Alterações trazidas na alienação de bens nas falências do Decreto-Lei 7.661/45
5 de dezembro de 2022, 8h00
A Lei 14.112/20 trouxe alterações à Lei nº 11.101/05 (LRF), as quais também impactaram as falências regidas pelo Decreto-Lei 7.661/45, seja de forma expressa, como no caso do artigo 158, V, da LRF c.c. artigo 5º, §5º, seja pela incidência dos princípios gerais falimentares por ela evidenciados no preenchimento de lacunas normativas. Diante de tais princípios, previstos no artigo 75 da LRF, interessante refletir sobre eventual impacto na alienação de bens nas falências regidas pelo Decreto-Lei 7.661/45.
O artigo 75, I da LRF dispõe que a falência objetiva preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos da atividade empresarial desenvolvida pela falida, esclarecendo, em seu parágrafo 2º, que isso se dá pela rápida realocação desses ativos na economia. Trata-se de princípio que deve nortear e orientar a alienação de ativos na falência. Reforçando essa constatação, a reforma de 2020 expressamente fixou prazo para alienação de bens e exigiu a elaboração de planejamento quanto aos procedimentos de realização de ativos.
Nesse sentido, prescreveu novos deveres ao administrador judicial, obrigando-o não apenas a apresentar planejamento para a venda dos ativos, em momento inicial da falência, ou seja, em 60 dias do termo de compromisso (artigo 99, §3º, LRF), como, também, impôs-lhe a obrigação de proceder à alienação de todos os bens da massa falida no prazo máximo de 180 dias, contados da data da arrecadação, sob pena de destituição (artigos 22, III, j, e 99, §3º LRF).
Muito embora o caráter peremptório desses prazos ou a gravidade de eventual penalidade a ser aplicada ao administrador judicial em caso de descumprimento possam ser discutidos, inquestionável que os dispositivos acima mencionados indicam preocupação do legislador em assegurar que haja célere alienação dos ativos no processo falimentar.
Tal preocupação se justifica. Além do inequívoco benefício social com a realocação desses ativos na economia, evitando que permaneçam improdutivos ou subutilizados, a rápida alienação de bens afasta, também, risco de obsolescência ou perda, sobretudo para ativos móveis ou intangíveis, e, ainda, reduz encargos da massa com sua manutenção ou pagamento de respectivos tributos. Mostra-se, portanto, de solução mais aderente às particularidades e necessidades de um processo concursal complexo, com multiplicidade de partes e interesses, como o é o caso da falência.
Razoável concluir, portanto, que as alterações acima mencionadas contextualizam a alienação de ativos na falência, evidenciando aspectos e particularidades que destoam da alienação judicial comum de bens, que ocorre em execuções individuais, disciplinada pelo Código de Processo Civil (CPC). Justificam-se pelas próprias características do processo falimentar, diante de sua natureza concursal coletiva e da situação de insolvência do devedor, apontando para um regime jurídico de alienação de bens que excepciona em alguns aspectos o regime comum do CPC. Por se tratar de regime jurídico especial, que excepciona as regras do CPC, questiona-se quanto à possibilidade de se aplicar o primeiro para complementar eventuais lacunas observadas no regramento do Decreto-Lei nº 7.661/45 na alienação de bens, em detrimento das regras gerais do segundo.
A constatação quanto à existência de particularidades no processo de alienação de bens no processo falimentar, em razão de sua natureza, não é irrelevante. Isso porque, conforme previsto no artigo 4º do Decreto-Lei nº 4.657/42 — Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB), quando a lei for omissa, o juiz deverá decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.
Doutrina tradicional esclarece que as normas do direito positivo são organizadas em institutos jurídicos, as quais são agrupadas e coordenadas por afinidade de conteúdo [1]. E a identificação dessa afinidade é que permitirá, em caso de lacunas, superá-la procurando soluções que permitam a manutenção da coerência sistêmica do ordenamento jurídico [2].
Os critérios elencados no artigo 4º da LINDB para supressão de lacunas têm por propósito, justamente, auxiliar a identificação, no caso concreto, de parâmetros para localizar soluções que integrem o ordenamento jurídico de forma coerente, harmônica e sem contradições [3].
Logo, no processo de integração das lacunas de normas previstas no Decreto-Lei nº 7.661/45 para alienação de bens, mostra-se razoável que sejam completadas primeiramente tomando-se como parâmetro as soluções contidas em normas que foram elaboradas considerando as especificidades da situação da falência, e, somente se estas também restarem omissas, observar soluções adotadas para a alienação judicial de bens em geral, em processos de execução individual.
Necessário observar que, por falta de outras regras, as lacunas normativas do Decreto-Lei nº 7.661/45 no tocante à alienação de bens sempre foram supridas considerando-se as normas do CPC para alienação judicial de bens, em especial àquelas que disciplinam leilões judiciais.
Contudo, diante das novas regras trazidas pela reforma de 2020 sobre essa temática e, em especial, dos princípios específicos do direito falimentar por ela revelados, justifica-se que as normas da Lei nº 14.112/20 sejam consideradas de forma principal para suprir lacunas observadas no Decreto-Lei nº 7.661/45, e não as normas da legislação processual civil comum, as quais devem ser utilizadas somente de forma residual e se não conflitante. Trata-se de entendimento que assegura a obtenção de solução coerente e harmônica para os diversos casos concretos.
