Opinião

Sindicalismo 4.0: novas formas de organização dos trabalhadores

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19 de dezembro de 2022, 7h09

Em tempos de aceleradas transformações políticas e tecnológicas [1], há um certo consenso sobre a necessidade de uma atualização — um "upgrade" — na organização e atuação das entidades sindicais. Para tanto, começa-se a esboçar discussões em torno do "sindicalismo 4.0", sendo este entendido como as organizações dos sindicatos dentro de um contexto de revolução industrial 4.0 (AGUIAR, 2022).

No entanto, ao tratar sobre novas formas de ação e organização sindical, uma perspectiva crítica impõe as seguintes perguntas: há uma quarta versão do sindicalismo diante das transformações tecnológicas? Qual a relação entre as revoluções industriais e as formas de estruturação sindical?

Os epítetos de "4.0", atualmente são muito utilizados para fazer referência à "novidades” oriundas da quarta fase das transformações tecnológicas (SCHWAB, 2016). Todavia, antes de se criar uma denominação para determinado fenômeno já conhecido, é necessário verificar se a criação deste novo termo se justifica pela existência de uma renovada configuração do referido fenômeno. Ou seja, convém avaliar o modismo de novas denominações segue apenas o objetivo comunicativo e de propaganda, embora não retrate um fenômeno efetivamente novo.

Diferentemente do quanto sugere o nome "sindicalismo 4.0", percebe-se que nas quatro revoluções industriais, o sindicalismo, no sistema capitalista, estrutura-se como uma organização que, busca práticas de construção de reconhecimento de classe, a organização coletiva dos trabalhadores, o diálogo e a negociação com polo patronal, fazendo uso da mais tradicional ação política dos trabalhadores: a paralisação coletiva.

Sem prejuízo desta crítica terminológica, é oportuno efetivamente pontuar em que medida os impactos das transformações tecnológicas afetam o sindicalismo e quais são as reformulações ou novas práticas estão em curso, inclusive com o apoio de instrumentos tecnológicos.

O advento de novas tecnologias impactam o "mundo do trabalho", repercutindo diretamente na experiência social e política dos trabalhadores (THOMPSON, 1998) sujeitos a esses experimentos do capital (GROHMANN, 2021). O processo de plataformização da economia implica em um tensionamento no modelo de acumulação do capital, através de uma racionalidade algorítmica do recrutamento e gestão do trabalho disperso na multidão, elementos importantes no que podemos chamar de "capitalismo de plataforma" (SRNICEK, 2018). Nesse cenário modifica-se a forma de organização, controle e gerenciamento do trabalho, através da inserção de renovados mecanismos de controle do trabalhador.

Assim, com o advento do controle por meio dos algoritmos, o trabalho que possuía um território fixo e definido passou a ser disperso, desterritorializado, datificado, gamificado e intensamente vigiado, o que gera novos desafios para a organização destes trabalhadores, para o engajamento nas pautas e mobilização (VALLE MUÑOZ, 2020). É importante destacar que apesar da noção de fragmentação e desterritorialização do trabalho, não significa que este não pode ser realizado em um território determinado. Manzano e Krein (2022) classificam o trabalho em plataformas digitais como online web-based e location-based, sendo o primeiro aqueles trabalhos obtidos e entregues por meio de uma plataforma digital e o segundo aquele obtido via plataforma porém, realizado em um território específico.

Desta forma, em que pese o trabalho ser obtido pela via da plataforma digital, os trabalhadores que atuam location-based desenvolvem suas atividades presencialmente. Assim, o exercício do trabalho em um determinado território possibilita espaços de solidariedade, bem como à criação de uma coletividade com interesses em comum, os quais se organizam para obter melhores condições de trabalho (MIRANDA BOTO; BRAMESHUBER, 2022). Neste caso, partindo do trabalho em plataformas digitais location-based, nota-se que apesar de existir um trabalho típico do capitalismo de plataforma, a organização ocorre a partir dos moldes tradicionais, com ações e organizações presenciais, como os sindicatos e as paralisações.

Trazendo a dimensão destas organizações para o Brasil, nota-se que o "Breque dos Apps" foi um conjunto de paralisações — meio tradicional de ação coletiva — fruto do exercício de auto-organização coletiva dos entregadores de plataformas digitais (DE CARVALHO; DOS SANTOS PEREIRA; SOBRINHO, 2020). Portanto, o Capitalismo de Plataforma, apesar de trazer novos desafios para organização sindical, como a dispersão, controle e necessidade de rompimento de barreiras para organização, conforme sinalizado por Feliciano e Aquino (2022), existe a manutenção de tradições na organização.

