Opinião

Discriminação da mulher: por menos Amélias e mais Bias

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26 de agosto de 2022, 6h05

A música é um dos traços principais da cultura de qualquer povo. O modo de pensar, de sentir e de se portar de uma população está muitas vezes expresso nas letras e melodias de suas canções.

Um bom exemplo disso é o samba "Ai! Que Saudade da Amélia", lançado em 1942. Grande sucesso na época de seu lançamento, a canção dizia assim:

Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz

Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Quando me via contrariado
Dizia: Meu filho, o que se há de fazer!
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade [1]

Hoje talvez pouca gente saiba a íntegra dessa letra, mas o trecho "Amélia é que era mulher de verdade" mantém-se na memória coletiva brasileira.

E essa lembrança está de tal modo encravada em nossa cultura que a palavra Amélia designa, no Brasil, as mulheres obedientes a seus maridos, ajustadas a um modelo de submissão feminina quase absoluta.

"Ai! Que Saudade da Amélia" reflete a mentalidade de seu tempo. A canção alimenta o estereótipo do homem provedor e líder, em contraste com o da mulher apoiadora, resignada e coadjuvante, denominada mulher de verdade.

Passados oitenta anos da criação desse samba, impressiona que o espírito dos anos 1940 persista em boa parte do mundo.

Isso se deve ao fato de a maioria das sociedades serem estruturadas para subjugar suas populações femininas. Uma lógica patriarcal, centralizada no masculino, vem regendo por milênios as relações sociais, de modo a relegar o gênero feminino a um segundo plano.

Essa lógica — provavelmente a principal causa da discriminação contra as mulheres — foi culturalmente semeada nos quatro cantos do mundo, alimentada por interpretações religiosas equivocadas, fortalecida como costume e até mesmo inserida em textos legais de diversas nações, entre as quais se inclui o Brasil.

Uma amostra disso é o Código Civil brasileiro de 1916. Ele considerava as mulheres casadas civilmente incapazes para determinados atos. Se tivesse cônjuge, uma mulher não poderia, por exemplo, exercer uma profissão sem autorização dele, definido como chefe da sociedade conjugal [2]. Essa condição de incapacidade civil relativa apenas deixou de existir cerca de 50 anos depois, com a aprovação, em 1962, de uma norma menos discriminatória, o Estatuto da Mulher Casada, hoje substituída por lei mais equânime [3].

As mulheres envidaram esforços e lideraram movimentos que resultaram não só na revogação de legislações discriminatórias, mas também na aprovação de marcos legais para enfrentamento a essa prática, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada em 1979 pela Organização das Nações Unidas (ONU) [4].

Ainda assim, o problema persiste. Um estudo do Banco Mundial indicou que, em média, as mulheres detêm pouco mais de 76% dos direitos concedidos na legislação aos homens em todo o planeta [5]. O relatório indicou que apenas 12 países, entre eles Portugal, conseguiram atingir total equidade entre homens e mulheres do ponto de vista de seu conjunto de leis, mencionando também avanços significativos na legislação de Angola [6].

A ONU tem a igualdade de gênero como um de seus objetivos de desenvolvimento sustentável para 2030 [7]. Ela estabeleceu um índice formado com dados de 144 países, visando monitorar as melhorias nesse campo. Até o momento, nenhuma dessas nações conseguiu atingir a igualdade plena entre mulheres e homens [8].

O Brasil, em particular, não fez qualquer progresso nesse índice entre 2015 e 2020 [9]. E isso também não surpreende, por suas estatísticas em diversos campos.

Nosso país carrega tristes números de violência contra as mulheres. Em 2021, houve uma agressão doméstica a cada 2 minutos, um estupro a cada 8 minutos e um feminicídio a cada 7 horas em território brasileiro [10].

Na seara política, há claramente uma sub-representação feminina. As mulheres brasileiras eram 52,5% do total de eleitores nas eleições de 2018, mas ocuparam apenas 15% das vagas na Câmara Federal e 13% dos assentos no Senado da República [11].

O mercado de trabalho brasileiro também penaliza as mulheres: em 2019, elas recebiam somente 78% do salário de um homem no mesmo cargo. Além disso, só ocupavam pouco mais de 42% das posições de gerência [12], mesmo tendo melhor formação educacional do que os homens [13].

Acrescente-se também o fato de as mulheres ocuparem semanalmente 10 horas a mais com afazeres domésticos do que os homens, mas essa atividade não ser valorizada ou remunerada [14].

