Opinião

Dogmática Penal e Teoria de Conhecimento fundada na realidade

Autor

  • Alexandre Langaro

    é advogado criminal recursal e parecerista autor de livros e artigos jurídicos articulista da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção São Paulo membro da Comissão de Defesa Assistência e Prerrogativas dos Advogados e da Comissão de Direitos Humanos Sobral Pinto da Seccional do Rio Grande do Sul da Ordem dos Advogados do Brasil tendo estudado o NY Criminal Procedure Law em Nova York.

5 de dezembro de 2022, 17h00

O Poder Judiciário, como regra, continua aplicando, no dia a dia dos julgamentos dos casos penais, a Metodologia Neokantiana [Hegel e Kant, dentre outros, por exemplo].

A Metodologia Neokantiana, todavia, simplesmente fecha os olhos para a realidade, direcionando tudo por intermédio dos "valores". No que potencializa, decerto, os elementos abstratos, normativos, em ordem a colocar em plano secundário — isso na melhor das hipóteses — os dados sociológicos. Dados sociológicos coletados a partir da realidade social carcerária circundante.

Um exemplo clássico disso — da aplicação da Metologia Neokantiana — pode ser visualizado — ainda hoje! — na maioria das sentenças penais condenatórias; sentenças penais condenatórias que, invariavelmente, ao fixarem o castigo penal, repetem, à exaustão, os dizeres ocos, gerais, indeterminados, abstratos e padronizados a que se refere à parte final do artigo 59, CP — "conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime":

Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às
circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e
suficiente para reprovação e prevenção do crime: […].
[1]

Bem se sabe que a pena — ao menos aqui no Brasil — não "reprova", tampouco "previne", "o crime"; justo pelo contrário, o índice de reincidência, geral ou específica, é altíssimo e, sobretudo, alarmante — o cárcere tem porta giratória larguíssima.

O uso, então, dessa metodologia, pelo Estado-Juiz, no campo da Execução Penal, oculta a realidade penitenciária. [E nisso certamente há uma funcionalidade maior, do contrário não continuaria a acontecer diariamente]. À medida que considera apenas elementos normativos — repita-se; elementos normativos, e lógicos — às vezes coerentes —, que passam longe do cotidiano do cárcere brasileiro.

Acontece, todavia, que a Execução Penal tem de ser levada a cabo a partir da realidade social prisional. Realidade social como ponto de saída — e a norma como ponto chegada. Realidade social coletada, então, a partir de base empírica idônea, tendo em conta, sobretudo, a Sociologia [2]

A Dogmática Penal — ou método, se se preferir — tem de considerar todos os elementos reais e concretos e não apenas a abstração, a normatividade. Tudo pode se acomodar na norma, desde que se desconsidere os elementos sociais, como vem ocorrendo, com frequência impressionante — e alarmante —, no Brasil.

Logo, a Dogmática Penal a ser [re] produzida, insista-se, tem de ter em conta, então, os dados reais — a vida vivida, portanto, e não a vida pensada. Dados reais coletados por meio da criminologia, da sociologia, da economia, da psicologia, da psiquiatria [3].

Se essa Teoria do Conhecimento — fundada em dados realistas — for aplicada à Execução Penal, então o abismo existente entre o "ser" [a realidade] [4] e o "dever ser" [a norma] [5] se anaboliza — e se potencializa — ao extremo. Nesse sentido:

2. A Sociologia, a História, a Criminologia e a Psicologia, por conseguinte, não conversam com as normas e elas [as normas] não
dialogam com a realidade. Isso então permite o escamoteamento dos dados da realidade — que, por óbvio, não são avaliados — ao se
impulsionar a marcha da execução penal. Tudo permanece, dessa maneira, comodamente, nos domínios do dever ser, do ideal, do
abstrato, da vida pensada. O ser, o real, o concreto, a vida vivida, em tal caso, não contaminam — consciente ou inconscientemente —
a pureza e a lógica inerentes à ambiência normativa. A execução penal, porém, não se realiza no campo normativo. A marcha do
processo executivo penal se faz no mundo da vida. Surgindo daí o violento, distorcido, desumano, degradante e cruel descompasso.
Em termos estritamente penais, isso quer dizer tortura — presente a existência de sofrimento físico e mental dos presos.
3. Ao juízo da execução, órgão da execução penal, compete, todavia, zelar pelo correto cumprimento da pena.
4. Ao operador do direito cumpre — partindo dos dados coletados empiricamente na vida real — interpretar as leis penais a partir da
Constituição Federal e do Direito Internacional dos Direitos Humanos. [6]

