Separações forçadas e adoções prematuras pelo menorismo estrutural
12 de dezembro de 2022, 12h21
Recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, cassou determinação judicial de busca e apreensão de bebê, logo após o parto, e seu imediato encaminhamento à família habilitada no cadastro de pretendentes à adoção [1]. O colegiado reconheceu que a decisão de primeira instância foi proferida de modo precipitado e sem fundamentação idônea.

Nas últimas semanas, de fato, a mídia tem noticiado histórias de separação prematura entre mães e seus filhos, bem como o encaminhamento das crianças para adoção em desrespeito ao atual regramento previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no microssistema de promoção, proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
A Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, ciente dos fatos, chegou a realizar, em 31 de agosto, uma audiência pública em parceria com a Universidade Regional de Blumenau (Furb), que ganhou o nome "Vulnerabilidade social x destituição do poder familiar" [2]. Na ocasião, 11 mães que foram separadas de seus filhos por determinação judicial leram um manifesto reivindicando a reversão das decisões e o restabelecimento da guarda de seus filhos. Os especialistas presentes também pontuaram uma série de ilegalidades identificadas nos casos, como a inexistência de fundamento para as destituições do poder familiar e o acionamento precipitado do cadastro de adoção, em prejuízo às próprias crianças e adolescentes.
Como bem pontuou a ministra Nancy Andrighi, é preocupante a atuação das Varas da Infância e Juventude em Santa Catarina. Todavia, é necessário reconhecer que centenas de casos idênticos ocorrem diuturnamente não apenas em Santa Catarina, mas em todos os estados do Brasil.
Em junho de 2014, por exemplo, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais dirigiu recomendações às maternidades públicas solicitando que as gestações e os partos de todas as mulheres que tivessem algum padrão de consumo substâncias psicoativas fossem imediatamente noticiados à Vara da Infância e Juventude de Belo Horizonte [3].
Os fatos impulsionaram a realização de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em 21/05/2015, onde se reconheceu que as recomendações do Ministério Público ferem os direitos fundamentais da mulher à maternidade e os direitos do bebê ao convívio com a mãe e com sua família. Além disso, pontuou-se que as separações ocorrem exclusivamente em hospitais públicos, o que levaria a uma discriminação contra mães pobres e em situação de maior vulnerabilidade [4].
Também no estado de São Paulo os fatos se repetem. De acordo com o relatório de pesquisa intitulado "Primeira infância e Maternidade nas ruas da cidade de São Paulo", elaborado pela Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, dezenas de mulheres em situação de rua foram separadas de seus filhos por serem consideradas inaptas ao exercício da maternagem [5].
Nesse contexto, a reflexão que se impõe é: por que, passados mais de 30 anos de vigência do ECA, ainda crianças e adolescentes são tratados sistematicamente como coisas e separados de forma ilegal e abrupta da convivência com suas famílias?
A hipótese mais aceita pela doutrina brasileira sustenta que o descumprimento das normas jurídicas, nesses casos, pode ser explicado pela existência de uma cultura menorista (ou até neomenorista), construída e reforçada historicamente, por força da qual agentes estatais – e as pessoas em geral — balizariam suas condutas, ainda que inconscientemente, tomando como parâmetro os já revogados Códigos de Menores de 1927 e 1979 — que, de fato, possibilitavam separações forçadas e adoções prematuras —, apesar do novo paradigma sociojurídico instaurado pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Esse é, por exemplo, o entendimento bastante difundido do jurista argentino Emilio García Méndez, que denuncia uma "dupla crise" do Estatuto: de implementação e de interpretação, sendo a primeira relacionada à qualidade (precarização) e quantidade (insuficiência) de políticas públicas sociais e a segunda relacionada a um problema de cultura jurídica e à "inércia de seguir operando um instrumento garantista com a discricionaridade própria do paradigma tutelar" [6].
Sucede que, como bem destaca a historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense Virgínia Fontes, "não se pode explicar a persistência de um fenômeno unicamente através de sua durabilidade, mas do conjunto de relações sociais que o reengendra, modificando-o para, contraditoriamente, reproduzi-lo" [7].
Surge, por conseguinte, a necessidade de se compreender a verdadeira raiz desse fenômeno de instrumentalização de crianças e adolescentes — aqui chamado de menorismo — em sua manifestação estrutural. Mas, em última instância, o que significa dizer que algo (uma violência, um modo específico de discriminação ou um fator de opressão) é estrutural?
