Decisões do plenário do Cade e a tutela da evidência
2 de dezembro de 2022, 9h04
"A tutela da evidência busca atender a necessidade social de uma justiça imediatamente eficaz" [1].
A partir do último dia 17 de novembro, as vítimas das infrações à ordem econômica têm ao seu dispor uma nova hipótese autorizadora da concessão liminar da tutela da evidência [2]. Trata-se da Lei nº 14.470/2022, a qual trouxe importante alteração na Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011) ao acrescer o artigo 47-A com a seguinte redação: "A decisão do Plenário do Tribunal referida no artigo 93 desta Lei é apta a fundamentar a concessão de tutela da evidência, permitindo ao juiz decidir liminarmente nas ações previstas no artigo 47 desta Lei".
Como já dispunha o referido artigo 47, os prejudicados pelas infrações econômicas, por si ou pelos legitimados referidos no artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor, podem ingressar em juízo para obter a cessação de práticas ilícitas, bem como a indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo perante o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Isso significa que as vítimas dessas infrações podem se valer do Poder Judiciário para obter a reparação de seus prejuízos. Até então, nada de extraordinário, uma vez que a Constituição, em seu artigo 5º, inciso XXXV, assegura o acesso jurisdicional adequado diante de qualquer violação ou ameaça a direito.
A inovação adveio do acréscimo desse artigo 47-A, o qual permite que tais vítimas possam ter, liminarmente (isto é, logo no início do processo e antes mesmo da defesa do réu) uma decisão judicial provisória, obrigando a parte requerida a fazer cessar a conduta ilegal (obrigação de fazer ou não fazer).
Trata-se de uma nova hipótese para a concessão da tutela da evidência, prevista no artigo 311 e em outros dispositivos [3] do Código de Processo Civil. Ela é relevante porque, embora o legislador de 2015 tenha elaborado um rol não taxativo [4], as situações ali mencionadas não contemplavam decisões emitidas por tribunais administrativos. Na literalidade do artigo 311, inciso II, seria possível a concessão da tutela da evidência apenas se houvesse "tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante", isto é, decisões judiciais.
É bem verdade que a doutrina já vinha dando uma interpretação extensiva a esse dispositivo a fim de abranger todas as decisões vinculantes previstas pelo artigo 927 do Código de Processo Civil [5]. Tal entendimento também foi objeto do Enunciado nº 48 do Conselho da Justiça Federal [6] e do Enunciado nº 30 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) [7].
Mas, até então, todas as previsões legais se referiam à concessão liminar da tutela da evidência baseando-se apenas em decisões judiciais vinculantes (CPC, artigo 311, II) ou contratos de depósito (CPC artigo 311, III).
O artigo 47-A altera esse cenário ao autorizar a concessão liminar da tutela da evidência com base na decisão do Plenário do Tribunal do Cade que comine multa ou imponha obrigação de fazer ou não fazer (artigo 93 da Lei 12.529/2011) [8]. O objetivo certamente é o de assegurar uma adequada e célere providência judicial, apta a atenuar os danos daqueles que foram vítimas de infrações já reconhecidas pelo órgão máximo administrativo. Permite-se, assim, uma ordem judicial para a cessação imediata das práticas ilícitas.
O que se verifica é a preocupação do legislador com as vítimas dessas infrações. Nesse sentido, o dispositivo aproxima-se muito do artigo 809, segunda parte, do Código de Processo Civil francês [9], o qual estabelece a concessão do chamado reféré-provision (ou seja, da tutela da evidência) "sempre que a obrigação não for seriamente contestável".
Em sua origem, o objetivo era justamente o de conceder uma rápida reparação diante de atos manifestamente ilícitos. Voltava-se para aquelas pessoas que eram vítimas de acidentes de trânsito e que necessitavam de quantias de dinheiro para tratamentos médicos [10]. Ainda que sem urgência, tais vítimas costumavam fazer maus acordos, com o intuito de atender necessidades momentâneas. Foi isso que o référé-provision procurou evitar.
A propósito dessa medida antecipatória e sem urgência, há uma frase notória que bem demonstra sua importância prática: "nos casos de urgência, a justiça não pode perder tempo; nos casos de evidência, a justiça não tem tempo a perder" [11]. O sentido da tutela da evidência é justamente esse: evitar o decurso do tempo que já se mostra inútil diante da alta probabilidade do direito do autor.