O tripé formado por violência, baixa representação política e desvantagens trabalhistas é talvez a parte mais visível de diversos problemas que não se limitam ao Brasil, mas se repetem ao redor do mundo.

As soluções para essas e muitas outras questões passam por iniciativas legislativas, educacionais e de diálogo com a sociedade civil, além de ações que as sustentem.

No Brasil, foram criadas normas específicas para o enfrentamento à violência contra a mulher. Elas estabeleceram mecanismos protetivos às vítimas de agressão (Lei Maria da Penha) [15] e qualificaram o feminicídio, ou seja, o assassinato baseado unicamente na condição feminina [16], além de assegurarem atendimento médico às mulheres atacadas sexualmente (Lei do Minuto Seguinte) [17]. Também foram criadas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams) para prover serviços adequados às vítimas de violência [18].

Na área política, o congresso brasileiro promulgou, em abril deste ano, a Emenda Constitucional nº 117/2022, que destina 30% do fundo eleitoral dos partidos às campanhas femininas, como forma de ampliar a participação das mulheres no Executivo e no Legislativo [19].

No que se refere ao mercado de trabalho, ainda tramita no Congresso brasileiro o PLC nº 130/2011, que proíbe a diferença salarial entre homens e mulheres que exerçam as mesmas funções em empresas [20].

As medidas mencionadas são importantes, mas ainda se revelam insuficientes para levar o Brasil, e outros países assemelhados, a erradicar a discriminação de gênero. Avanços legislativos adicionais permanecem necessários e há também o fator cultural. Se a discriminação germina no solo da cultura, é lá que devemos buscar a solução para esse problema.

A eficácia de leis que protejam e empoderem a mulher é menor, se a sociedade não mudar seu viés cultural depreciativo em relação ao gênero feminino. É preciso que todas e todos possuam uma mentalidade menos patriarcal e mais feminista.

Como forma de responder a essas demandas, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) criou, na atual gestão, um Grupo de Trabalho (GT) voltado especificamente à proteção de direitos de mulheres, crianças, adolescentes e idosos.

Em 2020, esse GT foi responsável por promover um ciclo de webinários sobre o enfrentamento à violência contra mulher, dentro do projeto Encontros da Cidadania, espaço virtual da PFDC voltado à educação em direitos humanos [21]. Em 2022, a PFDC retornou a esse tema, ao promover webinário sobre discurso de ódio e violência de gênero.

No ano passado, a PFDC, em conjunto com seu GT Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, divulgou nota pública contra a opressão e a violência sofridas pelas mulheres negras, bem como em favor de sua maior participação na política nacional.

Ainda no campo político, vale destacar a campanha Política é Substantivo Feminino, lançada pelo Ministério Público Federal no mês passado, cujo objetivo é estimular maior presença feminina nos cargos eletivos do Brasil [22].

Ações governamentais que canalizem recursos para a equidade de gênero também são essenciais ao atingimento desse objetivo. Não basta a letra da lei e dos tratados, se os meios para extirpar a discriminação contra as mulheres não forem disponibilizados. Gastos que assegurem a elas uma base socioeconômica de onde possam ascender a seu lugar de direito.

É importante destacar que promover a igualdade de gênero não é fazer qualquer tipo de favor às mulheres. Garantir que isso ocorra é, de fato, uma questão de justiça para com metade da população deste planeta. É também uma forma de garantir avanços para a humanidade, pois o bloqueio à participação feminina em todos os aspectos da sociedade provoca imenso desperdício de talento, já que elas são tão capazes quanto qualquer homem.

As mulheres de 2022 ganharam um espaço inimaginável em 1942, mas querem e merecem mais. Elas não se contentam com viver resignadas à sombra de ninguém. Elas podem e querem ser protagonistas em qualquer atividade humana, sem temer por suas vidas. Elas já são mulheres de verdade, como bem coloca a cantora e compositora Bia Ferreira, no fim de sua canção "Não Precisa Ser Amélia":

Não precisa ser Amélia pra ser de verdade
Cê tem a liberdade pra ser quem você quiser

Seja preta, indígena, trans, nordestina
Não se nasce feminina, torna-se mulher [23]

Simone de Beauvoir não seria mais eloquente.

*Texto adaptado de fala proferida no webinário "Criação de Mecanismos para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher", promovido pela Rede de Direitos Humanos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 3 de agosto de 2022.


[1] Letra disponível em Ai, Que Saudades da Amélia – Mário Lago – LETRAS.MUS.BR. Acesso em 18/8/2022.

[7] https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5. Acesso em 26/7/2022.

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