Nesse contexto, mostra-se interessante o esclarecimento trazido pela reforma, no artigo 142, §2º-A, I, da LRF, de que a alienação de bens na falência é feita independentemente da conjuntura de mercado no momento da venda ser favorável ou não, em decorrência do seu caráter forçado. Essa previsão é compatível com orientação, trazida pela mesma legislação, de que as alienações sejam feitas de forma célere, permitindo rápida realocação útil de ativos na economia – objetivo pretendido com o procedimento especial da falência.
Apesar de as regras processuais de tramitação do processo falimentar do Decreto-Lei nº 7.661/45 serem relativamente distintas daquelas da LRF, não se pode ignorar que, pela observância de ambas, processa-se o mesmo instituto jurídico: a falência. Espera-se, em qualquer um dos casos, que o processamento judicial da falência atinja as finalidades especiais que justificaram a previsão de regime especial para tratamento da insolvência empresarial, em comparação com a insolvência civil.
Sob essa perspectiva, mostra-se logicamente razoável aplicar também às falências regidas pelo decreto as mesmas normas que aclaram e contextualizam a alienação de ativos nas falências, ainda que estas estejam disciplinadas na Lei nº 11.101/05, sob pena de, para um mesmo instituto jurídico, ter-se soluções distintas. Afinal, se houve reconhecimento legal de que as alienações são feitas na falência regida pela LRF em contexto de venda forçada, justificando-se a sua realização independentemente de condições favoráveis ou não de mercado, o mesmo raciocínio deve ser válido também para as falências do decreto, em atenção à analogia e a similitude das situações.
Outra particularidade da alienação de bens na falência foi a não adoção do conceito de preço vil (artigo 142, §2º-A, V, LRF), o qual é previsto no CPC. Considerando-se o critério exposto no parágrafo acima, não aplicar o parâmetro trazido pela reforma de 2020 para suprimir uma lacuna no decreto, mas sim o do CPC, resultaria em falta de coerência e de harmonia nas regras que disciplinam o instituto falimentar.
O mesmo raciocínio se aplica no tocante à regra que estipula que leilões judiciais na falência da LRF devem ser feitos em três chamadas, sendo que, na última, a qualquer valor, desvinculando-se da avaliação realizada (artigo 142, §3º-A, LRF). Evidentemente que, em atenção à solução harmônica e coerente, deve ser este parâmetro considerado para suprir eventual lacuna do Decreto-Lei nº 7.661/45 para disciplina de leilões judiciais em falências.
A reflexão proposta acima não conflita com o disposto no artigo 192 da LRF. Isso porque, enquanto este artigo dispõe sobre a efetiva aplicação e incidência da lei para determinados processos de falência, a reflexão ora proposta questiona o fenômeno de integração de lacunas normativas, pela aplicação da analogia e de princípios gerais do diverso. São situações, portanto, distintas.
Resta claro, portanto, que a reforma de 2020 trouxe regime jurídico específico para a alienação de bens em processos falimentares, com regras próprias, orientadas por valores e objetivos específicos do instituto jurídico da falência, os quais devem, em atenção ao disposto no artigo 4º da LINDB, ser utilizados preferencialmente com parâmetros para superação de lacunas normativas existentes no Decreto-Lei nº 7.661/45, em detrimento das regras gerais previstas no CPC.
[1] "Todo instituto jurídico tem no sistema o seu lugar próprio. Encontrá-lo é determinar-lhe a natureza. A localização (sedes materiae) ajuda a compreensão e a aplicação das regras agrupadas. A locução instituto jurídico usa-se em dois sentidos: ora para designar a matéria que constitui o objeto de disciplina jurídica por normas agrupadas e coordenadas, ora para qualifica-las. A coordenação processa-se pela afinidade de conteúdo. Os institutos jurídicos desdobram-se mediante particularizações, que decorrem da sistematização das leis, ganhando autonomia, embora se conservem unidos aos que têm maior cunho de generalidade". (Gomes, Orlando. Editora Forense, Rio de Janeiro, 1998, 13ª edição, fls. 10/11).
[2] "A lacuna constitui um estado incompleto do sistema que deve ser colmatado ante o princípio da plenitude do ordenamento jurídico. Daí a a importante missão do artigo 4º da Lei de Introdução, que dá ao magistrado, impedido de furtar-se a uma decisão, a possibilidade de integrar ou preencher a lacuna, de forma que possa chegar a uma solução adequada. Trata-se do fenômeno da integração normativa". (DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro Interpretada, 19ª edição. Saraivajus. 2017. f l. 28).
[3] "Havendo lacuna ou antinomia, o jurista, ante o caráter dinâmico do direito, ao sistematiza-lo, deve apontar critério para solucioná-las. O processo de sistematização jurídica compreende várias operações que entendem não só a exibir as propriedades normativas, fáticas e axiológicas do sistema e seus defeitos formais (antinomia e lacunas), mas também a reformulá-lo para alcançar um sistema harmônico, atendendo aos postulados de capacidade total de explicação, ausência de contradições e aplicabilidade fecunda do direito ao caso concreto". (DINIZ, Maria Helena. Op. cit. f l. 29).
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