Opinião

Polêmica sobre créditos de carbono e a sua natureza para fins tributários

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26 de agosto de 2022, 20h39

Em meio ao debate sobre políticas públicas para redução da emissões de gases de efeito estufa e fomento à transição energética, o governo federal editou, em maio deste ano, o Decreto nº 11.075/2022, que estabelece procedimentos para a futura estruturação de um mercado brasileiro de redução de emissões.

De acordo com o referido decreto, o mercado brasileiro promoverá a instrumentalização de planos setoriais de mudanças climáticas ao estimular a utilização e transferência de créditos certificados de redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE), tais como carbono e metano.

Sob a perspectiva ambiental, o Decreto nº 11.075/2022, norma infralegal vinculada à Lei nº 12.187/2009, limitou-se a estabelecer procedimentos para a criação de um mecanismo de gestão ambiental, sem, contudo, fixar metas ou prazos para a redução de emissões, sanções para seu descumprimento ou a participação obrigatória dos setores com maiores índices de emissão de GEE.

Sob a perspectiva tributária, o Decreto nº 11.075/2022 inova ao conceituar créditos de carbono (e metano) como "ativos financeiros".

Sem discutir a viabilidade de um decreto fixar conceitos de direito privado ou da conveniência de se atribuir aos créditos de carbono e metano a natureza de ativo financeiro, tal classificação é, a princípio, conflitante com a Resolução CVM nº 120/22, que aprovou recentemente, no âmbito do mercado de capitais, o Pronunciamento Contábil Técnico CPC 39/IAS 32.

O pronunciamento contábil define ativo financeiro como qualquer ativo que seja:
(a) caixa;

(b) instrumento patrimonial de outra entidade;
(c) direito contratual: (1) de receber caixa ou outro ativo financeiro de outra entidade; ou (2) de troca de ativos financeiros ou passivos financeiros com outra entidade sob condições potencialmente favoráveis para a entidade;
(d) um contrato que seja ou possa vir a ser liquidado por instrumentos patrimoniais da própria entidade, e que: (1) não é um derivativo no qual a entidade é ou pode ser obrigada a receber um número variável de instrumentos patrimoniais da própria entidade; ou (2) um derivativo que será ou poderá ser liquidado de outra forma que não pela troca de um montante fixo de caixa ou outro ativo financeiro, por número fixo de instrumentos patrimoniais da própria entidade.

Da definição acima, aplicável às sociedades por ações por força do artigo 177 da Lei nº 6.404/1976, entendemos que, para que os créditos de carbono pudessem ser classificados como ativos financeiros, as entidades responsáveis pelos projetos que propiciam a redução ou remoção de GEE, originando, nos termos do decreto, os créditos certificados de redução de emissões (CCRE), deveriam continuar vinculadas aos referidos créditos, que lhes seriam oponíveis.

No sistema atual, não é o que ocorre.

Com efeito, autorizada a emissão do crédito, este poderá ser utilizado para o cumprimento das metas de redução do próprio titular ou transferido a terceiros. Daí em diante, o vínculo entre os créditos e os responsáveis pelos projetos cessa.

Ou seja, embora créditos de carbono tenham origem contratual e representem direitos suscetíveis de avaliação econômica e transferência, a sua classificação como ativos financeiros enfrenta algumas dificuldades conceituais em face da legislação vigente.

Assim, seja por faltarem aos referidos créditos atributos próprios de "ativo financeiro", seja porque a Lei nº 12.651/12, que instituiu o Código Florestal, já os classificava tão somente como ativos intangíveis, nos parece que o tratamento do tema através de Decreto gera insegurança jurídica.

Com efeito, o Código Florestal, em seu artigo 3º, inciso XXVII, conceitua créditos de carbono como "título de direitos sobre bem intangível e incorpóreo transacionável".

Em apresentação sobre o tema na Palestra Ibrademp – Crédito de Carbono Aspectos Contábeis e Fiscais (23/6/2021) [1], o professor Eliseu Martins, ao comentar a classificação contábil dos créditos de carbono, lembra que a sua conceituação, como instrumentos financeiros, exigiria contraparte do devedor e que, nesta hipótese, tais créditos deveriam "ser avaliados obrigatoriamente a valor justo (contra resultado do exercício ou outros resultados abrangentes, a depender da classificação do IFRS 9/CPC 48)".

O professor Eliseu lembra, ainda, que a maioria dos países europeus têm contabilizado os créditos de carbono como ativos intangíveis, representativos dos custos incorridos pela parte.

Sob a perspectiva brasileira, se classificados como ativos financeiros, créditos de carbono seriam avaliados contabilmente por seu valor justo contra resultado ou outros resultados abrangentes, enquanto que, se classificados como intangíveis, a avaliação deverá levar em conta os custos de sua geração/desenvolvimento.

