Veto ao artigo 14 do PLP 18/2022 e custeio federativo da saúde e educação
23 de agosto de 2022, 8h00
Ainda pende de apreciação o veto ao artigo 14 do Projeto de Lei Complementar 18/2022, que visava compensar as perdas de arrecadação decorrentes da redução de alíquotas do ICMS para os pisos em saúde e educação e para o Fundeb no bojo da Lei Complementar 194, de 23 de junho de 2022.
O dispositivo vetado previa que:
Parágrafo único. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios beneficiários do disposto nos arts. 3º e 4º desta Lei Complementar deverão manter a execução proporcional de gastos mínimos constitucionais em saúde e em educação, inclusive quanto à destinação de recursos ao Fundeb, na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar."
O chefe do Executivo federal sustentou o Veto nº 36/2022 ao aludido artigo 14 nas seguintes razões:
"A proposição legislativa estabelece que, em caso de perda de recursos ocasionada por esta Lei Complementar, observado o disposto nos art. 3º e art. 4º, a União compensaria os demais entes da Federação para que os mínimos constitucionais da saúde e da educação e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica — Fundeb tivessem as mesmas disponibilidades financeiras na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar. Ademais, estabelece que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios beneficiários do disposto nos art. 3º e art. 4º desta Lei Complementar deveriam manter a execução proporcional de gastos mínimos constitucionais em saúde e em educação, inclusive quanto à destinação de recursos ao Fundeb, na comparação com a situação em vigor antes desta Lei Complementar.
Entretanto, em que pese o mérito da proposta, a proposição legislativa contraria o interesse público, ao permitir a criação de despesa pública de caráter continuado, diferente das medidas temporárias aprovadas nos outros artigos da mesma proposição, bem como ao estabelecer que a União compensaria os entes da federação, sem prazo definido, para que os mínimos constitucionais da saúde e da educação e o Fundeb tivessem as mesmas disponibilidades financeiras na comparação com a situação em vigor antes da Lei Complementar.
Ademais, a proposição criaria compensações para a União e despesas para os Estados e Municípios que poderiam ampliar possíveis desequilíbrios financeiros.”
Segundo o Comitê Nacional dos Secretários da Fazenda dos Estados (Comsefaz), a perda estimada para o custeio federativo das políticas públicas de saúde e educação seria de R$ 17 bilhões apenas neste segundo semestre de 2022. Em reunião com o presidente do Senado na última quinta-feira (18/8), Décio Padilha, presidente do Comsefaz, assim resumiu o impasse:
"O artigo vetado obriga a União a compensar as perdas estaduais em educação e saúde. É imprescindível derrubar o veto, ou o legado será um déficit e o comprometimento na prestação de serviços absolutamente essenciais a toda a população. Nenhum gestor vai fechar escolas e hospitais, os custos são permanentes, mas os recursos sumiram. A perda de arrecadação do ICMS, de julho a dezembro, será de R$ 17 bilhões para educação e saúde."
Como debatemos por ocasião da tramitação do PLP 18/2022 nesta coluna Contas à Vista, é inegável a erosão dos pisos estaduais e municipais em saúde e educação e do Fundeb decorrente da juridicamente controversa redução do ICMS.
A promulgação da LC 194/2022 com o veto ao artigo 14 do PLP 18/2022 apenas explicita, com maior clareza, o quanto a União mitiga — concomitantemente — o pacto federativo e o custeio constitucionalmente adequado dos direitos fundamentais à saúde e à educação.
Tamanho é o conflito federativo em torno da falta de compensação federal à perda imposta pela LC 194/2022 aos pisos sanitário e educacional e ao Fundeb que, desde o dia 6 de agosto, o Veto nº 36/2022 passou a sobrestar a pauta das sessões conjuntas do Congresso Nacional, conforme se pode acompanhar aqui e aqui.
