Tribunal do Juri

As garantias na etapa pré-processual na Argentina

Autores

  • Lisandra Panzoldo

    é pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio e em Direito Probatório no Processo Penal pela Escola da Magistratura Federal (Esmafe) estagiária da Defensoria Pública de São Paulo - Unidade Júri (DPESP) e autora do livro O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (também publicado na Argentina).

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

10 de dezembro de 2022, 8h00

Não é fácil precisar os inúmeros motivos pelos quais o país ainda não reformou seu sistema de justiça criminal. O Brasil é o único país na América Latina que possui um sistema processual inquisitivo, conforme há anos aponta o Centro de Estudios de Justicia de las Américas (Ceja) [1].

Spacca
Já demostramos anteriormente alguns aspectos do tribunal do júri no país vizinho que asseguram mais garantias ao julgamento (aqui e aqui). Há de se destacar também que ditas garantias já se fazem presentes mesmo na fase de investigação policial. Na esfera da civil law, quando se chega à fase de julgamento a "verdade" dos fatos já está estabelecida em uma instrução preparatória repleta de expedientes escritos, sem contraditório, sigilosos, quase sem controle e de baixa qualidade probatória [2].

Devido ao modelo acusatório já implementado em várias províncias argen­tinas e à figura do juiz de garantias, cuja implementação no Brasil foi suspensa pelo ministro Luiz Fux do Su­premo Tribunal Federal (STF) em decisão proferida em 22 de janeiro de 2020, a etapa de investigação é diferente de como acontece no Brasil.

Equivalente ao nosso Inquérito Policial (IP), na Ar­gentina a chamada Investigación Penal Preparatoria (IPP) poderá ser iniciada por decisão do Ministério Público Fiscal (MP) ou por ação da polícia. Caso seja iniciada pelo MP, contará com a colaboração da polícia que cumprirá com as ordens recebidas. Se for iniciada pela polícia, imediatamente o promotor responsável é comunicado para que ele possa controlar todo o procedimento e dar instruções.

Após o Ministério Público reunir elementos referentes à possibilidade de ser o acusado o autor do delito, irá citá-lo para uma audiência para que tome conheci­mento acerca do (s) delito (s) imputado (s). Nesta audiência, chamada audiencia im­putativa, será designado um defensor público ao acusado, caso ele não tenha um defensor particular. Não é permitida a realização dessa audiência sem a presença do defensor, já que será nela que se conhecerão os fatos e sua tipificação, as provas que embasam a intimação e seus direitos como investigado.

É neste aspecto que iniciamos as abissais diferenças na etapa pré-processual nos dois países. No Brasil, ao indiciado não lhe assiste o direito a um defensor público, pois nesta etapa não se assegura o contraditório nem a ampla defesa. Isso é um grave erro tendo em vista que, se o indiciado será submetido a um interrogatório, por con­sequência, deveria ter o direito de ser assistido por um defensor público, não podendo ficar sem defesa técnica frente a poderes como a polícia e Ministério Público [3].

Em Escobedo v. Illinois [4], a Corte Suprema dos Estados Unidos destacou que desde o momento em que o investigado se con­verte em foco de investigação, o direito de contar com um advogado para assisti-lo constitui exigência constitucional e que, na ausência do defen­sor, nenhuma declaração obtida em sede policial poderia ser usada durante o processo criminal.

Para Alberto Binder, a figura do defensor público é de extrema necessi­dade desde a etapa pré-processual e, ademais, correlaciona essa necessidade com o grau de formalização de culpa. Quanto menor for o grau de formalização da culpa, maior é a necessidade de defesa e, portanto, ela deve existir desde o mo­mento que nasce uma acusação, por mais informal que ela seja [5].

O jurista ainda defende que o direito de defesa é inviolável, independentemente da fase processual, pois é o direito de defesa que irá assegurar todos os outros direitos. Sendo assim, seria errado pensar que o direito ao defensor e, portanto, à ampla defesa, só deve ser garantido a partir de determinada etapa processual, isto é, quando a acusação adquire mais robustez ou quando passa a ser uma acusação mais formal.

Binder salienta que embora esta não seja uma etapa que exista o contraditório como a fase de julgamento, deve-se permitir a ampla defesa, sendo possível propor diligências, participar de atos, dentre outros [6].

A defesa, para Ferrajoli, deve contar com a mesma digni­dade e ter os mesmos poderes de investigação que o Ministério Público [7]. O enfraquecimento das garantias processuais nos sistemas inquisitivos pode levar ao esvaziamento da produção da prova e à falta de defesa  não apenas no sentido estrito, devido ao impasse da verdade processual, mas também no sentido amplo, devido à admissão de in­tervenções criminais sem qualquer satisfação da carga probatória pela acusação e sem qualquer controle por parte da defesa [8].

Além disso, ressalta-se que na Argentina o promotor não pode omi­tir uma prova a favor do acusado, ou seja, se existem elementos probatórios favoráveis ao acusado, o promotor deve disponibilizá-los à defesa, conforme o artigo 73 da Lei 14442 do Ministério Público [9], exatamente como expressado no caso Brady vs Maryland da Corte Suprema dos Estados Unidos [10] em que se estabeleceu que havendo prova que possa eximir a culpa do acusado, o promotor deve entregá-la à defesa (as chamadas provas exculpatórias).

