Opinião

Supremacia do melhor interesse da criança e do adolescente na LGPD

Autor

  • Isabela Maria Rosal Santos

    é pesquisadora na imec — KU Leuven — CiTiP (supervisora: prof. dr. Peggy Valcke). Mestre em Direito Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB) e bacharel em Direito pela mesma instituição.

2 de dezembro de 2022, 7h07

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) impôs um sistema de proteção diferenciado às crianças e adolescentes, grupo vulnerável e altamente inserido no contexto digital. A seção III, do Capítulo II da norma traz disposições específicas sobre as condições para o tratamento de dados desse grupo e as os Enunciados da 9ª Jornada de Direito Civil deixam clara a necessidade de interpretação do sistema protetivo a partir da doutrina da prioridade absoluta adotada no artigo 227 na Constituição. É justamente essa doutrina que dá origem ao melhor interesse do menor, previsto no caput do artigo 14 da LGPD, que garante que os direitos fundamentais da criança e do adolescente devem ser plenamente garantidos e considerados de forma independente do interesse de seus responsáveis legais, inclusive no tratamento de seus dados pessoais [1].

Tal entendimento é completamente adotado no Enunciado 691 da última jornada de Direito Civil que leciona que "A possibilidade de divulgação de dados e imagens de crianças e adolescentes na internet deve atender ao seu melhor interesse e ao respeito aos seus direitos fundamentais, observados os riscos associados à superexposição". Ou seja, ainda que o responsável legal tenha autorizado ou seja o autor desse compartilhamento dos dados do menor, a publicação dos dados das crianças ou adolescentes somente observa a proteção devida a esse direito fundamental quando o melhor interesse é garantido, ou seja, quando os direitos do menor não estão mitigados, confirmando a dissociação do menor de seus responsáveis legais.

Ainda sobre a independência de interesses, o Enunciado 692 afirma que o artigo 2° do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é aplicável ao regime de proteção da LGPD, que traz as definições dos conceitos de criança e adolescente. Já o Enunciado 682 esclarece que o adolescente  entre 12 e 18 anos — é sujeito capaz de fornecer o próprio consentimento para o tratamento de seus dados, o que permite sua inserção social no mundo digital.  Esse entendimento permite a compreensão de maior independência do adolescente, grupo menos vulnerável e com maior independência, inclusive conforme o próprio regime de capacidade imposto pelo Código Civil brasileiro. Contudo, ainda que o adolescente forneça o consentimento para o tratamento de seus dados pessoais, a soberania do melhor interesse do menor prevalece e seus direitos fundamentais devem ser integralmente observados.

Ainda, a redação da LGPD não era clara sobre quais bases legais poderiam justificar o tratamento de dados de crianças e adolescentes, levando a compreensão, por alguns autores, de que somente o consentimento seria base adequada para o tratamento desses dados. Contudo, o Enunciado 684 esclareceu como todas as bases legais podem justificar o tratamento de dados de crianças e adolescentes, desde que atendam ao melhor interesse do menor. A norma infralegal trouxe essa abertura tanto para crianças quanto para adolescentes, mas a flexibilização merece maior análise para compreensão de quando determinadas bases legais não devem ser utilizadas.

A abertura e possibilidades trazidas pelos Enunciados devem ser interpretadas de forma a garantir que o tratamento de qualquer informação pessoal de crianças e adolescentes sempre garante a observância do melhor interesse do menor, como já observado na União Europeia [2]. Em caso recente, o European Data Protection Board (EDPB) publicou decisão vinculativa sobre a necessidade de sancionamento à Meta por publicação de informações de menores (e-mail e/ou telefone) sem base legal adequada. Esse tratamento era feito quando menores utilizavam o produto de "conta comercial" oferecida pela empresa. Essa opção possibilita diversas avaliações de desempenho da conta, o que pode ser bastante atrativo para usuários menor de idade, mas que permite maior exposição dos titulares do serviço.

Apesar de a empresa se basear em duas bases legais para justificar esse tratamento  legítimo interesse e execução contratual , o entendimento do EDPB e confirmado pela autoridade de proteção de dados Irlandesa foi no sentido de que nenhuma das bases legais era suficiente para justificar esse tratamento e exposição de dados de menores, o que mitiga os direitos dos menores. Apesar de os produtos oferecidos pela empresa garantirem a integração digital das crianças, é desproporcional aos próprios interesses da empresa a publicação das informações dos menores. A decisão do EDPB reafirma a necessidade de proteção específica para a proteção dos dados pessoais de crianças e a adolescentes, inclusive ao se considerar que esse grupo  em especial crianças  não tem absoluto conhecimento dos riscos e consequências de eventuais tratamentos [3].

Esse caso gerou multa recorde [4] para o Instagram e desde essa decisão a empresa anunciou que vai lançar ferramenta de inteligência artificial para identificar usuários menores de idade para buscar garantir a experiência adequada aos melhores interesses do adolescente [5]. Logo, é possível perceber que o melhor interesse do menor, princípio basilar da proteção de dados no Brasil, tem efeitos concretos e deve ser considerado em todos os tratamentos de dados envolvendo informações sobre crianças e adolescentes  as normas infralegais já existentes sobre o tema no Brasil confirmam esse entendimento.

 


[1] HENRIQUES, I.; PITA, M.; HARTUNG, P. A Proteção de Dados Pessoais de Crianças e Adolescentes. In: DONEDA, D. et al. (org.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 199–226.

[2] Essa comparação é válida tendo em vista às semelhanças do sistema de proteção de dados europeu com o sistema brasileiro.

[3] EDPB. Binding Decision 2/2022 on the dispute arisen on the draft decision of the Irish Supervisory Authority regarding Meta Platforms Ireland Limited (Instagram) under Article 65(1)(a) GDPR. Julho 2022.

Autores

  • é pesquisadora na imec — KU Leuven — CiTiP (supervisora: prof. dr. Peggy Valcke). Mestre em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB) e bacharel em Direito pela mesma instituição.

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