Pode-se dizer que é estrutural uma determinada forma de relação social que está inexoravelmente atrelada ao modo de organização, produção e reprodução de uma sociedade, e que opera independentemente da vontade dos indivíduos. Em outras palavras, a reprodução social, ou seja, a repetição das relações travadas entre os seres sociais é condicionada por uma série de determinações mais amplas que as orientam e constituem a própria subjetividade das pessoas [8
Pergunta-se, então: e o que isso tem a ver com a separação entre mulheres subalternizadas e seus filhos e filhas? Pois bem. Pode-se dizer que o menorismo, em sua dimensão estrutural, contribui diretamente para a reprodução estável das relações sociais de exploração, opressão e subalternização (necessárias ao modo de produção capitalista) ao viabilizar o controle e condicionamento das famílias (sobretudo daquelas que dependem da venda de sua própria força de trabalho) por meio de instrumentos e estratégias de validação social de formas legítimas de cuidado, proteção e educação de seus filhos e filhas.
Por força do menorismo estrutural classificam-se práticas consideradas "corretas e adequadas" de cuidado e práticas que (supostamente) atentam contra o desenvolvimento dos pequenos, dada a oposição ao modelo normativo.
Se por um lado é verdade que o modelo normativo conta com substrato científico (teórico e empírico) válido, também é verdade que, muitas vezes, desconsidera alternativas igualmente adequadas e possíveis, baseadas em conhecimentos construídos localmente, nas próprias relações comunitárias, repetidos por décadas e décadas.
Quando as práticas de cuidado e proteção se dissociam do modelo normativo, abre-se margem para que o Estado livremente intervenha na vida das famílias, inclusive retirando crianças e adolescentes de suas casas e os colocando em instituições. Ao mesmo tempo, os agentes públicos estabelecem uma série de imposições que devem ser cumpridas pelos pais, mães, tios e avós como condição para a reunificação familiar — quase como um "preço do resgate".
Outro ponto importante para se compreender o caráter histórico do menorismo é que ele persistiu ao longo da história do Brasil e por todo território nacional, sobretudo após a colonização portuguesa, apresentando-se como instrumento extremamente útil para a reprodução dos mais diversos modelos de sociabilidade [9].
Note-se que o menorismo não se resume a um sistema jurídico ou a uma específica forma de interpretar o direito; ele conjuga normas jurídicas de baixa densidade semântica — que, por conseguinte, possibilitam as mais diversas interpretações arbitrárias e discricionárias — a arranjos institucionais (a exemplo do acesso a políticas públicas garantidoras de bens sociais básicos condicionado a determinados comportamentos) que fomentam a reprodução das relações sociais necessárias à sustentação de um modo de produção da vida pautado pela desigualdade de classes, pela exploração de grupos marginalizados, pela racialização e subjugação da população negra e pela opressão de gênero.
A importância de se compreender o caráter estrutural das violências e discriminações sistemáticas dirigidas contra grupos populacionais reside em três principais aspectos.
Em primeiro lugar, é a partir da compreensão estrutural que conseguimos identificar a interconexão entre as diversas determinações que operam na totalidade social e, com isso, compreender o modo pelo qual existem e continuam se reproduzindo as relações de subalternização. Em segundo lugar, esclarece que as diversas formas de opressão não estão situadas em apenas um ou outro território particular de uma mesma sociedade, mas na sociedade como um todo, pois decorre do modo como organiza a sua produção e reprodução. Por fim, ao oferecer um diagnóstico completo dos fenômenos, possibilita a construção de estratégias e táticas de luta para sua definitiva superação.
Abre-se, então, a viabilidade da construção de uma proposta de interpretação dos direitos de crianças e adolescentes que possa ser, ao mesmo tempo, insurgente e antimenorista, com o objetivo de combater as violações narradas no início deste artigo.
O caráter insurgente da proposta hermenêutica parte do pressuposto de que o direito, por si só, não tem aptidão para gerar transformações sociais efetivas em favor das populações subalternizadas, mas, ao mesmo tempo, não pode ser meramente descartado como uma ferramenta política em favor dessas mesmas populações. Sustenta-se, portanto, um uso tático do direito [10], desde que aliado a um projeto político que mire a superação do próprio modo de organização social que produz violências e desigualdades.
