O ano de 2022, no direito das relações de consumo, teve início com o debate sobre o polêmico DL nº 10.887/21[1], que
alterou o Decreto nº 2.181, de 20 de março de 1997, e que dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC). Entre outras diretrizes e em linhas gerais, o decreto trata do cálculo das multas, procedimentos para fiscalização e destaca que o compromisso de ajustamento pode prever obrigações de fazer ou compensatórias.
O decreto passou a incluir, por exemplo, a adesão do fornecedor à plataforma consumidor.gov.br como atenuante, além de destacar a taxatividade das agravantes. Ainda avulta a necessidade de observância da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da ação. Concernente à publicidade, o texto destaca que o órgão de proteção e defesa do consumidor deverá considerar as práticas de autorregulação adotadas pelo mercado, no caso, as regras do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).
Referido decreto foi muito criticado pelos Procons e por autoridades sob variados aspectos: ausência de consulta pública e de análise de impacto regulatório, violação do princípio federativo, exorbitância de poderes à Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor); aplicabilidade do Decreto apenas à Senacon, entre outros.
Respeitadas as críticas, posições contrárias e eventuais desvios do decreto, importante mencionar que, de alguma forma, nota-se uma tentativa de organização do sistema para, ao mesmo tempo, trazer maior clareza ao processo administrativo sancionador e evitar inúmeras penalidades pelo mesmo fato — e não apenas uma relação de subordinação. Até porque, o artigo 15 do Decreto não revela irrestrita obrigação ao dispor que "o processo referente ao fornecedor de produtos ou de serviços que tenha sido acionado em mais de um Estado pelo mesmo fato gerador de prática infrativa poderá ser remetido ao órgão coordenador do SNDC pela autoridade máxima do sistema estadual", respeitando a autonomia e prestigiando uma atuação coordenada e conjunta. No mais, é certo que a Senacon detém competência para a coordenação da política do SNDC, competindo-lhe executar a política nacional de proteção e defesa do consumidor.
Independentemente das críticas, da competência concorrente e do Princípio Federativo, é indiscutível que, diante da ausência de previsão de procedimento para aplicação de sanções no CDC, com mais de 1.000 Procons valendo-se atualmente de critérios e fórmulas distintas para aplicação de sanções e muitas vezes com entendimentos divergentes no que se refere ao direito material, tentativas de mitigar os gigantescos impactos desse problema por meio de uma imprescindível coordenação e harmonização normativa devam ser levadas em conta, o que não significa que não possam ser contestadas, visando o aperfeiçoamento do sistema.
No caso, é sabido que há Procons, inclusive, que ignoram os números dos próprios órgãos que compõem o Sistema Nacional e se utilizam de números e reclamações unilateralmente lançadas em plataformas de reclamação e que não respeitam contraditório e ampla defesa. Até porque não se prestam a averiguar se as reclamações são fundamentadas ou não.
Passando a outro tema debatido neste ano, a Senacon, em fevereiro, lançou o Programa de Responsabilidade Social e Inclusão (2022)[2].. A medida busca firmar um pacto para que as empresas avancem no cumprimento da legislação e cada vez mais busquem fazer ofertas acessíveis. De acordo com o Programa, a ideia é fomentar os fornecedores a buscarem atender todos os grupos, atentando-se às diversas deficiências, seja pelo meio físico ou digital, de forma a garantir o amplo acesso aos direitos, mas também a informação adequada sobre deveres. A postura é importante não só para garantir os direitos das PCD (Pessoas com Deficiência), mas, também, para o desenvolvimento de políticas que garantam uma adequada imagem reputacional e crescimento com base em iniciativas responsáveis.
Nota-se que a discussão da acessibilidade, resolutividade e eficiência no atendimento ao cliente estiveram bem presentes no ano, na medida em que a comunidade jurídica debruçou-se sobre a nova minuta do Decreto do SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor), sendo publicado sob o nº 11.034/2022, em 5/4/2022[3]. Tendo em vista que o DL n. 6.523/08 contava com quase 15 anos, diante de novas tecnologias, entendeu-se pela necessidade de um regulamento atual. Assim, após estudo realizado em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), inúmeros debates e audiência pública, em abril, o plenário do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC) aprovou a proposta de regulamentação do SAC, que passou a vigorar em outubro de 2022.
