Consultor Jurídico

Constitucionalismo feminista e a igualdade substancial de gênero

17 de dezembro de 2022, 8h00

Por Christine Peter da Silva

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Minha reflexão deste segundo semestre de 2022 às leitoras e leitores da coluna deste prestigiado Observatório da Jurisdição Constitucional jogará luzes para o tema da igualdade substancial de gênero, a primeira e mais importante premissa teórica do constitucionalismo feminista. E, para aprofundar o tema da igualdade substancial, serão considerados os aportes dogmáticos da teoria do impacto desproporcional, com especial atenção para as decisões do Supremo Tribunal Federal que mencionaram a referida teoria.

Para não perder a oportunidade de esclarecer a quem não conhece, o constitucionalismo feminista apresenta-se como uma teoria constitucional que oferece os conceitos e ferramentas jurídicas necessárias para a construção de um Estado Democrático de Direito que suporte uma Constituição que seja também, em sua essência, "de e para" mulheres.

O constitucionalismo feminista é guiado pelos pressupostos epistemológicos da isonomia e da inclusão, aptos a lidar com uma dogmática constitucional axiologicamente comprometida com o princípio da igualdade substancial de gênero, como respeito ao outro e ao diferente, bem como com uma metodologia que aproxima a mulher, em seu sentido mais amplo, do exercício pleno de sua cidadania constitucional.

O pressuposto é o de que o constitucionalismo, como epistemologia e teoria, deve poder refletir acerca da máxima efetividade dos direitos fundamentais de todas as cidadãs e cidadãos de pensar e ser o que quiserem, em todos os ambientes da sociedade, inclusive e, principalmente, nas cúpulas do poder, onde as decisões de grande repercussão social são tomadas e onde as mulheres, e outros cidadãos e cidadãs, que não correspondem ao padrão social dominante, ainda são invisíveis.

A dogmática, pelas lentes do constitucionalismo feminista, implica doutrina constitucional, normas constitucionais positivadas e jurisprudência constitucional comprometidas com a igualdade substancial de gênero, bem como com a concretização dos direitos fundamentais das mulheres. Os aportes doutrinários e as normas constitucionais que garantem direitos fundamentais para as mulheres e minorias de gênero, bem como os precedentes constitucionais do Supremo Tribunal Federal formam a tríade que evidencia a existência de uma dogmática constitucional feminista.

Registre-se, assim, que o principal objetivo do constitucionalismo feminista é aumentar as possibilidades de colaboração entre diversas visões e experiências vivenciadas tanto por homens quanto por mulheres engajadas e comprometidas com um Estado Democrático de Direito efetivamente inclusivo e plural.

Trata-se de um giro epistemológico, no qual são rejeitadas as pré-compreensões estáticas, porque a experiência mostra que o universo está em movimento e o direito não pode ser diferente. Nele, o respeito e consideração recíprocas passam a ser as condições de possibilidade de todas as formas de pensar e de agir, de ser e de estar no mundo, mundo este expandido para além do binarismo do sexo biológico: mulher e homem.

Dessa forma, parece bastante oportuno observar que a jurisprudência constitucional feminista do Supremo Tribunal Federal tem sido construída sob a influência da teoria do impacto desproporcional, o que se revela coerente com a concretização dos direitos fundamentais das mulheres e minorias, diretriz segura do constitucionalismo brasileiro inaugurado em 1988, especialmente a partir da norma insculpida no artigo 5º, I, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Sob a ótica de desigualdade enfrentada pelas mulheres, as lutas dos movimentos e debates feministas do final do século XX articularam-se em torno de duas estratégias distintas, mas em permanente coordenação: a busca por direitos iguais aos dos homens (igualdade formal) e a reivindicação por um tratamento jurídico que explore as diferenças entre homens e mulheres, ou entre o masculino e o feminino (igualdade substancial).

