Opinião

Considerações sobre reforma tributária, regressividade e ilusão fiscal

Autores

  • Pedro Júlio Sales D'Araújo

    é doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) mestre e bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) especialista em Direito Tributário pela FGV-SP ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha) e advogado.

  • Raquel de Andrade Vieira Alves

    é doutoranda em Direito Financeiro pela USP mestre em finanças públicas tributação e desenvolvimento pela Uerj ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal autora do livro Federalismo Fiscal Brasileiro e as Contribuições cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem coordenadora do grupo de pesquisa Formação de Precedentes nos Tribunais Superiores (vinculado à Comissão de Tribunais Superiores da OAB-DF) procuradora-geral adjunta de assuntos tributários da OAB-DF e advogada.

5 de dezembro de 2022, 19h48

No momento em que este artigo é escrito, o Brasil passa por uma transição política que tende a ter um impacto decisivo nos debates legislativos em torno das propostas de reforma tributária.

Embora seja unanimidade a necessidade de se modificar a estrutura de nossa matriz tributária, que há muito se apresenta desconectada da realidade social e econômica sobre a qual se impõe, não há consensos mínimos acerca do resultado que se pretende obter. Exemplo de tal constatação pode ser observado a partir da recente I Jornada de Direito Tributário, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, na qual a comissão de reforma tributária não conseguiu alcançar a aprovação de um enunciado sequer [1].

A falta de consenso é consequência, em grande medida, da própria complexidade do tema, acirrada por um verdadeiro jogo de forças e interesses antagônicos que costumam se opor nas mais diversas searas: federativa, econômica e/ou social. Afinal de contas, debater a conformação da matriz tributária de um país nada mais é do que apreender como se dará a relação e distribuição de custos e resultados entre os mais diversos segmentos ou grupos de uma dada sociedade. Sempre haverá "prejudicados" e "beneficiados" pelo desenho normativo que conforma a matriz tributária eleita.

Ainda assim, em que pese ser campo de intensa disputa, a reforma tributária hoje está calcada basicamente nos dois projetos cujo trâmite legislativo se encontra em estágio mais avançado: a PEC 45 e a PEC 110, ambas buscando a uniformização da tributação sobre o consumo em torno de um imposto sobre o valor agregado.

Para além dos diversos pontos que merecem uma análise detida, o presente artigo se concentrará no exame de um dos elementos centrais de ambos os modelos propostos: a estruturação de uma política de devolução de tributos aos contribuintes de baixa renda como forma de compensar o fim das desonerações de tributos incidentes sobre o consumo de produtos essenciais, tais como os alimentos integrantes da cesta básica. A importância de se debruçar sobre esse aspecto das propostas reside no fato de que o fim das desonerações com a respectiva devolução do IBS incidente sobre o consumo das famílias economicamente vulneráveis é apresentada como contrapartida à regressividade inerente à tributação sobre o consumo. Regressividade essa que acreditamos será em muito ampliada, caso se extirpe o tratamento fiscal favorecido dado atualmente a certos bens e serviços consumidos.

Argumenta-se que o sistema de devolução, aliado à adoção de alíquotas uniformes, representaria um mecanismo mais eficiente de redistribuição de renda, uma vez que focaria o emprego de recursos públicos para combate à desigualdade social nas famílias de baixa renda, ao passo em que a desoneração tributária, além de poder ser aproveitada indistintamente por todos os consumidores — de alta e de baixa renda —, poderia ser apropriada pelas diferentes etapas da cadeia de produção e circulação de bens e serviços, de forma que nada garantiria o devido repasse do benefício aos consumidores finais.

Embora acreditemos que a redistribuição de renda deva ser encarada como mecanismo inerente a qualquer política fiscal, uma vez que compõe os objetivos fundamentais da República, reconhecendo a eficiência de políticas de transferência de renda, tais como as adotadas no Brasil nas últimas décadas, é necessário colocar em perspectiva a pretendida devolução tributária, nos termos em que desenhada pelas propostas em referência.

Primeiro, consideramos imprópria a atribuição de um viés redistributivo a essa política, tendo em vista que o seu desenho, a bem da verdade, se volta a compensar o possível aprofundamento da regressividade de nossa matriz tributária a partir do estabelecimento de um imposto sobre o consumo com alíquotas únicas. Embora possa não ser o melhor modelo, a adoção de alíquotas seletivas sobre determinados consumos — como as hoje existentes — tende a auxiliar na atenuação da regressividade tributária, ainda que evidentemente não a extirpe.

Como a regressividade da tributação indireta é explicada em grande parte pela maior predisposição das famílias economicamente desfavorecidas a consumir a renda auferida, a uniformização de alíquotas propostas para um futuro IBS implicará no provável aumento da tributação sobre o consumo de bens essenciais, representando uma consequente ampliação do encargo fiscal suportado por tal parcela da população [2].

Assim, diante do agravamento do viés regressivo da arrecadação, a devolução dos tributos às famílias de baixa renda representará a contrapartida necessária para compensação do inevitável aumento do custo de vida decorrente das reformas propostas.

