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Valle Costa: Cosméticos e os testes em animais

9 de dezembro de 2022, 16h36

Por Aline Cristine Valle Costa

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Em um mundo globalizado e extremamente tecnológico como o atual, ainda é necessário submeter espécies diversas a testes cruéis para que as marcas de produtos cosméticos obtenham lucro? Evidente que não.

Neste artigo, utilizando-se como instrumento o Direito Comparado europeu, discute-se a incorporação de métodos alternativos tecnológicos na indústria cosmética, de forma a promover uma mudança de foco nos seres submetidos à testagem em que se deixa de usar cobaias vivas para se utilizar simulações computacionais. Diante da variedade de procedimentos alternativos, não invasivos, inovadores e seguros criados pela tecnologia, as empresas não deveriam hesitar em abandonar os ensaios em animais.

Nos últimos anos, tem se observado uma tendência animalista nas legislações em geral, isto é, as teorias nas quais os animais são elevados a sujeitos de direitos [1] têm ganhado tanta relevância, que disso resultou a ampliação do direito animal, ramo permanente do Direito Ambiental [2] e intrinsecamente ligado ao Direito Privado. A partir disso, abandona-se a visão ultrapassada de animais como coisas e passa-se a interpretá-los como seres vivos sujeitos de uma vida, os quais possuem dignidade.

Esse alargamento da proteção da tutela dos animais é seguido de um número amplo de tecnologias em métodos alternativos a testagem em animais que prometem obter melhores resultados em conformidade com o corpo humano, em especial aos testes de toxicidade tópica e sensibilização cutânea dos produtos cosméticos.

A União Europeia, por meio do Regulamento (CE) nº 1.223/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativo aos produtos cosméticos, além de ter revogado a Diretiva 76/768/CEE, passou a vedar a testagem em animais de possíveis ingredientes capazes de integrar a composição final do produto, o que, inclusive, veda a colocação no mercado da União Europeia de produtos cosméticos contendo certos ingredientes que tenham sido objeto de ensaios em animais em países terceiros, fora da União.

Os progressos realizados pela Comissão nos seus esforços para obter a aceitação, por parte da OCDE, dos métodos alternativos validados a nível da Comunidade culminou com o Regulamento (CE) nº 440/2008 da comissão, no qual constam os métodos aceitos. Assim, grande parte dos experimentos passou a ser realizado por meio de ensaios alternativos, mas procedimentos mais específicos como os testes de toxicidade tópica, toxicidade repetida e sensibilização cutânea, por falta de alternativas, ainda eram realizados em animais, mesmo após a vedação completa dos testes na Europa, que ocorreu em 2013.

Atualmente, uma das principais inovações tecnológicas aos testes de toxicidade é EU-ToxRisk [3]. O projeto fora lançado em 2016 com um orçamento de mais de 30 milhões de euros. O método alternativo é baseado na resposta obtida por simulação mecanicista de células humanas sobre efeitos químicos adversos. O procedimento é realizado por meio de duas fases: (1) repetição de dose e análise dos efeitos nos rins, pulmões, fígado e sistema nervoso; (2) desenvolvimento de toxicidade reprodutiva. Interessante mencionar que o investimento contou com colaborações de marcas de cosméticos que já incorporaram o procedimento em seus laboratórios, como por exemplo a L'oréal [4].

Pode-se citar, também, o projeto EuroMix, cujo objetivo fora aplicar uma estratégia sem recurso a animais para a avaliação dos riscos de misturas de vários produtos químicos, em especial com a utilização dos métodos in vitro e in sílico em parceria com o do Laboratório de Referência da União Europeia para Alternativas aos Ensaios em Animais (EURL ECVAM) do Centro Comum de Investigação (JRC) da Comissão.

Do ponto de vista científico, a União Europeia possui um progresso almejável no que tange ao desenvolvimento de métodos alternativos a testagem em animais em produtos cosméticos. A admiração se repercute no campo do direito visto que em decorrência da legislação dos estados-membros, em especial, a Diretiva 2003/15/CE e a Resolução 1.223/2009, obteve-se a vedação completa dos ensaios em animais para cosméticos desde 2013. Logo, o bloco segue com a testagem para outros experimentos científicos como os experimentos educacionais e medicinais, contudo, é de se esperar que os procedimentos EU-ToxRisk e EuroMix passem a se aplicar às demais áreas.

O Brasil, em contraponto, permite a testagem em animais em searas além da medicina e dos experimentos em instituições de ensino superior. A Lei 11.794/08 admite os ensaios relacionados com ciência básica, ciência aplicada, desenvolvimento tecnológico, produção e controle da qualidade de drogas, medicamentos, alimentos, imunobiológicos e instrumentos, ou seja, o setor dos cosméticos não está impedido.

A legislação brasileira tenta compatibilizar a permanência dos ensaios em animais com os pressupostos de bem-estar animal [5], o que é criticado pelas doutrinas de direito animal e Direito Ambiental como uma forma de especismo [6], além de ser contestável, haja vista a disponibilidade de métodos alternativos de melhor custo-benefício e a influência do continente europeu.

Desse modo, conclui-se que a inovação por meio da tecnologia disciplina papel fundamental no desenvolvimento de métodos alternativos à testagem animal por fabricantes de cosméticos e indica a conclusão de que a testagem em animais não humanos não é mais necessária. Cabe agora ao Direito regulamentar, no Brasil, os métodos aceitos, inclusive os novos procedimentos, ToxRisk e EuroMix.

 


Referências:

ARAÚJO, Fernando. A Hora dos Direitos dos Animais. Coimbra, Almedina, 2003.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE. José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011.

SINGER. Peter. Libertação Animal. WMF Martins Fontes Ltda, São Paulo, 2013.

EUTOXRISK. Disponível em: https://www.eu-toxrisk.eu/page/en/partners.php. Acesso em: 26 de outubro de 2022.

Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao conselho sobre o desenvolvimento, a validação e a aceitação legal de métodos alternativos aos ensaios em animais no domínio dos produtos cosméticos. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52019DC0479&from=ES. Acesso em: 26 de outubro de 2022.

Alternativas a Experimentação Animal. Disponíevel em: https://www.ufsm.br/midias/arco/alternativas-a-experimentacao-animal/. Acesso em: 26 de outubro de 2022.

 


[1] ARAÚJO, Fernando. A Hora dos Direitos dos Animais. Coimbra, Almedina, 2003.

[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE. José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011.

[3] projeto colaborativo europeu financiado pelo Programa-Quadro de Investigação e Inovação da UE, Horizonte 2020 (H2020).

[5] Bem-estar animal positivado pela Constituição Federal no art. 225, parágrafo 1º, VIII.

[6] SINGER. Peter. Libertação Animal. WMF Martins Fontes Ltda, São Paulo, 2013.