As consequências, para fins de apuração de eventual ganho de capital auferido quando de sua cessão, podem ser diversas. Assim, como diversos podem ser os efeitos em relação a pagamentos efetuados a residentes no Brasil ou no exterior em contraprestação a sua cessão.

Aliás, é de se notar que a classificação como "ativo intangível" foi adotada pela Receita Federal em pelo menos duas oportunidades, conforme as Soluções de Consultas 192 e 193, ambas de 2009, em que o órgão analisou o percentual de presunção aplicável para fins de determinação da base de cálculo do IRPJ, bem como a incidência de PIS e Cofins, sobre receitas auferidas com a cessão de créditos de carbono, conforme abaixo:

"Confrontando-se essas definições com a situação fática trazida à colação nesse processo, vê-se que a prerrogativa de emitir gases poluentes, na medida em que esgotável (limitado), passível de apropriação pelo homem (individualizado) e de avaliação econômica, passou a constituir um direito subjetivo de seu titular, bem intangível integrante de seu patrimônio. Tratando-se de um bem incorpóreo, sua transferência, a título oneroso ou gratuito, constitui cessão de direito. Direito, repita-se, intangível, imaterial, eis que consubstanciado em um poder fazer."

Com a edição do Decreto nº 11.075/2022, é provável que a Receita, órgão da administração pública direta cuja atuação é vinculada às normas e atos expedidos pelo Poder Executivo federal, passe a classificar os créditos de carbono como "ativos financeiros", classificação adotada no último texto substitutivo apresentado ao Projeto de Lei nº 2.148/2015 [2], que condensa diversas iniciativas legislativas para tratamento da matéria, inclusive o PL nº 528/2021, do deputado Marcelo Ramos.

O referido substitutivo, no entanto, foi retirado de pauta sob de que críticas de que teria desfigurado o projeto de lei original.

Assim, até que seja aprovada Lei atribuindo aos créditos de carbono natureza de ativos financeiros, os contribuintes devem e podem se socorrer do artigo 100 do Código Tributário Nacional, que proíbe a imposição de penalidades e juros caso o comportamento esteja amparado por atos normativos ou prática reiterada das autoridades administrativas.

Para além da discussão sobre a conveniência de uma classificação em detrimento das demais, a presente avaliação é relevante pois diferentes naturezas acarretam efeitos tributários diversos.

Neste sentido, a correta compreensão dos efeitos tributários da operações com créditos de carbono é fundamental para a determinação de uma política tributária e de fomento adequada.

Isto porque, uma vez que o Brasil optou até hoje por não tributar de forma diferenciada atividades geradoras de emissão, é desejável que, ao tratar dos instrumentos para a redução das emissões, a tônica seja a da desoneração fiscal.

E, para que tal desoneração seja realmente efetiva, oferecendo previsibilidade aos agentes de mercado e potenciais investidores, é importante que a natureza dos créditos de carbono seja corretamente compreendida e, assim afastadas, quaisquer tentativas de classificação equivocada, inclusive como "serviço" ou "mercadoria".

Nesse passo, vale lembrar que, embora a emissão e o registro dos "créditos" possa lhes conferir aparência de existência física, estamos tratando, sem dúvida, de direitos, cuja cessão se encontra fora do âmbito de incidência do ICMS.

O direito à remoção de uma tonelada de GEE também não se confunde com a execução dos próprios projetos de redução ou remoção de GEE ou de qualquer atividade consultiva ou de assistência técnica relacionada ao objeto desses projetos, sejam elas realizadas por interesse próprio ou de terceiros, situações essas sim suscetíveis de enquadramentos como "serviço" e cujos efeitos tributários devem ser determinados separadamente.

Assim, nos parece que a determinação da natureza dos créditos de carbono deveria ser tratada por lei, afastando quaisquer dúvidas sobre a existência de um potencial conflito de normas. Somos, ainda, da opinião que tal lei deveria estabelecer, um regime de desoneração tributária amplo, em âmbito federal, beneficiando operações em mercado regulado ou voluntário e envolvendo agentes no Brasil e no exterior.

Desta forma, o Brasil confirmaria o seu compromisso com o estabelecimento de uma política pública de redução de emissões.


[2] O Parecer Preliminar de Plenário nº 3, recentemente apresentado pela deputada Carla Zambelli em formato substitutivo ao Projeto de Lei nº 2.148/2015 também classificou créditos de carbono como "ativo financeiro ambiental, fungível, transacionável, representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, lastreado em Per-GEE, RVE ou outras iniciativas do mercado voluntário".

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