O direito à igualdade substancial de gênero advém da necessidade de se garantir a manutenção do direito à vida de todas as pessoas, pois é por falta do reconhecimento de igual respeito e consideração entre homens e mulheres que milhões de mulheres, cisgênero, transgênero, de todas as orientações sexuais, morrem anualmente no mundo.

Assim, o sentido de igualdade substancial que se está buscando construir ao defender o reconhecimento, o exercício e o gozo de direitos fundamentais das mulheres, em seu sentido mais amplo, é uma crítica direta à ideia de cidadania universal que, sob o pressuposto da abstração e imparcialidade, sempre tomou o homem e as características atribuídas ao masculino como ponto de referência para a sua construção.

Nesse contexto, importante associar a teoria do impacto desproporcional às premissas do constitucionalismo feminista. Por teoria do impacto desproporcional tem-se o reconhecimento de que as discriminações podem ocorrer de forma indireta, ou seja, implícita em uma situação aparentemente regulada de forma neutra, com o intuito de conferir direitos iguais universais. Todavia, diante de uma análise das situações concretas, verifica-se que a concretização da lei atinge de forma negativa certos grupos específicos, gerando uma inequívoca situação de impacto legislativo desproporcional.

E o Supremo Tribunal Federal tem sido sensível a essa teoria. Precedentes constitucionais brasileiros mencionam expressamente a teoria do impacto desproporcional, demonstrando que existe consciência da nossa Corte Suprema sobre a importância de serem investigados os efeitos concretos do reconhecimento de direitos e deveres fundamentais pelos legisladores, quando há impactos diferentes para mulheres e homens.

Na coleção de precedentes constitucionais feministas do Supremo Tribunal Federal, destacam-se dois precedentes, um do ano de 2021 e outro do ano de 2022, em que o impacto desproporcional da aplicação de legislação que concretizava direitos fundamentais das mulheres ficou bem registrado. Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.355, relator ministro Luiz Fux, j. 11/11/2021, e da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422, relator ministro Dias Toffoli, j. 6/6/2022.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.355, a discussão constitucional trazida ao Supremo Tribunal Federal dizia com a inconstitucionalidade, ou não, da restrição imposta pela Lei 11.440/2006 aos cônjuges de diplomatas, que também sendo servidores públicos, ficavam impedidos de exercer atividade profissional, em face de proibida licença para acompanhamento de cônjuge no exterior.

A decisão do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que "O artigo 69 da Lei 11.440/2006, ao subtrair de um dos cônjuges a possibilidade de coparticipação nas obrigações financeiras do lar, viola a igualdade nas relações familiares, o que perpetua a desigualdade social na distribuição dos papeis sociais entre homens e mulheres. Para que a escolha desse papel de abdicação de ambições profissionais para acompanhamento do cônjuge se traduza em exercício de liberdade, é necessário superar a dualidade da construção social, segundo a qual desejos, preferências, ações e escolhas são tão socialmente construídos quanto as condições externas que os restringem ou viabilizam".

O argumento principal do precedente constitucional referido foi o de que "(…) ao impedir o exercício provisório do servidor na licença para acompanhamento de cônjuges no exterior, o dispositivo sub examine atenta contra a proteção constitucional à família e hostiliza a participação feminina em cargos diplomáticos, ao lhe impor um custo social que ainda não recai sobre os homens em idêntica situação".

A Suprema Corte deixou claro que o princípio da igualdade não se exaure na abstenção de discriminar. Quando o preconceito é declarado e explícito, como reconhecido naquele caso, o dever de promover a igualdade material demanda interpretações ativas que rompam com o paradigma vigente.

Em tal decisão ficou expressamente posto que a "(…) discriminação indireta ou, mais especificamente, a disparate impact doctrine, desenvolvida na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos a partir do caso Griggs v. Duke Power Co., caracteriza-se pelo impacto desproporcional que a norma exerce sobre determinado grupo já estigmatizado e, portanto, seu efeito de acirramento de práticas discriminatórias, independentemente de um propósito discriminatório".

