Opinião

Da presunção de veracidade dos lançamentos feitos pelo contribuinte

Autor

  • Alexandre Levinzon

    é advogado tributarista especialista em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e pós-graduado em Direito Tributário LL.M. – Master of Laws pelo Insper e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SP.

5 de dezembro de 2022, 18h28

Segundo a legislação comercial e contábil, os documentos fiscais emitidos pelo contribuinte e os correspondentes registros em seus livros fiscais têm presunção de veracidade, refletindo a ocorrência das operações ou prestações neles contidas.

Esse é o entendimento do Conselho de Contribuinte da Secretaria da Fazenda do estado do Rio de Janeiro, como se vê abaixo:

Não se pode olvidar que, nos termos da própria legislação comercial e contábil, os documentos fiscais emitidos e os correspondentes registros em seus livros fiscais têm presunção de veracidade, refletindo a ocorrência das operações ou prestações neles contidas.

Sendo assim, verificada a emissão de NF-e com ICMS retido, e não havendo sido as mesmas canceladas pelo Contribuinte, como lhe faculta a legislação, o Fisco deve concluir que tais operações existiram efetivamente.

(Conselho de Contribuintes  Processo nº E-04/044/76/2017  RECURSO Nº 70.157 – ACÓRDÃO Nº 17.012 – AUTO DE INFRAÇÃO Nº 03.503547-6  RELATOR CONSELHEIRO PAULO EDUARDO DE NAZARETH MESQUITA – Sessão de 05 de junho de 2018 – PRIMEIRA CÂMARA  PUBLICAÇÃO DA DECISÃO DO ACÓRDÃO NO D.O.: 15/06/2018).

Como exemplo, o estado de São Paulo instituiu tal presunção por meio de Lei Complementar, mais especificamente o "código de direitos, garantias e obrigações do contribuinte no Estado de São Paulo", instituído pela Lei Complementar do Estado de São Paulo nº 939/2003, in verbis:

"LEI COMPLEMENTAR DO ESTADO DE SÃO PAULO Nº 939, DE 03 DE ABRIL DE 2003
Artigo 5º – São garantias do contribuinte:
I – a exclusão da responsabilidade pelo pagamento de tributo e de multa não previstos em lei;
II – a faculdade de corrigir obrigação tributária, antes de iniciado o procedimento fiscal, mediante prévia autorização do fisco e observada a legislação aplicável, em prazo compatível e razoável;
III – a presunção relativa da verdade nos lançamentos contidos em seus livros e documentos contábeis ou fiscais, quando fundamentados em documentação hábil;."

Em recente julgamento do E. STJ em sede de Recursos Repetitivos, ficou expressamente consignada a presunção de validade do lançamento realizado pelo contribuinte em face do princípio da boa-fé objetiva, in verbis:

"SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS (ITBI). BASE DE CÁLCULO. VINCULAÇÃO COM IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL URBANO (IPTU). INEXISTÊNCIA. VALOR VENAL DECLARADO PELO CONTRIBUINTE. PRESUNÇÃO DE VERACIDADE. REVISÃO PELO FISCO. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE. PRÉVIO VALOR DE REFERÊNCIA. ADOÇÃO. INVIABILIDADE.
(…)
5. Os lançamentos por declaração ou por homologação se justificam pelas várias circunstâncias que podem interferir no específico valor de mercado de cada imóvel transacionado, circunstâncias cujo conhecimento integral somente os negociantes têm ou deveriam ter para melhor avaliar o real valor do bem quando da realização do negócio, sendo essa a principal razão da impossibilidade prática da realização do lançamento originário de ofício, ainda que autorizado pelo legislador local, pois o fisco não tem como possuir, previamente, o conhecimento de todas as variáveis determinantes para a composição do valor do imóvel transmitido.
6. Em face do princípio da boa-fé objetiva, o valor da transação declarado pelo contribuinte presume-se condizente com o valor médio de mercado do bem imóvel transacionado, presunção que somente pode ser afastada pelo fisco se esse valor se mostrar, de pronto, incompatível com a realidade, estando, nessa hipótese, justificada a instauração do procedimento próprio para o arbitramento da base de cálculo, em que deve ser assegurado ao contribuinte o contraditório necessário para apresentação das peculiaridades que amparariam o quantum informado (artigo 148 do CTN).
7. A prévia adoção de um valor de referência pela Administração configura indevido lançamento de ofício do ITBI por mera estimativa e subverte o procedimento instituído no artigo 148 do CTN, pois representa arbitramento da base de cálculo sem prévio juízo quanto à fidedignidade da declaração do sujeito passivo.
8. Para o fim preconizado no artigo 1.039 do CPC/2015, firmam-se as seguintes teses: a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN);
c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.
9. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp nº 1.937.821/SP, relator ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, DJe de 3/3/2022)".