Disso resulta não ser possível assumir que a referida política de devolução revela, per se, um caráter redistributivo mais forte, com a melhoria do bem-estar das classes mais vulneráveis. É dizer, eventual extinção dos benefícios deve necessariamente ser acompanhada de um mecanismo que possibilite a concretização de um ideal de capacidade contributiva, enquanto direito fundamental do consumidor de baixa renda, sob pena de configurar-se inconstitucional.

Tal ponto, inclusive, nos leva a uma segunda sorte de preocupações: o fato de nenhum dos textos propostos abordar a devolução como medida de caráter obrigatório, com sede constitucional, limitando-se a delegar o desenho normativo a uma futura lei complementar e ou mesmo atrelar a restituição a uma política de transferência de renda, possivelmente nos moldes dos programas sociais hoje existentes.

Como dito acima, tal devolução não deve ser confundida com qualquer política de transferência de renda; é contrapartida intrínseca a eventual fim da política de alíquotas seletivas e, por esse motivo, deveria estar não apenas prevista na norma constitucional reformadora, como também a salvo de qualquer forma de contingenciamento ou restrição orçamentária.

A bem da verdade, a devolução sequer deveria compor as disputas travadas por ocasião da elaboração da lei orçamentária, campo de influxos políticos que ficará por demais sobrecarregado com o anunciado fim dos diversos regimes fiscais diferenciados [3]. Referida restituição tem de ser imediata e incondicionada, características essas que também não se encontram expressamente contempladas nas propostas em comento.

A razão de ser de tais preocupações é simples e, coincidentemente, está na ordem do dia, uma vez que o governo eleito no último pleito presidencial tem encontrado resistências para a retirada dos gastos sociais do teto de gastos orçamentários, inclusive com a proposição de uma nova PEC, voltada especificamente à transição, recebendo duras críticas por aqueles que defendem uma política de austeridade fiscal [4].

Imagine-se a hipótese de a devolução do IBS sofrer a mesma sorte de restrições: como ficariam as famílias de baixa renda com o aumento do custo de vida causado pela tributação de itens de primeira necessidade sem a expressa garantia constitucional da efetiva restituição?

Nunca é demais lembrar que, para além de se discutir a melhor forma de combater a regressividade inerente à tributação sobre o consumo, políticas de desoneração da cadeia produtiva relativa a itens integrantes da cesta básica cumprem o importante papel de redução de custos na aquisição desses itens essenciais. E ainda que se possa afirmar que a política desonerativa pode, na prática, não ser integralmente repassada ao preço final, é igualmente certo que o Estado não pode, de forma alguma, colaborar para esse aumento de custo de vida. Interessante seria buscar formas de conciliar ambas as medidas, potencializando o cumprimento dos objetivos constitucionais.

Nesse ponto, ao invés de simplesmente defender-se a extirpação do ordenamento jurídico de todos os benefícios direcionados à tributação sobre o consumo, melhor seria avaliar a essencialidade de cada um dos itens integrantes da cesta básica, justificando ou não serem alvos de uma política de alíquotas reduzidas. Ou ainda, que o debate em torno das propostas de reforma incluísse o estabelecimento de medidas voltadas ao controle de eficácia dos próprios incentivos, ainda que tais instrumentos estejam inseridos em outra seara, para além do Direito Tributário. Aliás, referido debate deveria incluir também o controle de resultados que não se limite ao controle do processo de formação da lei, tampouco se resuma ao cotejo entre o texto da lei e a norma constitucional [5]. Com efeito, tomando de empréstimo o ditado popular: não é necessário amputar o braço para tratar o dedo doente.

Caso, porém, o poder público opte pela via da tributação, deve ao menos garantir, enquanto direito fundamental constitucionalmente assegurado, um mecanismo eficiente de retorno de valores que, cobrados indiretamente dos indivíduos de menor capacidade contributiva, em muito excedem o mínimo existencial. E não o atrelar a uma pontual transferência de renda, sujeita às mais diversas ingerências políticas e contingenciamentos orçamentários.

Por fim, ainda relacionado a tais preocupações, colocamos para reflexão um terceiro aspecto da política em análise: o risco de o desenho proposto acarretar alguma forma de ilusão fiscal.

Enquanto corrente teórica, a teoria da ilusão fiscal surge no início do século XX como uma explicação para aquelas estruturas fiscais voltadas à redução da resistência dos contribuintes em relação à atividade financeira do Estado [6]. Tal linha de pensamento advoga que a política tributária de um dado governo se orientaria, tanto quanto possível, por meio de figuras ilusórias que mascarariam o real encargo tributário sofrido pelos indivíduos, ao mesmo tempo que potencializariam as vantagens por eles usufruídas, criando um sentimento de maior aceitação ao exercício do poder político. É dizer, será ilusória a atividade financeira quanto mais vier a se "movimentar" por meio de figuras anestesiantes quando da arrecadação de receitas, e mais "propagandear" o gasto, inclusive, como forma de demonstrar uma suposta eficiência na gestão dos recursos públicos.