Donde, no livro "Execução Penal Humana: Remição Pela Tortura" [Kindle/Amazon, 2020], tive a oportunidade de assinalar, invocando precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que:

O intérprete, no entanto, mediante o acionamento dos postulados da proporcionalidade e da lógica jurídica, mantidas as ressalvas,
claro, pode ir um pouco mais adiante, dando um passo a mais, em ordem a articular a tese do três por um — ao invés da de dois por
um, de que trata a CIDH. Ou seja, de que cada dia de cumprimento da "pena", nas condições acima mencionadas, quita três — e não
dois — dias do castigo penal.
[…]
Por consequência, presente tal quadro especial e específico, propõe-se, a partir da Constituição Federal, do Direito Internacional dos Direitos Humanos, da Lei de Execução Penal 7.210/1984 e, tendo presente, ainda, fundamentalmente, no ponto, a lógica jurídica, o postulado constitucional da proporcionalidade e sobretudo, o rompimento do equilíbrio da escala punitiva prevista pelo legislador penal — tal como consta nos precedentes oriundos da CIDH —, que se compute, mantidas, insista-se, essas ressalvas estabelecidas pela CIDH, no seu triplo, cada dia de privação de liberdade cumprido nas condições a que se referem os itens 1 e 3 deste livro.

[7]

O STJ, no dia 28 de abril de 2021, confirmou, monocraticamente, essa tese — ou o seu fundamento central, se se preferir —, nos seguintes termos, mediante a pena do ministro Reynaldo Soares Fonseca:

Nesse ponto, vale asseverar que, por princípio interpretativo das convenções sobre direitos humanos, o Estado-parte da CIDH pode
ampliar a proteção dos direitos humanos, por meio do princípio pro personae, interpretando a sentença da Corte IDH da maneira mais
favorável possível aquele que vê seus direitos violados.
No mesmo diapasão, as autoridades públicas, judiciárias inclusive, devem exercer o controle de convencionalidade, observando os
efeitos das disposições do diploma internacional e adequando sua estrutura interna para garantir o cumprimento total de suas
obrigações frente à comunidade internacional, uma vez que os países signatários são guardiões da tutela dos direitos humanos,
devendo empregar a interpretação mais favorável a indivíduo.
Logo, os juízes nacionais devem agir como juízes interamericanos e estabelecer o diálogo entre o direito interno e o direito internacional dos direitos humanos, até mesmo para diminuir violações e abreviar as demandas internacionais. É com tal espírito hermenêutico que se dessume que, na hipótese, a melhor interpretação a ser dada, é pela aplicação a Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 2018 a todo o período em que o recorrente cumpriu pena no IPPSC.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, para que se efetue o cômputo em dobro de todo o período
em que o paciente cumpriu pena no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, de 9 de julho de 2017 a 24 de maio de 2019.
[8]

O colegiado da 5ª Turma do STJ manteve essa decisão, por unanimidade, no dia 15 de junho de 2021, ao negar provimento
ao agravo regimental oposto pelo MP-RJ [9]:

AGRAVO REGIMENTAL. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. LEGITIMIDADE. IPPSC (RIO DE JANEIRO). RESOLUÇÃO CORTE IDH
22/11/2018. PRESO EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. CÔMPUTO EM DOBRO DO PERÍODO DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE.
OBRIGAÇÃO DO ESTADO-PARTE. SENTENÇA DA CORTE. MEDIDA DE URGÊNCIA. EFICÁCIA TEMPORAL. EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS. PRINCÍPIO PRO PERSONAE. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO  MAIS FAVORÁVEL AO INDIVÍDUO, EM SEDE DE APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS EM ÂMBITO INTERNACIONAL (PRINCÍPIO DA
FRATERNIDADE – DESDOBRAMENTO). SÚMULA 182 STJ. AGRAVO DESPROVIDO.

