O que as SADs portuguesas ensinam aos clubes de futebol brasileiros?
31 de agosto de 2022, 6h32
O direito desportivo, tal como a atividade esportiva em si, tem sido objeto de grande evolução nas últimas décadas. Diante das cifras astronômicas, bem como diante da complexidade das relações contratuais entre clubes e atletas, quase não há mais espaço para a ausência de profissionalismo em todos os setores de um clube de futebol.
Em razão disso, bem como diante do endividamento de grande parte dos clubes protagonistas no cenário futebolístico brasileiro, o legislador buscou por meio da Lei 14.193/2021 a criação da SAF (Sociedade Anônima do Futebol), o que, em termos práticos, permite que os clubes de futebol se tornem empresas, uma vez comprovando o cumprimento de uma série de obrigações formais. Dentre estas, destaca-se a necessidade da adoção de medidas de gestão, de transparência e de responsabilidade.
Importante salientar que, ao deixar o modelo associativo e adotar o formato de SAF, o clube passa a ser alvo de maior fiscalização e, consequentemente, se torna, em tese, mais atrativo para os investidores.
A SAF vem sendo apresentada como uma solução muito vantajosa para os clubes como meio de parcelamento de dívidas (em razão do referido modelo societário), além de trazer vantagens na tributação e, até mesmo, a possibilidade de deságio das dívidas.
No entanto, ocorre que a mudança do tipo social de um clube de futebol não é tarefa tão simples e fácil, apresentando diversos riscos, tal qual nos mostra uma breve análise dos cenários internacionais.
Apesar de ser novidade no plano legal nacional, a criação de uma sociedade anônima visando a atividade desportiva não é pauta tão recente em países, tal como Portugal. A maior parte dos clubes portugueses, envolvendo também os três maiores (Benfica, Porto e Sporting), viviam um cenário econômico muito adverso durante a década de 1990 e início dos anos 2000. Todavia, o governo português, em 1997, estabeleceu o Regime Jurídico dos Clubes Sociedades Desportivas. O mesmo foi alvo de revisões e em 2013 o Decreto-Lei nº 10/2013, estabeleceu o Novo Regime Jurídico das Sociedades Desportivas, em que há a previsão de que, para competirem em campeonatos profissionais, os clubes deveriam constituir uma sociedade desportiva, a partir da temporada 2013/2014.
Além disso, é importante salientar que a SAD (Sociedade Anónima Desportiva) não é o único tipo societário utilizado pelos Clubes portugueses, pois existem ainda modelos como a Sociedade Desportiva Unipessoal por Quotas (SDUQ). No Brasil também há diferença entre a SAF e outras modalidades de Clube Empresa (pode existir um clube empresa que adote o modelo de uma LTDA.).
Ocorre que no Brasil, tal como era em Portugal, a maioria dos clubes adota o modelo associativo, o que, em razão da existência de quadro social significativo, bem como pela necessidade constante de aporte de capital, evidentemente encontra dificuldade organizacional na estrutura social de uma LTDA.
Em Portugal, os clubes de menor expressão foram, em regra, os que conseguiram optar pela adoção de uma SDUQ. Dos clubes que participarão da Primeira Liga em 2023 são SDUQ's FC Arouca, Famalicão, Gil Vicente, Paços de Ferreira e Rio Ave.
O tópico mais polêmico do presente tema centra-se no fato de quem comanda o clube. Isso porque ao optar por uma SDUQ se consegue preservar a sua identidade, já que é titular do capital social do clube. O mínimo do capital social de uma SDUQ é de 250 mil euros para emblemas da Primeira Liga e 50 mil euros para quem está na Segunda Liga. Já as SAD's dos clubes da Primeira Liga têm de ter um capital social mínimo de 1 milhão de euros, valor que baixa para os 200 mil euros se for uma SAD de um clube da Segunda Liga. O clube só está obrigado a ter, no mínimo, 10% do capital da SAD.
O referido modelo de gestão se assemelha com alguma das previsões legais contidas no texto legal da SAF e ganhou pouco destaque no debate político e jurídico, apesar de alguns exemplos negativos em um país de cultura tão próxima. O problema começa quando os resultados desportivos da equipe principal de futebol começam a ser negativos. Os acionistas, sem voto na matéria na maioria dos casos, começam a ver o futebol, o principal impulsionador do clube, a tomar um rumo longe daquilo que imaginaram.
Em cenários assim, é possível a ocorrência de casos similares ao do tradicional Belenenses de Lisboa, que era SAD desde 1999, mas à época optou por manter o capital com o clube fundador, o que é muito comum para clubes de maior dimensão no cenário português. O clube abriu suas portas para investidores em 2012, mas o que era para ser um aporte de capital e uma guinada positiva para o clube tornou-se um embate entre este e a administração da SAD, que detinha 90% do controle acionário.
O resultado do conflito foi a divisão do clube: Belenenses resolveu recomeçar nas divisões amadoras do Campeonato Português carregando sua tradição, enquanto o Belenenses Sociedade Anônima Desportiva manteve seu insosso modelo empresarial na primeira divisão. Ou seja, dois clubes com o mesmo nome e mesma cor jogando em patamares diferentes do futebol português, tudo amparado pela legislação e desamparado pelos torcedores.
Por fim, válido ressaltar que a legislação brasileira tampouco é clara em relação a casos de disputas legais entre acionistas, não elucida qual percentual da SAF pode ser negociado para que haja limitação de ações da associação civil dentro das sociedades (o que por certo ocorrerá), bem como não disciplina o futuro das licenças esportivas em caso de falência da SAF. No atual cenário, caberá aos próprios clubes, em seus acordos, observarem bem quais serão os seus passos e quais cláusulas serão acertadas. Em resumo, é preciso estar atento para a lua de mel dos clubes com a SAF não virar um pesadelo.
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