Esse entendimento, inclusive, condiz com outro posicionamento jurisprudencial acerca de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, caso não haja pagamento no prazo ou haja pagamento a menor, a Fazenda Pública deve efetuar o lançamento do tributo de ofício, sendo certo que o valor declarado pode ser imediatamente inscrito em dívida ativa, tornando-se exigível, independentemente de procedimento administrativo ou de notificação do contribuinte, litteris:

"SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ISS. TRIBUTO DECLARADO E NÃO PAGO. DESNECESSIDADE DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE DE INSCRIÇÃO NA DÍVIDA ATIVA. MATÉRIA NÃO ALEGADA EM RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO EM RECURSO POSTERIOR. INOVAÇÃO RECURSAL. PRECLUSÃO.
1. Em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, caso não haja pagamento no prazo ou haja pagamento a menor, a Fazenda Pública deve efetuar o lançamento do tributo de ofício, sendo certo que o valor declarado pode ser imediatamente inscrito em dívida ativa, tornando-se exigível, independentemente de procedimento administrativo ou de notificação do contribuinte. Nesse sentido: AgRg no Ag 1337778/MG, relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 3/2/2011; REsp 658.066/SP, relatora ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ 14/6/2007.
2. Quanto à apontada omissão no que tange ao argumento de que 'não consta na certidão o requisito previsto no artigo 202, II, do CTN, que é 'a quantia devida e a maneira de calcular os juros de mora acrescidos', não se pode conhecer da irresignação. Isso porque o Recurso Especial não tratou do referido ponto. Com efeito, nas razões recursais, a ora agravante limitou a sustentar a ofensa aos artigos 142 e 201 do CTN, por entender ilegal a ausência de contraditório. Também não opôs Embargos de Declaração a fim de sanar possível omissão no acórdão preferido na origem, tendo em vista a ausência de prequestionamento do referido tema (e não poderia, ante a preclusão operada).
3. Agravo Interno não provido.
(AgInt nos EDcl no REsp nº 1.769.490/TO, relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 18/10/2019)".

Ora, se a declaração do contribuinte tem o condão de ser executada de imediato, sem necessidade de prévio processo administrativo, ela tem que ter o mesmo valor (presunção de veracidade) perante o Fisco na apuração de eventuais irregularidades.

Ainda nesse sentido, o E. STJ tem o entendimento de que, no lançamento fiscal, a Fazenda Pública deve demonstrar, no correspondente auto de infração, a metodologia seguida para arbitramento do imposto, in verbis:

"SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA TRIBUTÁRIO. LANÇAMENTO FISCAL. REQUISITOS DO AUTO DE INFRAÇÃO E ONUS DA PROVA. O LANÇAMENTO FISCAL, ESPECIE DE ATO ADMINISTRATIVO, GOZA DA PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE; ESSA CIRCUNSTÂNCIA, TODAVIA, NÃO DISPENSA A FAZENDA PUBLICA DE DEMONSTRAR, NO CORRESPONDENTE AUTO DE INFRAÇÃO, A METODOLOGIA SEGUIDA PARA O ARBITRAMENTO DO IMPOSTO  EXIGENCIA QUE NADA TEM A VER COM A INVERSÃO DO ONUS DA PROVA, RESULTANDO DA NATUREZA DO LANÇAMENTO FISCAL, QUE DEVE SER MOTIVADO.
RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.
(…)
O lançamento fiscal, espécie de ato administrativo, goza da presunção de legitimidade; essa circunstância, todavia, não dispensa a Fazenda Pública de demonstrar, no correspondente auto de infração, a metodologia seguida para arbitramento do imposto  exigência que nada tem a ver com a inversão do ônus da prova, resultando da natureza do lançamento fiscal, que deve ser motivado.
(REsp nº 48.516/SP, relator ministro Ari Pargendler, Segunda Turma, julgado em 23/9/1997, DJ de 13/10/1997, p. 51553.)".

Nota-se que todo arcabouço legal e jurídico é pacífico no sentido de que: 1) há presunção de veracidade nos documentos fiscais emitidos pelo contribuinte e nos correspondentes registros em seus livros fiscais, refletindo a ocorrência das operações ou prestações neles contidas; e 2) o lançamento tributário realizado por autoridade pública competente deve ser devidamente motivado.