Foi precisamente essa tutela judicial célere que o artigo 47-A da Lei nº 12.529/2011 veio assegurar: uma ordem liminar para aqueles que têm a decisão proferida pelo Plenário do Tribunal do Cade como base da probabilidade de seu direito. Afinal, nessas circunstâncias, em princípio, haveria uma obrigação não seriamente contestável.
Vale, porém, uma ressalva: nem sempre as decisões administrativas poderão servir para a demonstração da alta probabilidade do direito da vítima (típica da noção de obrigação não seriamente contestável). Vícios graves por ocasião do processo administrativo, tais como violação ao contraditório ou à ampla defesa, poderão macular tais decisões. Nesses casos, caberá ao Poder Judiciário avaliar se realmente existe a alta probabilidade do direito a justificar o cabimento da tutela da evidência. É o que ocorre com as presunções de evidência fixadas a priori pelo legislador. Todas elas estão sujeitas ao crivo do Poder Judiciário.
De qualquer forma, nessa disputa, a vítima do prejuízo (normalmente a parte mais frágil) já sai na frente.
[1] CHAINAIS, Cécile. La protection juridictionnelle provisoire dans le procès civil en droit français et italien, Paris: Dalloz, 2007, p. 521.
[2] Isto é, da técnica processual que permite a antecipação dos efeitos da tutela final, mesmo nos casos destituídos de urgência.
[3] Constituem também hipóteses de tutela da evidência as liminares possessórias (CPC artigo 562), a liminar nos embargos de terceiro (CPC, artigo 678) e o uso e fruição antecipados de bem em inventário (CPC artigo 647, parágrafo único).
[4] Essa é a posição que prevalece na doutrina. Dentre outros, vale citar MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 294 ao 333. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 270; MITIDIERO, Daniel. Antecipação da tutela: da tutela cautelar à técnica antecipatória (2013). 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 79; LAMY, Eduardo. Tutela provisória. São Paulo: Atlas, 2018, p. 15 e 16. No mesmo sentido: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil, volume único, 9ª ed, Salvador: Editora Jus Podivm, 2017, p. 558; ASSIS, Carlos Augusto de; LOPES, João Batista. Tutela Provisória: tutela antecipada; tutela cautelar; tutela da evidência; tutela inibitória antecipada. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018, p. 169; DOTTI, Rogéria Fagundes. Tutela da evidência: probabilidade, defesa frágil e o dever de antecipar a tempo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 306.
[5] DOTTI, Rogéria Fagundes. Tutela da evidência: probabilidade, defesa frágil e o dever de antecipar a tempo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 265. No mesmo sentido, vide DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela/ Fredie Didier Jr, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira, 11ª ed, Salvador: Editora Jus Podivm, 2016, v. 2, p. 638.
[6] "É admissível a tutela provisória da evidência, prevista no artigo 311, II, do CPC, também em casos de tese firmada em repercussão geral ou em súmulas dos tribunais superiores".
[7] "É possível a concessão da tutela da evidência prevista no artigo 311, II, do CPC/2015 quando a pretensão autoral estiver de acordo com orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade ou com tese prevista em súmula dos tribunais, independentemente de caráter vinculante".
[8] A Lei nº 12.529/2011, em seu artigo 93 prevê que "A decisão do Plenário do Tribunal, cominando multa ou impondo obrigação de fazer ou não fazer, constitui título executivo extrajudicial".
[9] Artigo 809. Segunda parte. Dans les cas où l'existence de l'obligation n'est pas sérieusement contestable, il peut accorder une provision au créancier ou ordonner l'exécution de l'obligation même s'il s'agit d'une obligation de faire.
[10] DOTTI, Rogéria Fagundes. Tutela da evidência: probabilidade, defesa frágil e o dever de antecipar a tempo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 80.
[11] "Juges du provisoire, les juges de l'urgence deviennent, aussi, juges de l'évidence. Dans le premier cas, 'la justice ne doit pas perdre de temps, dans le second cas, 'elle n'a pas de temps à perdre'". Formule avancée par M. Raynaud (magistrat), lors d'une conférence au Palais de Justice de Paris, le 1er mars 1984, dans le cadre de l'Association française de droit judiciaire privé (imprimerie du TGI de Paris, mais 1984). (CHAINAIS, Cécile; FERRAND, Frédérique; GUINCHARD, Serge. Procédure Civile: droit interne et européen du procès civil, 33e édition, Paris: Dalloz, 2016, p. 1304, nota 06).
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