Opinião

Enquadramento jurídico da dispensa de empregados por motivação política

Autor

  • Gabriel Napoleão Velloso Filho

    é desembargador do Trabalho pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário do Pará (Cesupa) e associado da Associação Juízes para A Democracia (AJD) da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD) e da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).

8 de dezembro de 2022, 15h18

A eleição de 2022 foi marcada pelo abuso do poder econômico e agressões contra a liberdade do exercício do direito de voto.

A partir da ruptura democrática de 2016, o aprofundamento das reformas neoliberais causou o recrudescimento da desigualdade; somado ao antipetismo, calcado em fortíssima campanha dos meios de comunicação, forneceu terreno fértil ao desenvolvimento de corrente política fascista, consagrada na eleição, em 2018, do presidente Jair Bolsonaro.

A desconstrução dos direitos sociais e a erosão das balizas éticas  no mercado de trabalho e na seara política  fomentaram um embate eleitoral desigual, no qual vicejou a compra de votos e a pressão aberta e desinibida contra os trabalhadores, com o intuito de inibir a liberdade de voto e de expressão política, em movimento que ecoa a Primeira República [1].

Empregados e prestadores de serviço passaram a conviver com a proliferação do "assédio eleitoral", forma ilegal de agressão ao direito do voto consistente na realização de ameaças de dispensa ou promessa de vantagem para votar ou deixar de votar em determinado candidato.

Os dados do Ministério Público do Trabalho apontam quase 2.000 empresas objeto de denúncias de assédio eleitoral na quadra eleitoral de 2022, o que representa um aumento de mais de 12 vezes em relação a 2018 [2]. Esses números alarmantes assumiram contornos ainda mais dramáticos com o desdobramento do certame democrático.

Arcabouço internacional
A Declaração Universal de Direitos Humanos reconhece a todo ser humano a faculdade de gozar seus direitos e liberdades, independentemente de sua opinião política ou de qualquer natureza, bem como de sua origem ou território [3]. São direitos inalienáveis, que se aplicam em todos os setores da vida humana e nas relações privadas, impedindo que empregados e prestadores de serviço sejam alvo de discriminação por sua opinião política e escolha. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos veda a discriminação motivada por opinião política [4] e consagra a liberdade de opiniã[5]; igualmente proíbe o discurso de ódio e a apologia à discriminaçã[6], o que é reforçado pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais [7].

O Pacto de San José da Costa Rica é expresso ao impedir qualquer discriminação com base em opinião ou expressão política [8]; acrescenta a vedação à restrição da liberdade de expressão por vias ou meios indiretos, dentre os quais se encontra a demissão por motivação política [9]; também sanciona qualquer "apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação" [10].

No âmbito da Organização Internacional do Trabalho, a Convenção nº 111 da OIT proscreve a discriminação em todas as suas formas, expressamente em razão da opinião política ou ascendência nacional [11]. Por força do pacto internacional, o Brasil assumiu a obrigação de "eliminar toda discriminação" em matéria de emprego e profissã[12]. Dessa forma, cabe tanto aos órgãos do Poder Executivo, quanto ao sistema de justiça, adotar as medidas e decisões necessárias para assegurar o combate à discriminação.

Contornos constitucionais
A Constituição de 1988 protege a liberdade de opinião política, expressando que ninguém será privado de direitos por motivo de convicção política, o que é punido por lei [13]. Mais que isso: o combate à discriminação, em todas as suas formas, é um objetivo fundamental do país [14].

A Constituição, por via perpendicular, sanciona as demissões que se baseiem em represália política, ao anistiar todas as pessoas atingidas por motivação exclusivamente política, extensiva a "trabalhadores do setor privado, dirigentes e representantes sindicais" [15].

Se a Constituição Federal quis conceder anistia aos empregados que foram atingidos por motivação política, a interpretação lógica é que toda dispensa realizada por motivação política é incompatível com a lei maior.

Direito interno: Lei nº 9.029/95
A Lei nº 9.029/95, originalmente concebida para prevenir a discriminação contra a mulher, na prática se constitui um estatuto geral contra a discriminação no emprego [16]. O diploma legal prevê como sanção a reintegração ao emprego ou indenização em dobro, sem prejuízo da indenização por dano moral. Na esfera administrativa, o empregador está sujeito a multa de até 50 vezes o salário do empregado, além da proibição de obter empréstimo ou financiamento junto a instituições financeiras oficiais.

A jurisprudência trabalhista é régia em exemplos que estendem a repressão à discriminação a situações não previstas expressamente, como a doença [17], dependência química [18]orientação sexual [19], aos portadores de vírus HIV [20], neoplasia maligna [21], hepatite C [22] ou doença psiquiátrica grave [23].

