Opinião

Cadmo e a serpente da modulação de efeitos no RE 1.063.187 (Tema 962)

Autor

  • João Rafael Arnoni Lanzoni

    é advogado tributarista no escritório Oliveira e Olivi Advogados Associados pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e MBA em Gestão de Tributos pela Fundação para Pesquisa e Desenvolvimento da Administração Contabilidade e Economia (Fundace/USP Ribeirão Preto).

5 de dezembro de 2022, 15h16

Assim como Cadmo, o Supremo Tribunal Federal ao definir os critérios para a modulação de efeitos no RE 1.063.187 acabou por se tornar a serpente que combateu.

Na mitologia grega existe a trágica figura de Cadmo, homem bom e justo que, por ordem do oráculo de Apólo, fundou a cidade de Tebas e durante esse processo abate uma serpente que assolava a região.

Contudo, ele não sabia que a serpente era um animal consagrado a Ares, que o amaldiçoou com a morte desventurosa dos seus herdeiros, fazendo com que ao final da vida, ao indagar os Deuses sobre a justiça no seu sofrimento, acabou sendo transformado em serpente.

A digressão acima é apropriada, pois, ao ler o voto do ilustre ministro relator Dias Toffoli nos Embargos de Declaração do Recurso Extraordinário 1.063.187, que estabeleceu os critérios para a modulação de efeitos, nota-se que a Suprema Corte se torna o agressor da Constituição Federal que ela tem como missão primordial combater.

Inicialmente, cumpre estabelecer que a crítica apresentada no presente texto não se volta para a aplicação da modulação de efeitos no caso concreto (que, aliás, pode até ser entendido que a aplicação foi correta, tendo enviaste que aquele caso possuía um entendimento jurisprudencial diverso do adotado na decisão), mas sim para um critério específico utilizado para estabelecer o termo inicial dos efeitos da modulação e que representa um precedente extremamente perigoso.

Na fundamentação da decisão do referido Embargos de Declaração, o ilustre ministro relator, com referendo posterior de todos os ministros da Suprema Corte, afirmou que a modulação de efeitos da decisão que reconheceu a inconstitucionalidade da incidência do IRPJ e CSLL sobre a correção aplicada na recuperação de indébito tributário deveria ser fixada na data do início do julgamento pelo plenário virtual para evitar os efeitos de uma corrida dos contribuintes ao judiciário:

"Ainda nesse contexto, cumpre realçar o que disse a União. O movimento de judicialização visando-se, principalmente, a recuperação dos valores pagos a título das tributações declaradas inconstitucionais muito se intensificou durante o próprio julgamento do mérito do presente tema. A proposta de modulação sugerida visa a combater tal espécie de corrida ao Poder Judiciário, a qual me parece muito prejudicial, considerando as citadas particularidades do presente tema e o contexto econômico-social no qual se encontra o País. Vai na mesma direção o voto por mim proferido no RE no 714.139/SC, Tema no 745".

Como se observa na citação acima, o Supremo Tribunal Federal, suposto defensor das garantias constitucionais, expressamente nega de forma transversal o acesso dos contribuintes ao Poder Judiciário para proteger o ente estatal que expropriou o patrimônio desse contribuinte de forma arbitrária e inconstitucional, agredindo os incisos XXXIV, a e XXXV, ambos, do artigo 5º, da Constituição Federal, que garante ao cidadão o direito de buscar no Poder Judiciário a proteção dos seus direitos:

"XXXIV – são a todos assegurados, independente do pagamento de taxas:

A) O direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;".

Causa impacto pensar que o voto transcrito, por uma questão econômica que afetaria o titã obeso e decadente que é o Estado, autoriza a supressão de um direito fundamental do cidadão para proteger uma coletividade subjetiva e acima das regras básicas que regem o Estado de Direito.

Importante observar que no caso em tela não se trata de ações que foram distribuídas após a definição dos efeitos modulatórios da decisão ou mesmo de ações que foram distribuídas após a definição do julgamento do mérito com a prolação do acórdão, mas, sim, de ações que foram distribuídas para garantir o direito dos contribuintes por receio de um eventual efeito modulatório ou para evitar qualquer questionamento por parte do Estado no processo de recuperação do seu patrimônio, ou seja, buscando ter segurança jurídica para os seus atos.

Ficando, assim, evidente que existia incerteza sobre o direito pleiteado e os efeitos que seriam dados ao julgamento a ser proferido com efeito repetitivo, não se pode afirmar que os contribuintes que distribuíram as suas ações judiciais após o início do julgamento e antes da sua conclusão agiram de forma abusiva perante o Poder Judiciário, para que as suas pretensões fossem afastadas dessa forma.

Ademais, o ordenamento jurídico pátrio possui mecanismos próprios para estabelecer os limites de acesso ao judiciário (por exemplo, prescrição, requisitos mínimos para a viabilidade das demandas judiciais etc), não sendo razoável que se crie critérios de limitação que possam ser aplicados posteriormente ao início do processo judicial para negar acesso aos seus direitos e à justiça.

Dessa forma, o mais alarmante da decisão é a criação de um critério temporal completamente subjetivo para a modulação de efeitos sob o argumento de alimentar o titã faminto e ineficiente do Estado, posto que apesar de adotar uma métrica (início do julgamento no Supremo Tribunal Federal), nada impede que essa métrica seja deslocada para outro momento processual do leading case, inviabilizando o acesso à justiça de forma discricionária para os demais contribuintes, causando dano à segurança jurídica.

Tal precedente cria um mecanismo de supressão de direitos fundamentais consagrados no artigo 5º, da Constituição Federal, que não deveria ser admitido no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que, dependendo da forma que for empregado, representaria o final da aplicação útil do processo judicial na esfera tributária.

Assim, tem-se que a Suprema Corte, na busca de fazer justiça social, além de fazer com que a prática reiterada de atos inconstitucionais pelo Estado para expropriar o contribuinte compense (uma vez que não terá que devolver o que tomou), ainda cria um precedente de modulação de efeitos que fere garantias constitucionais e coloca em risco até mesmo a utilidade da busca da jurisdição, uma vez que independentemente do momento em que buscar a tutela do Poder Judiciário para se proteger contra atos praticados pelo Estado, o contribuinte nunca terá certeza de obter um resultado útil para a sua demanda.

Portanto, tal qual Cadmo, o Supremo Tribunal Federal ao buscar afastar uma injustiça acaba por negar vigência à dispositivos da Constituição que deveria combater, mesmo que o seu objetivo final seja nobre.

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  • é advogado tributarista no escritório Oliveira e Olivi Advogados Associados, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e MBA em Gestão de Tributos pela Fundação para Pesquisa e Desenvolvimento da Administração, Contabilidade e Economia (Fundace/USP Ribeirão Preto).

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