Os embargos de declaração opostos pelo MP/RJ foram "desprovidos", por unanimidade, pela 5ª Turma do STJ. O trânsito em julgado ocorreu no dia 8 de setembro de 2021.

Merece destaque ainda, no ponto, que, a extrema "vulnerabilidade" e a profunda "miséria" de praticamente quase toda a população carcerária, abrem campo propício [também] à discussão, no processo penal de conhecimento, da culpabilidade. [Os vulneráveis e os miseráveis — nunca é demais [re] lembrar — são "carnes do cárcere"]. Culpabilidade como uma das categorias integrantes do conceito jurídico, analítico e abstrato de crime, presente a Teoria do Crime. [Na realidade, ou sociologicamente, entretanto, o "crime" sequer existe; o que há, no mundo real, são lesões a bens jurídicos, de maior ou menor potencial ofensivo, isto é, existem violações — gênero; violações que têm como suas espécies o homicídio, o estelionato, o estupro, o peculato, a apropriação indébita]. Culpabilidade, como instituto jurídico ou categoria existente — e isso merece todo o destaque — exclusivamente do ramo do Direito Penal. [Não há culpabilidade no Direito Civil, no Direito do Trabalho, no Direito Tributário, no Direito Administrativo, no Direito Previdenciário].

Assim, quanto maior a vulnerabilidade, o temor e a miséria, menor a culpabilidade, ou a reprovabilidade, do agente, considerado o Direito Penal do Fato [10]. Na linha do que assentava, aliás, o magistrado [humanista] francês Paul Magnaud [1848/1926], do Tribunal de Château-Thierry.

Significa dizer, então, com Zaffaroni [11], que, quanto maior for o esforço do agente para alcançar o estado de vulnerabilidade, maior será a reprovabilidade da conduta delituosa e, por conseguinte, a pena. Tudo isso, porém, tem de ser apurado — repita-se — a partir de dados reais, da realidade e das particularidades que circundam o agente infracional e o fato delituoso, tentado ou consumado.

Daí a necessidade de a realidade ser investigada sociologicamente em todo e qualquer caso penal [12], desde o início da persecutio criminis. Nomeadamente no campo da Execução Penal ["Humana"]. Assim, na LEP e no CP, respectivamente, por exemplo — sem recorrer-se à Carta Federal e ao Direito Internacional dos Direitos Humanos:

Art. 3º — Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.
Direitos do preso
Art. 38 – O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.


[1] Grifos aditados.

[2] Alexandre Langaro (https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/execucao-penal-genocida-e-esquizofrenica-2/; https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-
macedo/direito-penal-e-criminologia/;https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/prisao-somente-em-cela-individual/
), por exemplo, dentre outros].

[3] Alexandre Langaro (https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/execucao-penal-genocida-e-esquizofrenica/)].

[4] [https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/10/mutirao_carcerario.pdf].

[5] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; Convenção Americana sobre Direitos Humanos; Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; Declaração
Universal dos Direitos Humanos; Regras de Mandela (https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/a9426e51735a4d0d8501f06a4ba8b4de.pdf); Lei 7.210/1984].

[6] [Alexandre Langaro [https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/execucao-penal-genocida-e-esquizofrenica/].

[7] [O original contém notas de rodapé [https://www.amazon.com.br/s?
k=alexandre+langaro&__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&crid=14KTHM37XRY9C&sprefix=alexandre+langaro%2Caps%2C326&ref=nb_sb_noss
].

[8] RECURSO EM HABEAS CORPUS 136961–RJ (2020/0284469-3)].

[9] [https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202002844693&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea].

[10] Alexandre Langaro [https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/direito-penal-do-fato/].

[11] Eugênio Raul Zaffaroni, "Lineamientos de Derecho Penal", Ediar, 2020, Buenos Aires, Argentina, pág. 243 e seguintes].

Autores

  • é advogado criminal, recursal e parecerista, autor de livros e artigos jurídicos, articulista da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção São Paulo, membro da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas dos Advogados e da Comissão de Direitos Humanos Sobral Pinto da Seccional do Rio Grande do Sul da Ordem dos Advogados do Brasil, tendo estudado o NY Criminal Procedure Law em Nova York.

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