Da nulidade do ato demissional
A d
ispensa de empregado por motivo político é nula. Mais que isso: infringe direito fundamental, que faz parte da estrutura basilar do direito do trabalho.

Considerando as circunstâncias do certame eleitoral, compete ao juiz, em prudente arbítrio, aplicar dinamicamente o ônus da prova; as demissões ocorridas nas semanas que se sucedem às eleições, mormente de forma coletiva, devem ser presumidas como de caráter político. A alegação genérica de "redução de quadro" ou "adequação ao mercado" necessitará ser provada.

No âmbito probatório, serão admitidos os meios de prova pelos quais se manifesta a discriminação: postagem em redes sociais, manifestação em comunicadores (Whatsapp, SMS etc.), assim como comunicados e gravações realizadas pelos empregados.

É ação que se amolda à tutela de urgência, dada a necessidade de afastar decisivamente o ato do mundo jurídico.

Do dano moral individual
Como previsto na Lei nº 9.029/95, a dispensa discriminatória, por si só, acarreta indenização por dano moral.

A mensuração da indenização, tomando por base o artigo 223-G da CLT, tomará em consideração:

a) a natureza do bem tutelado, que é um direito fundamental protegido em tratados internacionais e na Constituição Federal, o que deve elevar o valor da indenização;

b) a elevada humilhação do empregado, que se vê tolhido em sua liberdade de voto e, portanto, sofre forte gravame moral;

c) as condições gravosas em que ocorre o prejuízo moral, visando a atingir o primado democrático e agredir um dos pilares do Estado;

d) a severidade do grau de dolo;

e) o abuso do poder econômico, para impor odiosa discriminação política.

Tenho que a limitação instituída pelo §1º do artigo 223-G da CLT é abertamente inconstitucional [24]. Feita esta reserva, o sistema de tarifação proposto pode servir de parâmetro mínimo para imposição da indenização por dano moral.

Dadas as várias circunstâncias agravantes detectadas e a natureza do direito violado, a indenização deve levar em conta a natureza gravíssima da ofensa; o valor mínimo para a indenização, a priori, deve ser correspondente a 50 vezes o último salário do empregado.

Outros fatores individuais podem interferir, no caso concreto, agravando o valor da indenização, de forma a representar a repressão da conduta e a sua inibição pedagógica:

a) a ponderação das circunstâncias individuais e do porte da empresa;

b) a reincidência da empresa ou a demissão coletiva de trabalhadores;

c) a publicização da discriminação, por rede social ou qualquer outro meio, para reprimir a exposição pública da vítima.

Da tutela coletiva
A dispensa por motivação política envolve, muito frequentemente, um grupo de trabalhadores. Amolda-se, portanto, à ação civil pública e à tutela coletiva de direitos, a ser exercido pelo ente sindical ou pelo Ministério Público do Trabalho. O cuidado se estende às contratações de empregados, exercendo vigilância para que a seleção e recrutamento não sejam realizadas como instrumento de discriminação, visando os grupos indicados.

Em tais casos, cabe a indenização por dano moral coletivo, caracterizado pela "lesão grave, injusta e intolerável a valores e a interesses fundamentais da sociedade, independentemente da comprovação de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral" [25]. Ao avançar sobre os valores democráticos e os fundamentos da república, com infração aos direitos fundamentais dos empregados, o empregador ou tomador de serviços pratica lesão à tessitura moral coletiva, que deve ser sanada por indenização exemplar, que o atinja patrimonialmente de forma significativa e desencoraje o ato ilícito.

Conclusões
A dispensa por motivação política é ato discriminatório vedado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, pela Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho e, no plano interno, pela Constituição e pela Lei nº 9.029/95;

Em tais casos, é cabível a reintegração ou, ao critério do empregado, a indenização em dobro, na forma da lei;

Deve ser presumida com motivação política a dispensa em seguida ao certame eleitoral, mormente coletiva, cabendo ao empregador a prova do fato contrário;

Em tais ações, serão admitidos amplamente os meios de prova telemáticos pelos quais se manifesta a discriminação, assim como comunicados e gravações realizadas pelos empregados;

O julgador deve estar atento às dispensas que atinjam desproporcionalmente pessoas das regiões do norte e nordeste, às quais foi imposto o peso da derrota do candidato da extrema direita;

Cumulativamente, é devida indenização por dano moral, que deve ser arbitrada, considerando a gravidade da conduta e os fatores previstos em lei;

Na esfera coletiva, cabe aos entes sindicais e ao Ministério Público ingressar com ação, para imposição de indenização por dano moral coletivo e para impedir que a discriminação se estenda à seleção e recrutamento de novos empregados;

O sistema de justiça brasileiro deve priorizar a repressão exemplar às dispensas realizadas em represália à livre expressão da opinião política e exercício do direito de voto, impondo sanções patrimoniais, civis e, quando for o caso, penais, aos agentes que praticam a odiosa conduta, que ofende valor fundamental ao Estado brasileiro.