A preocupação ora lançada se deve ao fato de que tributos sobre o consumo guardam forte característica anestesiante, sendo pouco percebidos pelos consumidores uma vez que seguem embutidos nos preços das mercadorias [7]. A menos que se promovam políticas sérias de informação para a população, tais encargos tendem a ser associados aos demais custos de produção e circulação da mercadoria, com a repercussão econômica sendo muitas vezes sequer considerada por aqueles que adquirem tais itens.

O ponto, inclusive, chama a atenção se considerarmos que a promoção de uma maior transparência fiscal representa uma das linhas mestras das propostas de reforma, que pregam na simplificação um ideal informativo que, por si só, seria suficiente para estimular a participação social na formatação das políticas fiscais. Entendemos ser necessário algo a mais.

Caso aprovada a reforma tributária nos atuais moldes, e sendo ela desacompanhada de uma efetiva política de transparência e educação fiscal, há o risco de os indivíduos não apreenderem o aumento dos custos dos produtos como decorrentes da adoção de uma alíquota uniforme e sem distinção entre os setores da economia, creditando à devolução dos tributos um caráter assistencialista, criado artificialmente a partir de um cenário ilusório, em especial para as famílias de baixa renda, alvos certos de referida política pública. Tem-se o cenário típico da ilusão fiscal, com a possibilidade de um aumento dos tributos indiretos — tipicamente anestesiantes —, ser acompanhado de um gasto público mais facilmente percebido pela população, qual seja: a devolução direta e focada do encargo fiscal no público de baixa renda, sob as vestes de "mecanismos de transferência de renda" – e não de realização da capacidade contributiva e do mínimo existencial, como aqui se propõe.

Como acima afirmado, as presentes colocações não se destinam à oposição à formação de políticas efetivas e eficazes de redução das desigualdades sociais. Defendemos que tal norte deve orientar incondicionalmente a atuação de todo e qualquer governo democraticamente eleito, justamente por constituir inafastável objetivo fundamental da República, e reconhecemos nas propostas o mérito de endereçar a discussão na arena pública. O que se pretende aqui é tão somente lançar um novo olhar, sempre no intuito de melhor contribuir para o avanço nos debates e o aperfeiçoamento de nossa matriz tributária, a partir da conjugação do binômio transparência e progressividade enquanto busca pela concretização de uma efetiva cidadania fiscal [8].

 


[2] ZOCKUN, M. H. Equidade na tributação. In: AFONSO, J. R. et al. (Orgs.). Tributação e desigualdade. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 24.

[3] Veja-se, como exemplo, os recentes debates ocasionados na seara do orçamento público, em que Estados e União se encaminham para a extinção dos diversos benefícios fiscais, com o respectivo direcionamento dos recursos para fundos específicos que servirão para o financiamento de políticas públicas específicas. Nesse aspecto, mencionamos a recente Portaria TCU n° 174, de 24 de novembro de 2022, que aprova o Referencial de Controle de Benefícios Tributários e notícia veiculada em 11.10.22: https://www.jota.info/coberturas-especiais/seguranca-juridica-desenvolvimento/por-que-e-inconstitucional-a-criacao-de-fundos-que-limitam-beneficios-fiscais-11102022. Acesso em: 26 nov. 2022.

[4] Confirmando nossas preocupações, chama a atenção, inclusive, a defesa na arena pública de que o aumento pontual do Auxílio Brasil já serviria como justificativa para revisão em definitivo de tais benefícios fiscais concedidos à cesta básica, como se a política de transferência tal qual hoje desenhada fosse contrapartida constitucionalmente assegurada ao provável aumento dos custos de vida causados pelo fim de referidas desonerações https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/11/pt-tenta-convencer-mercado-de-que-buscara-compensacao-para-gastos-da-pec.shtml. Acessado em 29/11/2022.

[5] CORREIA NETO, Celso de Barros. O avesso do tributo: incentivos e renúncias fiscais no direito brasileiro. 2ª Ed. São Paulo: Almedina, 2016. p. 280.

[6] PUVIANI, Amilcare. Teoria de la ilusión financiera. Trad. Alvaro Rodrigues Bereijo. Trad. Alvaro Rodrigues Bereijo. Madrid: Instituto de estudios fiscales, 1972.

[7] SAUSGRUBER R, TYRAN J (2005) Testing the Mill hypothesis of fiscal illusion. Public Choice 122(1):39–68; SCHMÖLDERS G (1960) Das irrationale in der öffentlichen finanzwirtschaft. Rowohlt, Reinbeck.

[8] D'ARAÚJO, Pedro Júlio Sales. Entre a transparência e a ilusão: a regressividade cognitiva da matriz tributária brasileira. 2021. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2133/tde-15082022-085421/pt-br.php. Acesso em: 23/11/2022.

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    é doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), mestre e bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), especialista em Direito Tributário pela FGV-SP, ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal, pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha) e advogado.

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    é doutoranda em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal, autora do livro "Federalismo Fiscal Brasileiro e as Contribuições" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017), cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem e advogada.

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