Outro aspecto importante e que contribui para celeridade dos processos é o fato de que a etapa preparatória tem prazo (realmente) fatal. Em Buenos Aires, a IPP não pode durar mais de quatro meses e o processo todo não pode ultrapassar dois anos, conforme artigos 141 e 282 do Código Procesal Penal de Buenos Aires (CPP-BA), caso o investigado esteja preso. Não se concluindo a investigação neste prazo e não havendo indícios para mandar o caso a julga­mento, o feito deve ser sobrestado, conforme artigo 323.6, CPP-BA. Havendo elementos de convicção, o promotor elaborará a requisitoria (equivalente à denúncia no Brasil).

Destaca-se que na província de Neuquén, desde o início das investigações na IPP até o veredicto dos jurados e um possível recurso da defesa, a duração estimada desse processo é de oito meses [11].

O caso González Medina da Corte Interamericana de Direitos Humanos descreve a importância da celerida­de na etapa investigativa: "[…] o passar do tempo é diretamente proporcional à limitação  e em alguns casos, à impossibilidade – de obtenção das provas e/ou testemu­nhos, dificultando e até mesmo tornando nula ou ineficaz a prática de diligências probatórias que visam a esclarecer os fatos da investigação, identificar os possíveis autores e partícipes, e determinar as eventuais responsabilidades criminais. Sem prejuízo disso, as autoridades nacio­nais não estão isentas de fazer todos os esforços necessários para cum­prir sua obrigação de investigar" [12].

 A proibição da confissão em delegacia é outro aspecto relevante do siste­ma processual argentino [13]. Em um caso de grande repercussão na província de La Plata devido a uma prisão injusta ainda em fase preliminar, um homem inocente foi acusado de homicídio e ficou preso por quatro anos até que os jurados o absolvessem.

A prisão se deu devido a uma confissão feita na delegacia e sem a presença de um advogado. Conforme ressaltou o defensor do acusado posteriormente: "A declaração de um acusado em sede policial está proibida. Para que uma declaração seja váli­da, o acusado deve ter a possibilidade de conversar com um defensor, deve ser realizada na presença do promotor e, ainda, devem ler seus direitos" [14].

Desta forma, vemos que alguns elementos destacados da legislação Argentina já na etapa preliminar como a possibilidade de contraditório, a obrigatoriedade de assistência de um defensor público, o estabelecimento de um prazo para conclusão e o controle em caso de confissão em delegacia [15], constituem uma rede de garantias que visam concretizar os direitos e garantias convencionais de maneira efetiva. Já passou da hora do Brasil também se adequar ao modelo acusatório e, finalmente, fazer cumprir integralmente valores tão importantes para um Estado democrático.

 


[1] GONZÁLEZ, Leonel; FANDIÑO, Marco. Balance y propuestas para la consolidación de la justicia penal adversarial en América Latina. In La Justicia Penal Adversarial en América Latina. Hacía la gestión del conflicto y la fortaleza de la ley. Chile/Santiago, 2018. https://biblioteca.cejamericas.org/handle/2015/5621 Acesso em 05 de dezembro de 2022.

[2] HARFUCH, Andrés. El veredicto del jurado. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2019. p. 696.

[3] Este tema é consonante ao disposto no artigo 8.2."e" da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)  artigo 8.2: Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas. e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei.

[4] Escobedo v. Illinois, 378 U.S. 478 (1964) — U.S. Supreme Court.

[5] BINDER, Alberto M. Introducción al derecho procesal penal. Ad-Hoc  Buenos Aires 1999, p. 156.

[6] BINDER, Alberto. Iniciación al proceso penal acusatorio (Para auxiliares de la Justicia). Publicaciones del Instituto de Estudios Comparados en Ciencias Penales y Sociales (Inecip), 2000.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón  Teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 1995. p 583.

[8] FERRAJOLI, op cit. p. 99.

[9] Capítulo IV – Reglas de actuación  ARTÍCULO 73.  Criterio de actuación. El agente fiscal desarrollará su tarea actuando con criterio objetivo, sin ocultar elementos de prueba favorables a la defensa.

[10] Os réus Brady e Boblit foram acusados de assassinato em primeiro grau e condenados à morte por matar William Brooks, porém o julgamento deles foi realizado separadamente. Brady admitiu sua participação no crime, mas alegou que foi seu parceiro, Boblit, quem realmente cometeu o assassinato. Durante os debates, o advogado de Brady admitiu sua culpa, mas pediu ao júri que desse um veredicto que não fosse tão severo quanto a pena de morte. Antes do julgamento, seu advogado havia pedido à acusação que lhe permitisse examinar as declarações feitas por Boblit que foi julgado primeiro. Foram disponibilizadas várias dessas declarações, mas especificamente a declaração em que Boblit realmente admitiu o assassinato foi retirada pela acusação, só chegando ao conhecimento de Brady depois que ele foi condenado e após sua condenação ter sido mantida pelo Tribunal de Apelação de Maryland. Após o recurso de Brady, o Tribunal considerou que a omissão de provas pela acusação violava o devido processo legal e remarcou o caso para um novo julgamento sobre a questão unicamente da pena, que foi reduzida à prisão perpétua. Brady v. Maryland, 373 U.S. 83 (1963).

[11] Em Neuquén, a IPP tem um prazo má­ximo de quatro meses e caso não se termine a investigação, extingue-se a ação penal e o feito deve ser sobrestado Arts. 158 e 160.7 del Código Procesal Penal de la Provincia del Neuquén.

[12] Corte IDH  Caso González Medina y Familiares vs. República Dominicana (Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones Y Costas), Sentencia de 27 de febrero de 2012 (considerando 218).

[13] Artigo 8.3, CADH: "A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza".

[15] Mais detalhes em: PANZOLDO, Lisandra. O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

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    é bacharelanda em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), estagiária da Defensoria Pública de São Paulo — Unidade Júri e autora do livro "O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (publicado também na Argentina).

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    é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

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