Portanto, a presunção de legitimidade do ato administrativo não inverte o ônus da prova no lançamento tributário.

Nesse sentido, veja-se abaixo decisões proferidas pelo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), órgão vinculado atualmente ao Ministério da Economia, cuja competência é o julgamento de autuações na esfera federal. Elas são claras no sentido de que é ônus do Fisco demonstrar e provar a ocorrência, ou não, do fato jurídico tributário ou da prática de infração tributária, in verbis:

"CONSELHO ADMINISTRATIVO DE RECURSOS FISCAIS
IRPJ – FALTA DE CARACTERIZAÇÃO DA INFRAÇÃO  Em respeito à legalidade, verdade material e segurança jurídica não pode subsistir lançamento de crédito tributário quando não estiver devidamente demonstrada e provada a efetiva subsunção da realidade factual à hipótese descrita na lei como infração à legislação tributária.
ÔNUS DA PROVA – Na relação jurídico-tributária o ônus probandi incumbit ei qui dicit. Compete ao Fisco, ab initio, investigar, diligenciar, demonstrar e provar a ocorrência, ou não, do fato jurídico tributário ou da prática de infração praticada no sentido de realizar a legalidade, o devido processo legal, a verdade material, o contraditório e a ampla defesa. O sujeito passivo somente poderá ser compelido a produzir provas em contrário quando puder ter pleno conhecimento da infração com vista a elidir a respectiva imputação.
PROCESSOS REFLEXOS  PIS  Cofins – IRF  CSLL  Respeitando-se a materialidade do respectivo fato gerador, a decisão prolatada no processo principal será aplicada aos processos tidos como decorrentes, face a íntima relação de causa e efeito.
Recurso provido.
(Carf 
 Processo nº 10283.002174/97-74  Data da Sessão: 22/05/2001  relatora Mary Elbe Gomes Queiroz  Acórdão nº 103-20594).
AUTO DE INFRAÇÃO. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO. NULIDADE. VÍCIO MATERIAL. A ausência da descrição completa dos motivos que levaram a autoridade fiscal a lavrar o lançamento constitui causa de nulidade, caracterizando-se como vício material.

Recurso voluntário provido.
(…)
Acordam os membros do colegiado, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso voluntário, declarando a nulidade do auto de infração por vício material, nos termos do relatório e do voto que integram o presente julgado.
(CARF – Processo nº 16327.002038/2007-59 – RECURSO VOLUNTARIO  Data da Sessão: 30/01/2018 — relator
SEMÍRAMIS DE OLIVEIRA DURO  Acórdão nº 3301-004.178)".

Inclusive, considerando que o lançamento, que é ato praticado por autoridade administrativa, ele está sujeito, obviamente, aos princípios de direito administrativo, em especial ao princípio da motivação dos atos administrativos.

O princípio da motivação é bem explicado por Celso Antonio Bandeira de Melo, in verbis:

"Dito princípio implica para a Administração o dever de justificar seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo.
A motivação deve ser prévia ou contemporânea à expedição do ato. (…)."
(Mello, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. Malheiros Editores. 18ª Edição. São Paulo: 2005, p. 102).

"A falta de motivação do ato administrativo (no caso o lançamento tributário) também gera cerceamento de defesa, ferindo, por consequência, o artigo 5º, LV, da Constituição Federal, uma vez que é assegurado aos litigantes, tanto no processo judicial, como no processo administrativo, o conhecimento de todas as acusações e deveres que lhe são imputados. Afinal, sem o conhecimento devido não é possível a elaboração com propriedade de impugnação, ficando prejudicado o direito de se defender — e isso foi exatamente o que aconteceu com a Autora, que não teve o direito de se defender do auto de infração a ela impingido."

Estabelecida a premissa do tópico anterior no sentido de que os lançamentos contábeis realizados pelo contribuinte têm presunção de veracidade, há a consequência lógica de que o ônus da prova de inverdade de tais lançamentos é atribuído ao Fisco.

Essa questão pode ter aplicabilidade em várias situações. Por exemplo, ao realizar a glosa de creditamento de ICMS, não pode a autoridade fiscal simplesmente desclassificar a operação sem qualquer justificativa.

Em certos casos autoridades simplesmente anexam uma simples planilha com a desclassificação de diversas operações, sem analisar o contexto fático em que elas se deram. Isso faz com que os setores de contabilidade e financeiro tenham que se debruçar por horas, senão dias, para explicar cada uma das suas operações, enquanto que lhes é garantida a presunção de veracidade dos lançamentos realizados pelo contribuinte.

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