De acordo com o novo decreto, entre outras, por exemplo, há possibilidade do uso de diferentes canais de atendimento ao consumidor, como os atendimentos por telefone, por e-mail, por aplicativos, por uso de tecnologia multicanal. Ou seja, atendimento ininterrupto por qualquer canal de atendimento integrado, com a manutenção do atendimento telefônico não inferior a oito horas diárias. Há previsão, ainda, de que as empresas mais demandadas nos órgãos de proteção e defesa do consumidor deverão ser notificadas para a criação de canais de atendimento, por telefone ou e-mail, para uso direto e exclusivo dos Procons na busca da solução dos conflitos de consumo.
Não há como se falar no ano de 2022 no que se refere ao Direito das Relações de Consumo sem abordarmos a entrada em vigor, em julho, do Decreto Lei n. 11.150/2022[4]. Tal norma regulamentou "a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento em dívidas de consumo, nos termos do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor" e fixou a quantia mínima em 25% do salário-mínimo, o que atualmente corresponde a R$ 303. A inconstitucionalidade do Decreto é defendida por inúmeras entidades. Inclusive, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público — CONAMP ingressou com Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)[5], visando a declaração integral de inconstitucionalidade do decreto.
Ainda no mês de julho de 2022 foi publicada a Lei nº 14.390/2022[6], que prorroga até o fim de 2023 a possibilidade de remarcação de serviços e eventos culturais e de turismo adiados ou cancelados em virtude da pandemia de Covid-19.
Outro tema de relevo que impacta nas relações de consumo se refere à regulação da inteligência artificial no Brasil. O relatório final da comissão de juristas encarregada da proposta de regulação da matéria no Brasil foi entregue ao presidente do Senado, no dia 6/12/22. Certamente, o assunto será objeto de inúmeros debates em 2023. Ao ensejo desse ponto, não podemos deixar de mencionar o falecimento do professor Danilo Doneda que, além de integrar a comissão, é, por unanimidade, o principal responsável pela concretização da Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil, que trouxe indiscutíveis garantias ao consumidor, titular de dados. Esse artigo, não poderia deixar de homenageá-lo e aqui focam os registros de todo agradecimento à sua pessoa e obra.
Os temas não se esgotam por aqui. Também merecem destaque: a polêmica decisão da Senacon em relação à suspensão dos serviços de telemarketing ativo abusivo; a venda de celulares sem carregadores; a inconstitucionalidade de diversos dispositivos de leis estaduais e municipais (São Paulo[7], Rio de Janeiro[8]), invadindo a competência da União para legislar sobre normas gerais em matéria de consumo; a criação do selos "Empresa verificada"[9] e "Eficiência"[10], que trouxeram maior participação das empresas no âmbito do Procon São Paulo e, por consequência, na solução de conflitos; o lançamento da Cartilha do Superendividamento pelo CNJ; a publicação, em setembro de 2022, da Lei n. 14.454/2022[11], que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde para estabelecer critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar; e a imperiosa necessidade de se tratar do ESG na cadeia de consumo (incentivo a padrões de produção e consumo sustentáveis) o que, inclusive, consta como ação governamental da Política Nacional das Relações de Consumo, na minuta do PL 3.514/2015 a seguir abordado.
Referido PL que, dentre outras diretrizes, altera o Código de Defesa do Consumidor (CDC) para aperfeiçoar as disposições gerais sobre o comércio eletrônico, bem como muda a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro para aperfeiçoar a disciplina dos contratos internacionais comerciais e de consumo, além de dispor sobre as obrigações extracontratuais. Em síntese, o PL 3514/2015 visa trazer maior segurança jurídica às transações eletrônicas e de forma harmônica com a proteção do consumidor.
Encerramos o ano com a certeza de que o tema da uniformização dos critérios para fixação das multas, bem como a imperiosa necessidade de definição sobre faturamento e documentos que devem ser considerados para fins de cálculo da pena base pelos órgãos de proteção e defesa do consumidor, no que se refere à condição econômica do fornecedor, permanecem entre os assuntos mais comentados entre os profissionais da área. Sendo certo que tamanhas incertezas e judicialização em nada auxiliam a figura principal e vulnerável do debate, o consumidor. Com a mudança de governo e, por consequência, com a posse de novos dirigentes nos órgãos de proteção e defesa do consumidor, deseja-se que o que está por vir seja sempre a proteção do vulnerável, mediante a harmonização e equilíbrio da relação de consumo, como expressamente disposto no artigo 4º, do CDC.