Todavia, o trabalho online-based, também denominado por Boto e Brameshuber (2022) como "crowdwork" ou offline enfrenta maiores desafios ligados à questão territorial: o isolamento das atividades leva à dificuldade para organização coletiva nos moldes tradicionais (MIRANDA BOTO; BRAMESHUBER, 2022). Desta forma, o que se percebe é que os trabalhadores em crowdwork online possuem uma maior dificuldade em constituir o diálogo social necessário para construir uma resposta coletiva à sua realidade (PESSOA; CARDOSO, 2022).

Em geral, até os dias de hoje, o que se nota do processo de organização coletiva é que os trabalhadores, ao reconhecer sua condição de assalariados e com identidade de interesses profissionais, se reúnem, decidem pautas, realizam negociações ou recorrem à greve. Como visto, mesmo nestas situações "novas" o padrão de ação sindical no capitalismo segue um roteiro similar.

Com isso não se quer dizer que inexiste a necessidade de atualização da ação sindical ou tampouco que, de fato, não houve a apropriação de inovações à luta coletiva, como a proliferação da comunicação em redes sociais, blogs e outros meios que não eram tão comuns, todavia, estas inovações ainda são limitadas para justificar a criação de um "sindicalismo 4.0".

Não há muitas dúvidas sobre a necessidade de atualizações ("upgrades") ou que usos tecnológicos são necessários nas formas de atuação sindical contemporânea, considerando, principalmente a crise na representatividade e os baixos índices de filiação [2]. Entretanto, as estruturas e modos de atuação do sindicalismo perduram no capitalismo, de modo que, em geral, o roteiro do sindicalismo segue o mesmo padrão, inclusive quanto aos velhos problemas de representação da categoria e liberdade sindical. Por isso, mais adequado do que falar "sindicalismo 4.0" é criar os mecanismos para que haja plena liberdade de atuação da organização dos trabalhadores, inclusive com o uso de recursos tecnológicos para a sua luta.

 


Referências

AGUIAR, Antonio Carlos. Sindicalismo 4.0: um quadro a ser pintado; uma poesia a ser escrita = Unionism 4.0: a picture to be painted; a poetry to be written. Revista de direito do trabalho e seguridade social, São Paulo, v. 48, n. 222, p. 175-200, mar./abr. 2022.

ARIAS, Cora Cecilia; DIANA MENENDEZ, Nicolas; HAIDAR, Julieta. ¿ Sindicalismo 4.0? La organización de trabajadores de plataformas en Argentina. Universidad Complutense de Madrid; Sociología del trabajo; 97; 2-2021; 59-69

CARVALHO, F. S. E.; DOS SANTOS PEREIRA, S.; SOBRINHO, G. S. #BrequeDosApps e a organização coletiva dos entregadores por aplicativo no Brasil. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, v. 3, 15 dez. 2020.

DELGADO, Maurício Godinho. Direito Coletivo do Trabalho. 7ª ed. rev., ampl. – São Paulo: LTr, 2017.

GROHMANN, Rafael. Os Laboratórios do trabalho Digital: entrevistas. 1ed. São Paulo: Boitempo, 2021.

IBGE. Características adicionais do mercado de trabalho 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101743_informativo.pdf. Acesso em 06 de novembro de 2022

MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho: relações individuais, sindicais e coletivas do trabalho. 12ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

MIRANDA BOTO, José María; BRAMESHUBER, Elisabeth. Collective Bargaining and the Gig Economy: A Traditional Tool for New Business Models. 2022.

PESSOA, Rodrigo Monteiro e CARDOSO, Jair Aparecido. Crowdwork e sindicalismo: desafios e propostas para a negociação coletiva 4.0. Direito internacional do trabalho e a organização internacional do trabalho : direito coletivo e sindical. Tradução. Curitiba, PR: Instituto Mem

SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro. 2016.

SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataforma. Trad. Aldo Giacometti. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Caja Negra, 2018.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa, volume I: a árvore da Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

VALLE MUÑOZ, Francisco Andrés. El difícil ejercicio de los derechos colectivos en el trabajo mediante plataformas digitales. Revista Internacional y Comparada de RELACIONES LABORALES Y DERECHO DEL EMPLEO, 2020.

WOODCOCK, Jamie; GRAHAM, Mark. Economia GIG: uma abordagem crítica. São Paulo, Editora SENAC, 2022

 


[1] O referido período é denominado de diferentes formas pelos estudiosos sobre o tema, sendo os termos mais utilizados: revolução 4.0 (SCHWAB, 2016), digitalização, gig economy (WOODCOCK; GRAHAM, 2022) e capitalismo de plataforma (SRNICEK, 2018)

[2] Conforme a Pnad Contínua do ano de 2019, 11,2% (10 567 mil pessoas) eram associadas a sindicato, o que aponta para uma redução de trabalhadores sindicalizados em relação a 2018 (IBGE, 2019)

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