Opinião

Origem do Carf e os reflexos das suas decisões no âmbito aduaneiro

Autor

  • Alessandra Marcon Carioni

    é advogada professora da disciplina de Direito Aduaneiro da pós-graduação da Faculdade Cesusc coordenadora do Grupo de Estudos em Direito Aduaneiro da OAB-SC contadora pela FAE Business School-PR especialista pela FGV-PR membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro da OAB-SP e OAB-SC coautora do livro Direito Aduaneiro Contemporâneo (Editora Dialética) e assessora de empresas de comércio internacional no escritório Catta-Preta & Salomão Advogados.

6 de dezembro de 2022, 6h31

Em 14 de setembro deste ano, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), órgão que sobreveio aos longevos conselhos de contribuintes, desde a instalação da primeira estrutura de representação paritária originalmente instituída para julgar os recursos fiscais, completou 97 anos.

Isso porque os primeiros órgãos fiscais brasileiros provieram das capitanias hereditárias. Para cada uma delas, a coroa portuguesa designou um provedor da Fazenda Real, que se tornou responsável não só por lançar, fiscalizar e arrecadar tributos, mas também por julgar os processos administrativos [1].

Em 1549, quando Tomé de Souza assumiu o governo da Bahia, Antônio Cardoso de Barros fora nomeado como provedor-mor, responsável por supervisionar os demais provedores, acompanhar a renda de cada capitania e nomear fiscais para os negócios de açúcar, os chamados "alealdadores" [2].

Eis o marco histórico da estrutura administrativa fazendária brasileira.

Posto isso, avancemos um pouco mais no contexto histórico. Ao final de 1924, o governo de Artur Bernardes criou um Conselho de Contribuintes para julgar os recursos relacionados ao Imposto de Renda, que fora instituído em 1922. Planejados para existir em cada Estado, os conselhos seriam compostos por cinco membros cada um, selecionados entre contribuintes do comércio, indústria, profissões liberais e funcionários públicos. O do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, começou a operar no final de 1925 [3].

O resultado foi acima do esperado, e logo foi instituído, por conta do clamor dos contribuintes, um outro conselho para tratar dos demais tributos, excetuando-se o de renda.

Assim sendo, em 1927, a então capital federal ganhou um conselho constituído por doze membros, em partes iguais de representantes da Fazenda e de contribuintes, cujo objeto era julgar recursos sobre impostos sobre consumo, além de classificação e valor de mercadoria pelas alfândegas.

Em 1934, embora tenha ocorrido a extinção de ambos os conselhos, em seguida outros já foram reinstalados, renomeados e reestruturados. Os contribuintes passaram a contar, então, com três conselhos para avaliar seus recursos [4]:

O Primeiro Conselho de Contribuintes, encarregado dos recursos relativos a Imposto de Renda, Imposto do Selo e Vendas Mercantis.

O Segundo Conselho de Contribuintes, responsável por recursos sobre Imposto de Consumo, Taxa de Viação e demais tributos e impostos não atribuídos ao Primeiro Conselho.

O Conselho Superior de Tarifa, para tratar de questões de classificação, valoração e contrabando de mercadorias, bem como as decorrentes de leis ou regulamentos aduaneiros. Este viria a ser chamado, mais tarde, de Terceiro Conselho de Contribuintes.

Os Conselhos de Contribuintes foram cruciais para o rico debate na esfera administrativa, incentivando a solução adequadas de conflitos e resultando no desenvolvimento de valores importantes, como ampla defesa e segurança jurídica no âmbito tributário e aduaneiro, garantidos por decisões técnicas e imparciais [5].

Devido ao grande vulto de processos atribuídos ao Segundo Conselho de contribuintes, o governo de 1964, pelo mesmo decreto, decidiu desmembrá-lo e constituir o Terceiro Conselho de Contribuintes.

Posteriormente, com a edição da Lei 11.941, de maio de 2009, o Carf sucedeu os três Conselhos de Contribuintes então existentes, com o fito de racionalizar as atividades administrativas, otimizar os tramites processuais e imprimir maior celeridade na solução dos litígios administrativos fiscais [6].

Em síntese, portanto, a evolução do contencioso administrativo remonta ao Brasil colônia, passando pelo império com o Erário Régio, posteriormente com os Conselhos de Contribuintes e, nos dias atuais, pelo Carf [7].

No que concerne o sempre rígido regime aduaneiro, o Conselho Superior de Tarifa designado para tratar sobre a matéria foi desde sua concepção um órgão mais especializado, constituído por técnicos com alto nível de profissionalização, sobretudo fiscais aduaneiros e representantes do comércio importador [8].

Impressiona o fato de que, após décadas, essa tradição, a meu ver, permanece. Hoje, todos os intervenientes do comércio exterior, entre os quais me incluo, podem afirmar que a 3ª Seção mantém esse mesmo nível de tecnicidade.

Apesar dos grandes avanços no ambiente de negócios do comércio exterior, tanto na época do monopólio da coroa como no atual cenário aduaneiro-fiscal, os tributos e multas aduaneiros sempre foram fatigantes. Cabe salientar que estamos falando de uma matéria que movimenta anualmente bilhões de dólares.

Daí a necessidade de analisar os reflexos que uma decisão do referido órgão pode ocasionar aos contribuintes e ao Fisco no âmbito aduaneiro.

Vamos a um exemplo prático e recente? Final de 2021, caso Lojas Americanas S.A, processo de n˚15444.720091/2018.99.

