Opinião

Apontamentos à figura típica do artigo 34, XXV e parágrafo único do EAOAB

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15 de dezembro de 2022, 15h15

Induzidos, talvez, pela redação imprecisa do dispositivo, muitos julgadores, no âmbito dos Tribunais de Ética da OAB, têm enquadrado as mais diversas condutas de advogados, tomadas por antiéticas, na disposição do inciso XXV, do artigo 34, do Estatuto da Advocacia da OAB, à guisa de "manter conduta incompatível com a advocacia", mormente para impor a pena mais grave de suspensão, quando a conduta não se enquadra no elenco do artigo 34, ou, nele estando, encontra-se num dos incisos de I a XVI, ou, ainda, quando se trata de violação a preceitos do Código de Ética, situações reconhecidas na Lei como condutas de menor potencial ofensivo, para as quais o EAOAB, na força de seu artigo 36, incisos I, II e III, prevê a aplicação da pena de censura. Trata-se de prática teratológica, a não mais merecer curso no controle disciplinar, como veremos.

É norma constitucional, firmada em Cláusula Pétrea da Carta Magna, que as condutas incriminadas e as respectivas sanções somente existem se estiverem expressas e previamente previstas na Lei (CF, artigo 5º, XXXIX). É a manifestação do Princípio da Reserva Legal, suporte essencial do Devido Processo Legal e do Estado de Direito, que impede a aplicação de punição a alguém sem que a conduta violadora (o fato), a hipótese (o tipo) e a pena (a sanção), estejam prévia e claramente descritas na Lei.

É certo que a Constituição, no dispositivo invocado, exige a tipificação legal no âmbito penal. Porém, não obstante a ausência de regra constitucional expressa, a aplicação do mesmo princípio na seara do Direito Administrativo Sancionador é uma possibilidade hermenêutica, segundo magistério de Fábio Medina Osório, ao situar sua aplicação dentro do conjunto de Direitos Fundamentais, escudado nos Princípios da Legalidade, da Segurança Jurídica e da Proporcionalidade, verbis:

"(…) Pode-se dizer, nesse passo, que o princípio da tipicidade das infrações administrativas, além de encontrar ressonância direta ou indireta nesse substancial conjunto de direitos fundamentais, decorre, ainda, genericamente, do princípio da legalidade fundamentadora do Estado de Direito, vale dizer, da garantia de que 'ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei' (artigo 5º, II, CF/88)". [Direito Administrativo Sancionador, 7ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 242].    

Calha registrar aqui, como a pôr luvas às mãos, a preciosa lição de Eduardo Garcia de Enterria e Tomás-Ramón Fernández:

"A tipicidade é, pois, a descrição legal de uma conduta específica à qual será vinculada uma sanção administrativa. A especificidade da conduta a tipificar decorre de uma dupla exigência: do princípio geral de liberdade, com base no qual se organiza todo o Estado de Direito, que impõe que as condutas sancionáveis sejam exceção a essa liberdade e, portanto, exatamente delimitadas, sem qualquer indeterminação (e delimitadas, além disso, pela representação democrática do povo pelas Leis…); e, em segundo lugar, a correlata exigência da segurança jurídica (…), que não se cumpriria se a descrição do que é passível de sanção não permitisse um grau de certeza suficiente para que os cidadãos possam prever as consequências dos seus atos (lex certa). Não cabem, pois, cláusulas gerais ou indeterminadas de infração, que 'permitiriam ao órgão sancionatório atuar com um excessivo arbítrio e não com o prudente e razoável que permitiria uma especificação normativa'", [Curso de Direito Administrativo, Vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 201].

Para Romeu Felipe Bacelar Filho "o princípio da reserva legal absoluta em matéria penal (artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal)  nullum crimen, nulla poena sine lege  estende-se ao direito administrativo sancionador" e, citando Rocha Dias, assenta:

"O sentido positivo do princípio da tipicidade 'significa que a previsão normativa das sanções e infrações deve assumir um grau mínimo de precisão de modo a permitir aos interessados mensurar o tipo de comportamentos sancionáveis e as punições a que estão sujeitos'. Por sua vez, o sentido negativo 'significa a proibição de normas incriminadoras em branco'". [Processo Administrativo Disciplinar, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 179].

