responsabilidade social pelos custos ambientais derivados da atividade econômica. 4. Inexistente desrespeito ao postulado da razoabilidade. Compensação ambiental que se revela como instrumento adequado à defesa e preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações, não havendo outro meio eficaz para atingir essa finalidade constitucional. Medida amplamente compensada pelos benefícios que sempre resultam de um meio ambiente ecologicamente garantido em sua higidez. 5. Inconstitucionalidade da expressão "não pode ser inferior a meio por cento dos custos totais previstos para a implantação do empreendimento", no § 1º do art. 36 da Lei nº 9.985/2000. O valor da compensação-compartilhamento é de ser fixado proporcionalmente ao impacto ambiental, após estudo em que se assegurem o contraditório e a ampla defesa. Prescindibilidade da fixação de percentual sobre os custos do empreendimento 6. Ação parcialmente procedente. (ADI 3378, Relator(a): CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 09/04/2008, DJe-112 DIVULG 19-06-2008 PUBLIC 20-06-2008 EMENT VOL-02324-02 PP-00242 RTJ VOL-00206-03 PP-00993)
A despeito da natureza jurídica não ter sido diretamente enfrentada pelo STF, na ocasião, além confirmar sua constitucionalidade, consignou fundamentar-se em uma "densificação do o princípio usuário-pagador, este a significar um mecanismo de assunção partilhada da responsabilidade social pelos custos ambientais derivados da atividade econômica".
Inobstante ainda haver divergência doutrinária[4] sobre sua natureza jurídica, acentuada corrente a considera obrigação de cunho econômico decorrente do princípio do poluidor-pagador.[5]
É na esteira da compensação ambiental do Snuc que se arvoram as ponderações sobre a compensação ambiental prevista na legislação municipal, com suas peculiaridades. A tabela abaixo ilustra as principais características das duas compensações.
Como se denota, as compensações em questão têm característica distintas quanto à aplicabilidade, exigibilidade, mensuração e finalidade. Em relação aos dois últimos aspectos, cabem algumas ponderações.
A metodologia de mensuração, no caso da compensação da Lei 9.985/00, é delineada no Decreto Federal 6.848/09 e aprimorada em regulamentações. Na compensação municipal é endereçada à regulamentação pelo órgão ambiental municipal.
Ocorre que, no caso federal, tem-se uma compensação compartilhamento exclusivamente atrelada a "significativo impacto", aferido em estudos ambientais. Já no caso municipal, há também uma compensação compartilhamento pelo "uso dos recursos naturais", aspecto inédito e não mensurável nos estudos ambientais. Neste caso, não se trata apenas de impacto, mas também de uso. São premissas distintas.
De todo modo, é inegável que mensuração deve se calcar em metodologia explicita e razoável, não podendo o órgão ambiental definir o valor arbitrariamente.
Ante sensível e expressiva peculiaridade, atrelada à ausência de precedente metodológico quanto à mensuração de uso, entende-se, parafraseando o voto condutor da ADI 3378, que o órgão ambiental municipal, seja na definição de critérios, seja na sua aplicabilidade, "ao definir o valor do financiamento compartilhado, deverá agir sob o manto da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".
No que tange à finalidade, a compensação do artigo 36 do da Lei 9985/00[6], ao alocar recursos financeiros para o Snuc, visa torná-lo viável, não deixando-o à mercê apenas de dotações orçamentárias dos entes federados. A compensação municipal, ao atrelar sua finalidade à estruturação do órgão ambiental municipal e outras demandas locais, tem o escopo de não deixar a gestão ambiental municipal à mercê de dotações orçamentárias do município, quase sempre mais precárias em relação às dotações de outros entres federativos.
Aqui, mesmo guardadas as diferenças de finalidade, seguindo precedente da ADI 3378, não haveria transferência de responsabilidade pública para o privado ou afronta à razoabilidade. Isto porque, conforme trecho do voto condutor da referida ação, "não há outro meio eficaz de atingir essa finalidade constitucional [defesa e preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações] senão impondo ao empreendedor o dever de arcar, ao menos em parte, com os custos de prevenção, controle e reparação de impactos negativos ao meio ambiente". Cita-se.
[…] 16. […], tenho por descabida a invocação de desrespeito às coordenadas da razoabilidade. Primeiro, porque a compensação se revela como instrumento adequado ao fim visado pela Carta Magna: a defesa e a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Segundo, porque “não há outro meio eficaz de atingir essa finalidade constitucional senão impondo ao empreendedor o dever de arcar, ao menos em parte, com os custos de prevenção, controle e reparação de impactos negativos ao meio ambiente. Terceiro, porque o encargo financeiro imposto (a compensação ambiental) é amplamente compensado pelos benefícios que sempre resultam de um meio ambiente ecologicamente equilibrado em sua higidez. 17. Com esses fundamentos, voto pela improcedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade do art. 36 e seus § § 1º, 2º e 3º da Lei Federal 9.985/00 (grifos nossos).
Mais uma vez, em analogia ao voto condutor da ADI 3378, é possível inferir que as finalidades previstas na compensação municipal sejam benefícios que amplamente justifiquem e contrapesem os encargos financeiros.
Diante dessas particularidades e da inovação no ordenamento jurídico, cabem apontamentos sobre a constitucionalidade da compensação prevista na legislação municipal sob exame, sob o prisma da natureza jurídica e da competência legislativa municipal em mateira ambiental.