É caso relevante que demonstra que o Supremo Tribunal Federal está atento para a teoria do impacto desproporcional e sua importância para a concretização da igualdade substancial, especialmente em matéria de discriminação por gênero.

O mesmo para a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.422, em que se discutia a constitucionalidade, ou não, da incidência do imposto de renda sobre os valores percebidos a título de alimentos ou de pensões alimentícias oriundas do direito de família. O entendimento do Supremo Tribunal Federal, expresso na ementa do julgado, foi no sentido de que os alimentos ou pensão alimentícia advindos do direito de família não se configuram como renda, nem proventos de qualquer natureza do credor de alimentos, mas montante retirado dos acréscimos patrimoniais recebidos pelo alimentante para ser dado ao alimentado. O recebimento desses valores pelo alimentado não representa riqueza nova, estando, dessa forma, fora da hipótese de incidência do imposto de renda.

No que diz respeito à sensibilidade da Suprema Corte para a teoria do impacto desproporcional, registre-se a observação também colhida da ementa desse julgado: "(…) na maioria dos casos, após a dissolução do vínculo conjugal, a guarda dos filhos menores é concedida à mãe. A incidência do imposto de renda sobre pensão alimentícia acaba por afrontar a igualdade de gênero, visto que penaliza ainda mais as mulheres. Além de criar, assistir e educar os filhos, elas ainda devem arcar com ônus tributários dos valores recebidos a título de alimentos, os quais foram fixados justamente para atender às necessidades básicas da criança ou do adolescente".

Desse precedente sobre questão constitucional tributária, posta à análise do Supremo Tribunal Federal, pode-se afirmar que houve consciência, especialmente a partir de votos de alguns magistrados, sobre o anacronismo e a perspectiva antiisonômica da incidência do imposto de renda na referida hipótese. Colhe-se dos votos: "O anacronismo dessa incidência fica claro ao se ter em conta que, em 1935, a Suprema Corte dos Estados Unidos, em Douglas v. Willcuts [35], decidiu que os pagamentos feitos por um homem a sua ex-esposa, a título de pensão alimentícia, decorrem do dever de sustento, sendo, portanto, obrigatórios, de forma que não poderiam ser considerados renda e nem seriam passíveis de tributação quando por ela recebidos".

O impacto desproporcional ficou assentado ao se dizer expressamente que "(…) a tributação não pode ser um fator que aprofunde as desigualdades de gênero, colocando as mulheres em situação social e econômica pior do que a dos homens". E mais, consignou-se de forma expressa que era necessário conferir à discussão sobre o impacto da tributação sobre o gênero o seu inegável status constitucional.

Diante das muitas conclusões desse precedente antológico, vale memorizar seu registro conclusivo: "(…) a previsão da legislação acerca da incidência do imposto de renda sobre pensão alimentícia acaba por penalizar ainda mais as mulheres, que além de criar, assistir e educar os filhos, ainda devem arcar com ônus tributários dos valores recebidos a título de alimentos, os quais foram fixados justamente para atender às necessidades básicas da criança e do adolescente".

Chama a atenção, portanto, o fato de que precedentes que concretizam direitos fundamentais das mulheres perante a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, nas mais diversas áreas, utilizam-se da teoria do impacto desproporcional para fundamentar as decisões exaradas, prestigiando o olhar para a concretização da igualdade substancial de gênero entre nós.

Vê-se, portanto, que é imediata e direta a relação da premissa da igualdade substancial de gênero, primeiro e mais importante pilar dogmático do constitucionalismo feminista, com a teoria do impacto desproporcional, o que conduz à conclusão de que é preciso radicalizar o argumento da igualdade de gênero também utilizando-se o aporte teórico do impacto desproporcional, como uma lente da hermenêutica constitucional feminista entre nós.