Alinhando-se à aplicação dos Princípios da Reserva Legal e da Tipicidade às infrações e sanções administrativas e disciplinares, Mauro Roberto Gomes de Mattos noticia o forte acolhimento da tese no Judiciário brasileiro, na esteira do que tem decidido o Supremo Tribunal Federal [1] e o Superior Tribunal de Justiça, citando paradigmático julgado do STJ, relatado pela ministra Laurita Vaz, cujo teor nuclear merece retranscrito, verbis:

"ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. Infração administrativa tipificada no artigo 303, inciso LVI, da Lei nº 10.460/88. Ausência da elementar do tipo 'em serviço'. NULIDADE DO DECRETO DEMISSÓRIO. DIREITO LIQUIDO E CERTO. (…) 3. No campo do direito disciplinar, assim como ocorre na esfera penal, interpretações ampliativas ou analógicas não são, de espécie alguma admitidas, sob pena de incorrer-se em ofensa direta ao princípio da reserva legal. 4. Ressalte-se que a utilização de analogias ou de interpretações ampliativas, em matéria de punição disciplinar, longe de conferir ao administrado uma acusação transparente, pública, e legalmente justa, afronta o princípio da tipicidade, corolário do princípio da legalidade, segundo as máximas: nullum crimen nulla poena sine lege stricta e nullun crimen nulla poena sine lege certa, postura incompatível com o Estado democrático de Direito. 5. Recurso conhecido e parcialmente provido para anular a pena demissória aplicada ao Recorrente". [STJ-5ªT. ROMS nº 16.264/GO, relatora ministra Laurita Vaz, DJ de 02/05/2006, p. 336].     

No plano do direito positivo pátrio a integração da exigência de aplicação do Princípio da Tipicidade manifestou-se substancialmente no texto da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) (Lei nº 8. 429/1992), na esteira das alterações introduzidas pela Lei nº 14.230/2021 em diversos de seus dispositivos, nos quais se exige a individualização da conduta imputada (artigo 17, §6º, I); o dever de indicar "com precisão a tipificação do ato de improbidade" (artigo 17, §10-C); dever de fazer a correlação do ato imputado a um único tipo (artigo 17, § 10-D); e nulidade da sentença que condenar "por tipo diverso daquele definido na petição inicial" (artigo 17, §10-F, I).     

Extreme de dúvidas, pois, a exigência da tipicidade no âmbito do Direito Administrativo Disciplinar  corolário do Direito Sancionador  para aplicação de sanções e restrição de direitos.

É dizer, não se admitem os tipos demasiadamente abertos. É absolutamente necessário que a tipificação da conduta, na Lei, seja expressa, clara e objetiva, sem margem a generalidades e ambiguidades que possam, por sua vez, dar lugar a equívocos e subjetivismos, que desvirtuem a atividade de controle sancionatório.  

A apuração de condutas no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil, por sua vez, deve pautar-se simetricamente por este Princípio, quando se trata de impor restrição ao direito de alguém ou punição aos seus inscritos, seja em razão de sua natureza pública e de suas atividades, seja pela índole eminentemente pública e fundamental (CF, artigo 5º, XIII), dos direitos sobre os quais incidem tais restrições e punições.

Assim, o termo "conduta incompatível com a Advocacia", como expressão legal que serve de mote à severa punição de suspensão do exercício profissional, não pode ter alcance conceitual tão amplo a ponto de conferir tão larga faixa de arbítrio a quem está encarregado de julgar. É sabido, ademais, que na interpretação da lei há que se guardar especial reserva em relação aos conceitos demasiadamente amplos, que abarcam tudo e pelos quais tudo se pretende embasar, porém, exatamente por albergarem tudo, nada exprimem objetivamente.