No que tange à natureza jurídica, cabe aqui uma analogia ao entendimento sobre a compensação ambiental do artigo 36 do Snuc na ADI 3378. Sem, naquela ocasião, embora não diretamente enfrentada diretamente pelo STF, restou consignado fundamentar-se em uma "densificação do princípio usuário pagador, aqui, ante as particularidades da compensação municipal em análise, especialmente quando fulcrada na “utilização dos recursos naturais”, estar-se-ia muito mais próximo e afeto ao princípio do usuário pagador, o qual lhe reportaria fundamento.
Já no que se refere à competência legislativa municipal em mateira ambiental, assentada na combinação entre os artigos 24, VI, VII e VIII e o 30, I, II da CF/88, embora o tema seja um terreno fértil para discussões, a autonomia do município, inclusive a possibilidade de legislações mais restritivas, vem sendo paulatinamente confirmada pelo STF.
Nesse sentido, cabe destacar que já em 2017, no ARE 748206 AgR/SC[7], a Segunda Turma do STF firmou entendimento no sentido de que "os municípios podem adotar legislação ambiental mais restritiva em relação aos Estados-Membros e à União. No entanto, é necessário que a norma tenha a devida motivação".
Desde então, a competência legislativa municipal em matéria ambiental foi novamente reafirmada em diferentes contextos pelo STF. A título de exemplo, citam-se a ADI 2142, RE 7297731 RE 1162774, RE 1162774, AI nº 799690 e ADPF 567[8].
Ainda nessa seara, recente posicionamento do STF no RE 654.833/AC[9], sob relatoria do Min. Alexandre de Moraes, reiterou o instituto das "externalidades negativas", assinalando caber ao empreendedor internalizar o custo social de suas atividades.
A tendência de reconhecimento da competência legislativa municipal em matéria ambiental somada a assunção dos princípios do poluidor pagador e usuário pagador em diferentes contextos pelo STF, em um primeiro momento, impulsionam a inclinação pela constitucionalidade da iniciativa municipal sob exame[10].
Dadas as limitações deste momento, finalizam-se os principais pontos que, sob nosso entendimento, careciam de elucidação preliminar. De todo modo, não se olvida ao fato de que, o "instituto novo" criado por lei municipal suscita análises mais aprofundadas e que contemplem outros vieses, o que aventa mais um desafio aos operadores e doutrinadores do Direito Ambiental, e também ao poder judiciário.
[1] Lei Municipal nº 1.209, de 6 de junho de 2019- Dispõe sobre o Código de Meio Ambiente do município de Mangaratiba, substitui a Lei n.º 325, de 23 de dezembro de 2001, e dá outras providências.
[2] A título de exemplo, tem-se o Município de Itaguaí com dispositivo análogo, esculpido na Lei Municipal nº 3.926 de 25 de março de 2021 – Dispõe sobre o Código de Meio Ambiente do município de Itaguaí, substitui a Lei n.º 2392/2003, e dá outras providências.
[3] Até o final desta análise tivemos apenas conhecimento de ações judicias em curso em primeira instância e sem decisão de mérito definitiva.
[4] Cf. BECHARA, Erika. Licenciamento e compensação ambiental na Lei do Sistema Nacional das Unidades de Conservação (SNUC). São Paulo: Atlas, 2009.
[5] FARIAS, T.; ATAÍDE, P. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA COMPENSAÇÃO AMBIENTAL DO ART. 36 DA LEI N. 9.985/2000. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí (SC), v. 26, n. 2, p. 545–562, 2021. DOI: 10.14210/nej.v26n2.p545-562. [https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/17751]. Acesso em: 7 dez 2022
[6] Atualmente, há também a possibilidade de implementação indireta para conversão da obrigação de fazer e em obrigação de pagar. Assim, com base em metodologias previamente definidas há mensuração do valor total devido. O depósito integral do valor apurado um fundo privado, administrado por instituição financeira oficial e posteriormente objeto de aplicação em projetos previamente selecionados pelos órgãos ambientais desonera o empreendedor da obrigação de fazer. m
[7] ARE 748206 AgR/SC, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 14.3.2017. (ARE-748206). Informativo STF n. 857. [https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo857.htm ]
[8] GIL, Luciana e DIAS, Patrícia Mendanha. O STF e a competência em matéria ambiental: cooperação ou competição. In JACCOUD, Cristiane, GIL, Luciana e MORAIS< Roberta Jardim. Direito Ambiental nos Tribunais Superiores: análise de julgados do STF – Vol.I. Ed. Thoth, Londrina, 2022.
[9] RE 654.833/AC, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. em 20.04.2020. [https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753077366]
[10] Adota-se aqui a expressão “em um primeiro momento, conferiria superação à dúvida quanto à constitucionalidade das iniciativas municipais sob exame” sob entendimento de que, diante dos precedentes do STF, uma eventual inconstitucionalidade deveria ser objeto de análise específica, o que até o momento não ocorreu. Sem prejuízo, não se descarta a possibilidade de que a questão seja formalmente apresentada ao Poder Judiciário e que este reconheça / declare eventual inconstitucionalidade para o caso em tela. Até que isso ocorra, presume-se que a norma municipal seja constitucional.
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