O colegiado do Carf afastou uma multa aplicada pelo fisco ao Grupo Americanas, após instauração de auto de infração, no valor de R$ 35,8 milhões, por suposta prática de interposição fraudulenta. Em suma, após o voto da relatora Fernanda Vieira Kotzias, com a particularidade que a matéria exige, restou decidido que não há obrigatoriedade de se informar na Declaração de Importação o encomendante da operação de importação, afastando a ocorrência de ocultação fraudulenta na situação.

Agora, pode-se imaginar o impacto que a referida empresa sentiria caso essa multa fosse aplicada pelo Fisco, de forma equivocada e sem a devida apreciação técnica de uma instância revisional. Esse é apenas um exemplo da importância de se ter e manter um órgão administrativo revisional efetivo, com conselheiros excepcionalmente capacitados.

Aliás, sua relevância é expressa na Constituição Federal, tanto no artigo 37, no que se refere aos princípios que regem a administração pública, como também, mais especificamente, no artigo 5˚, incisos XXXIV; XXXVI e LV, versando sobre o direito de petição aos poderes públicos; a coisa julgada — mesmo que administrativamente —; do contraditório e ampla defesa, com os meios de recursos a ela inerentes.

Dessa forma, para sedimentar a importância do aludido órgão, em  comentário realizado especialmente para a coluna Direto do Carf, da ConJur, a doutora Fernanda Kotzias, conselheira titular da 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, argumenta:

"Acredito que a relevância do Carf reside no fato de que, apesar de seus percalços, o órgão continua sendo o locus principal e de melhor nível técnico para discussão de casos aduaneiros. Isto porque o Direito Aduaneiro possui conceitos, institutos e situações muito específicas e que demandam experiência e visão prática dos julgadores, o que é difícil de se alcançar no Judiciário — pelo menos enquanto as varas especializadas ainda não são uma realidade consolidada. No Carf encontramos em cada turma julgadora pelo menos alguns membros com prática aduaneira prévia, o que possibilita discussões e análises probatórias mais profundas e de qualidade — questões essenciais para a devida aplicação do Direito e da garantia da segurança jurídica dos tutelados. Por outro lado, devemos admitir que já passou da hora do órgão criar turmas com competência aduaneira exclusiva, o que permitirá um ganho ainda maior na qualidade e velocidade dos julgamentos, questões de interesse da Fazenda e dos contribuintes e que é especialmente relevante quando se trata de um ramo tão dinâmico quanto o comércio exterior."

Cumpre salientar o gargalo muito bem pontuado pela conselheira, no que tange a necessidade de ampliar a quantidade de varas judiciais especializadas e turmas com competência exclusivamente aduaneira no Carf, visto que o entendimento de toda a realidade é epistemologicamente impossível, tendo em vista as multifaces da matéria.

Na mesma esteira, o doutor Leonardo Branco, também conselheiro titular da 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, em depoimento, enfatiza:

"No Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, nós temos a oportunidade de discutir assuntos que não são possíveis de serem abordados na ponta da aduana, naquele momento dramático do desembaraço em que as coisas estão acontecendo. Esse ambiente mais propício ao debate é importante para o amadurecimento do direito aduaneiro, que busca um delicado equilíbrio entre o exercício do controle sobre as portas de entrada e saída do território nacional e o fluxo internacional de mercadorias e serviços. É justamente neste tribunal que, sob uma composição paritária, nós temos a chance de fazer o controle de legalidade sobre as exigências aplicadas na fronteira, sejam elas tarifárias, técnicas ou sancionatórias. Sob este pequeno laboratório nós podemos colocar sob um argumentoscópio os fundamentos para a imposição de tributos, para a apreensão de bens, para a cominação de penas que podem chegar ao perdimento, ou para a revogação de um benefício fiscal. Por ali passam praticamente todas as questões da vida aduaneira e neste tribunal são definidas os precedentes que devem orientar a Administração ao lidar com questões de importação e exportação. O Carf é, portanto, um patrimônio jurídico da sociedade que deve ser fortalecido e aprimorado continuamente."

Nota-se, portanto, após detida análise da origem histórica, a indiscutível influência que o conselho administrativo exercia e, ainda, exerce sobre a sociedade no âmbito tributário e aduaneiro.

É evidente que precisamos conceder ao Carf a relevância que o órgão merece, visto que estamos tratando da verdadeira democracia fiscal, especialmente no âmbito aduaneiro.

Portanto, faz-se necessário buscar a tutela do Carf, acreditando em sua capacidade de proferir decisões acertadas dentro do que se espera de uma duração razoável do processo, mas sem perder a qualidade, resultando no próprio bem do exercício da cidadania fiscal.

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[1] Martins, Ana Luísa Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: 85 anos de imparcialidade na solução dos litígios fiscais / Ana Luísa Martins.  Rio de Janeiro : Capivara, 2010.

[2] Ibid., p. 35

[3] Ibid., p. 36

[4] Ibid., p. 44

[5] Ibid., p. 46

[6] BRASIL. Ministério da Economia. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Brasília, DF, 2022.

[7] Ibid., s.p.

[8] Martins, Ana Luísa Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: 85 anos de imparcialidade na solução dos litígios fiscais / Ana Luísa Martins. – Rio de Janeiro : Capivara, 2010.

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    é advogada, professora da disciplina de Direito Aduaneiro da pós-graduação da Faculdade Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Cesusc), coordenadora do Grupo de Estudos em Direito Aduaneiro da OAB/SC, contadora pela FAE Business School/PR, especialista pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/PR), membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro da OAB/SP e OAB/SC, coautora do livro "Direito Aduaneiro Contemporâneo" e assessora empresas que atuam no Comércio Internacional para otimizar as operações de importação e exportação no escritório Catta-Preta & Salomão Advogados.

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