Nesse passo, o preceito do artigo 34, Inciso XXV, do Eaoab, somente tem sentido jurídico de efetividade sancionatória quando lido junto com o Parágrafo Único do mesmo dispositivo. Diz a norma:

"Artigo 34. Constitui infração disciplinar:
(…)
XXV – manter conduta incompatível com a advocacia;
(…)
 Parágrafo Único. Inclui-se na conduta incompatível:
a) prática reiterada de jogo de azar, não autorizado por lei;
b) incontinência pública e escandalosa;
c) embriaguez ou toxicomania habituais."

Se, por um lado, o aberto e dúbio "inclui-se"  [ao invés do determinante e preciso "são"]  pode ser interpretado como se o elenco de atividades consideradas incompatíveis fosse mais amplo; o amplo "manter"  [ao invés do delimitado "praticar"] , por outro, sinaliza no sentido de conduta mais ou menos permanente, do cotidiano, de caráter pessoal, sem relação direta com o exercício da Advocacia, até porque as condutas puníveis por estritamente vinculadas ao exercício da profissão já estão previstas nos demais incisos do mesmo artigo e no Código de Ética, cuja existência o mesmo Estatuto ampara.  E todas elas são, natural e conceitualmente, a priori, incompatíveis com a Advocacia; desnecessário seria dizê-lo, mais de uma vez, no mesmo dispositivo. 

Portanto, no texto do Inciso XXV, do artigo 34, do EAOAB, a expressão "conduta incompatível com a Advocacia  exprime aquelas atitudes que, de índole pessoal e comportamental, cultivadas pelo Advogado no cotidiano, mesmo fora do âmbito estrito do exercício profissional  [porque as intrínsecas à condição de inscrito na Ordem já estão elencadas nos demais incisos e no CED]  o tornam indigno à vista da sociedade, porque lhe retiram a honorabilidade conferida pelo grau da nobre profissão.

Pode até haver outras condutas que se amoldem ao largo conceito "incompatível com a Advocacia", porém, juridicamente, só as expressamente elencadas no Parágrafo Único do artigo 34 integram o tipo legal disciplinar, do qual estão terminantemente excluídas, portanto, as albergadas nos demais incisos do dispositivo, que têm tipologia e apenamento distintos, claramente definidos.

Por outro lado, pelas mesmas razões jurídicas, não é licitamente possível invocar a disposição do referido Inciso XXV, à guisa da generalidade e deficiência do seu texto, para simular um acúmulo de infrações com vistas à promoção de artificial recrudescimento da reprimenda. Tal desiderato contraria frontalmente o preceito segundo o qual a cada infração corresponde uma sanção, que norteia as atividades sancionatórias, quer no âmbito penal, quer no administrativo-disciplinar, constituindo-se, por si só, em verdadeira afronta ao dever ético do julgador.    

Em conclusão, em face da redação do artigo 34, inciso XXV e Parágrafo Único, do Estatuto da Advocacia, e sob o pálio dos Princípios da Reserva Legal e da Tipicidade, somente são sindicáveis e puníveis à guisa de conduta incompatível com a Advocacia a "prática reiterada de jogo de azar, não autorizado por lei" (artigo 34, Parágrafo Único, alínea "a"); a "incontinência pública e escandalosa" (artigo 34, Parágrafo Único, alínea "b"); e a "embriaguez ou toxicomania habituais" (artigo 34, Parágrafo Único, alínea "c"). Nenhuma outra injunção de condutas fáticas se pode fazer, licita e legitimamente, à referida disposição sancionatória do EAOAB.

 


[1] Ainda admitindo a aplicação do Princípio da Reserva Legal na tipificação das infrações e sanções administrativas: STF. MS 28.033, relator ministro Marco Aurélio, J. 23/04/2014, DJE de 30/10/2014; e STF. MS 32.335-MC, relator ministro Celso de Mello, DJE de 08/10/2013.   

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