Uma visão insurgente e antimenorista do direito reconhece possibilidades interpretativas multidisciplinares que contemplem a totalidade das relações sociais como forma de contextualização do conflito de interesses e viabiliza respostas jurídicas alinhadas aos (sistematicamente vilipendiados) objetivos da República, como o combate à pobreza, a redução das desigualdades e a proibição de quaisquer formas de discriminação.
Retomando o julgamento mencionado no início deste artigo, podemos concluir ao menos duas coisas. Primeiro, que a preocupação apontada pelo STJ quanto às violações praticadas no estado de Santa Catarina deve ser estendida a todo o Brasil, pois estão intimamente relacionadas às consequências de um menorismo estrutural e estruturante da sociabilidade brasileira.
Em segundo lugar, que para combater as diferentes manifestações do menorismo, devemos reivindicar, ao lado da luta política e social, uma hermenêutica jurídica insurgente e antimenorista, que (1) reconheça a repetição histórica das separações familiares prematuras e adoções forçadas (sobretudo de filhos e filhas das populações empobrecidas) como topoi do processo interpretativo e (2) garanta repostas jurídicas afirmativas que fomentem ao máximo o fortalecimento da autonomia das famílias subalternizadas, respeitem suam culturas e tradições, e possam contribuir para o fim de séculos de violência contra crianças e adolescentes.
FONTES, Virgínia. Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história, 2ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010
FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História social da infância no Brasil, 9ª ed. São Paulo: Cortez. 2016
MENDEZ, Emílio Garcia. A defesa legal e a legitimidade dos sistemas de administração da justiça para a infância e juventude. Trad. Giancarlo Silkunas Vay et al. Boletim de Direitos da Criança e do Adolescente, n São Paulo, nº 8, p. 6-10, set/out 2020
RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. O Século Perdido: Raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil, 3ª ed., São Paulo: Cortez, 2018
______; PILOTTI, Francisco. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez. 2011
RUAS, Rhaysa. Teoria da Reprodução Social: apontamentos para uma perspectiva unitária das relações sociais capitalistas. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 379-415, 2020
STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014
[1] STJ, HC 776.461, 3ª Turma, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, j. 29/12/22
[2] BERNARDES, Kamile. Como foi a audiência pública provocada por luta de mães pela guarda dos filhos em Blumenau. O Município de Blumenau. Edição de 31/8/2022. Disponível em https://omunicipioblumenau.com.br/video-como-foi-audiencia-publica-provocada-por-luta-de-maes-pela-guarda-dos-filhos-em-blumenau/. Acesso em 1/12/22
[3] HAJE, Lara. Retirada de bebês de mães usuárias de drogas é denunciada em comissão. Edição de 05/09/2017. Câmara dos Deputados. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/522159-retirada-de-bebes-de-maes-usuarias-de-drogas-e-denunciada-em-comissao/. Acesso em 1/12/22.
[4] BEBÊS são precocemente tirados de suas famílias. Edição de 29/1/2015. Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Disponível em https://www.almg.gov.br/comunicacao/tv-assembleia/videos/video?id=877626&tagLocalizacao=. Acesso em 1/12/22
[5] GOMES, Janaína Dantas Germano (Coord). Primeira Infância e Maternidade nas ruas da cidade de São Paulo. São Paulo: Lampião, 2017, p. 46/47
[6] MENDEZ, Emílio Garcia. A defesa legal e a legitimidade dos sistemas de administração da justiça para a infância e juventude. Trad. Giancarlo Silkunas Vay et al. Boletim de Direitos da Criança e do Adolescente, n São Paulo, n. 8, p. 6-10, set/out 2020.
[7] FONTES, Virgínia. Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história, 2ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010, p. 188
[8] MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 17-18
[9] As técnicas de controle e disciplinarização das famílias por meio da validação social do cuidado dos filhos aparecem, por exemplo, no processo de catequização compulsória das populações originárias pelos jesuítas; na perpetuação do modelo de produção escravagista; na implementação do capitalismo moderno ao longo da República Velha por meio do discurso da criança como "futuro da nação"; como estratégia de sustentação da ditadura varguista por meio dos internatos, da puericultura e do modelo de educação eugênica; na fortificação da Doutrina da Segurança Nacional por meio das adoções forçadas de filhos de militantes políticos ao longo da ditadura militar, dentre tantos outros exemplos.
[10] PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito Insurgente: para uma crítica marxista ao direito, vol. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris Direito, 2021, p. 140.
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