[1] AVRITZER, Leonardo et. al. (compiladores). Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2021; NOBRE, Marcos. Limites da democracia: De junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo: Ed. Todavia, 2022; LYNCH, Christian e CASSIMIRO, Paulo Henrique. O populismo reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo. São Paulo: Contracorrente, 2022.

[2] MAIA, Flávia. Número de denúncias de assédio eleitoral em 2022 é 12 vezes maior que em 2018. PORTAL JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/eleicoes/denuncias-de-assedio-eleitoral-em-2022-e-12-vezes-maior-que-2018-31102022. Consultado em 01/11/2022.

[3] ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Artigo 2. 1. (Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos, consulta em 01/11/2022).

[4] ONU. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Artigo 2. 1. Disponível em https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/pacto_internacional_sobre_os_direitos_civis_e_politicos.pdf, consulta em 01/11/2022).

[5] ONU. op. cit. Artigo 19.1.

[6] ONU. op. cit. Artigo 20.2.

[7] ONU. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Artigo 2. 2. Disponível em https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ECidadania/educacao_para_a_Defesa_a_Seguranca_e_a_Paz/documentos/pacto_internacional_sobre_direitos_economicos_sociais_culturais.pdf, consulta em 02/11/2022.

[8] ONU. Pacto de San José da Costa Rica. Artigo 1. 1. Disponível em  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm, consulta em 01/11/2022.

[9]  ONU. Op. cit. Artigo 13.3.

[10] ONU. Op. cit. Artigo 13.5.

[11] OIT. Convenção nº 111. Preâmbulo e artigo 1-1. Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235325/lang–pt/index.htm, consulta em 01/11/2022.

[12] OIT. Op. cit. Artigo 2.

[13] BRASIL. Constituição Federal. Artigo 5º, VIII e XLI. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, consulta em 01/11/2022.

[14] BRASIL. Op. cit. Art. 3º, IV.

[15] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Op. cit. ADCT. Artigo 8º, caput e §2º.

[16] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei nº 9.029/95. Artigos 1º, 3º e 4º. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm, consulta em 02/11/2022.

[17] TST. RR — 2859-25.2011.5.12.0040. 7ª Turma. :Evandro Pereira Valadao Lopes (relator). Julgamento: 05/10/2022. Publicação: 21/10/2022. Disponível em: https://jurisprudencia.tst.jus.br/, consulta em 02/11/2022.

[18] TST. Ag-AIRR — 1002463-95.2017.5.02.0461, 3ª Turma, José Roberto Freire Pimenta (relator), Julgamento: 19/10/2022, Publicação: 21/10/2022. Disponível em: https://jurisprudencia.tst.jus.br/, consulta em 02/11/2022.

[19] TST. RR — 101900-52.2004.5.05.0024, 2ª Turma, José Simpliciano Fontes de F. Fernandes (relator), Julgamento: 15/04/2009, Publicação: 09/10/2009. Disponível em: https://jurisprudencia.tst.jus.br/, consulta em 02/11/2022.

[20] TST. ROT — 100748-56.2021.5.01.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Sérgio Pinto Martins (relator), Julgamento: 18/10/2022, Publicação: 21/10/2022. Disponível em: https://jurisprudencia.tst.jus.br/, consulta em 02/11/2022.

[21] TST. RRAg — 11059-63.2017.5.03.0039. 3ª Turma. Mauricio Godinho Delgado (relator), Julgamento: 08/06/2022, Publicação: 20/06/2022. Disponível em: https://jurisprudencia.tst.jus.br/, consulta em 02/11/2022.

[22] TST. AgR-E-RR — 979-71.2013.5.02.0083, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, José Roberto Freire Pimenta (RELATOR), Julgamento: 08/04/2021, Publicação: 30/04/2021. Disponível em: https://jurisprudencia.tst.jus.br/, consulta em 02/11/2022.

[23] TST. RR — 628-07.2016.5.17.0009, 3ª Turma, Mauricio Godinho Delgado (relator), Julgamento: 13/10/2022, Publicação: 14/10/2022. Disponível em: https://jurisprudencia.tst.jus.br/, consulta em 02/11/2022.

[24] TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA OITAVA REGIÃO. 0000514-08.2020.5.08.0000. Tribunal Pleno. Gabriel Napoleão Velloso Filho (relator). Julgamento: 15/09/2020. Disponível em https://juris.trt8.jus.br/, consulta em 02/11/2022.

[25] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. Dano moral coletivo  violação a valores fundamentais da sociedade. Disponível em  https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/dano-moral-no-tjdft/dano-moral-coletivo/danomoralcoletivo, consulta em 01/11/2022.

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