Eis uma crucial oportunidade em que o Congresso é chamado a deliberar sobre o custeio federativamente equilibrado de tais direitos fundamentais nucleares. A derrubada do veto ao artigo 14 do PLP 18/2022 pode resguardar — a um só tempo — o pacto federativo e o custeio dos direitos à saúde e à educação, enquanto sua manutenção tende a corroer ainda mais a consecução dos correspondentes serviços públicos pelos entes subnacionais.
O que está em pauta é o risco de acirramento de conflito que mitiga — acintosamente — nas contas estaduais e municipais a progressividade de custeio proporcional à arrecadação tributária nas ações e serviços públicos de saúde e nas atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino (respectivamente artigos 198, 212 e 212-A da Constituição).
A disputa, estruturalmente, reside na interpretação sobre o alcance das normas que tanto distribuem responsabilidades federativas em arranjos orgânicos para consecução de políticas públicas; quanto fixam vinculações de receita, deveres de gasto mínimo em saúde e educação e um orçamento especializado na seguridade social.
Os serviços públicos essenciais no Brasil estão erigidos sobre dois pilares, a saber, vinculação orçamentária e organização federativa solidária, os quais deveriam garantir — em reforço recíproco — a dimensão objetiva dos direitos à saúde e à educação e do arranjo sistêmico da seguridade social.
Na tensão entre estabilização monetária e efetividade dos direitos sociais, tem sido historicamente recorrente a erosão das proteções constitucionais a esses últimos. Desvincular receitas, reduzir o escopo dos regimes de gasto mínimo e restringir o alcance interpretativo de transferências intergovernamentais equalizadoras das distorções federativas tornou-se estratégia reiterada, ao longo do tempo, de uma falseada e frágil agenda de controle da inflação.
É oportuno lembrar que há décadas se sucede o esvaziamento da responsabilidade de equalização fiscal da União em face dos entes subnacionais nas políticas públicas de educação e saúde, cujo arranjo orgânico constitucionalmente pressupõe rateio federativo de recursos na forma tanto do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), quanto do Sistema Único de Saúde (SUS).
Na educação, cabe citar três exemplos de deliberada guerra fiscal no financiamento federativo da educação pública: o primeiro deles reside na omissão federal quanto ao dever de complementação equitativa na educação básica obrigatória afronta o artigo 211, §§1º e 7º da Constituição e as estratégias 7.21, 20.6 e 20.7 do Plano Nacional de Educação (Lei federal nº 13.005/2014) que se referem ao conceito do custo aluno qualidade inicial e custo aluno qualidade (CAQi e CAQ). O segundo reside na pura e simples postergação da quitação dos precatórios do extinto Fundef empreendida pelo artigo 4º da Emenda 114/2021. O terceiro exemplo pode ser extraído do fato de que a inibição da arrecadação do imposto sobre produtos industrializados e a limitação de alíquotas do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços empreendida pela Lei Complementar 194/2022 tendem simplesmente a anular, de forma indireta e imediata, a determinação da Emenda 108/2020 de acréscimo escalonado até 2026 da complementação federal ao Fundeb.
Na saúde, cabe resgatar dois exemplos de falseamento das responsabilidades federativas de custeio do SUS. O primeiro pode ser visto na falta de consolidação das pactuações federativas celebradas na Comissão Intergestores Triparte para aprovação do Conselho Nacional de Saúde e publicação pelo Ministério da Saúde restringe nuclearmente o alcance do artigo 198, §3º, II da Constituição. O segundo exemplo passa pelo fato de que o piso federal em ações e serviços públicos de saúde — fixado inicialmente pelo artigo 55 do ADCT em 30% do orçamento da Seguridade Social — foi redesenhado de forma reducionista pelas Emendas 29/2000, 86/2015 e 95/2016, o que fez com que a participação proporcional da União no custeio do SUS caísse em quase 25% no volume global de recursos públicos vertidos pelos três níveis da federação.
Enquanto são erodidos os pilares sociais da Constituição de 1988, nunca saem do papel efetivamente as promessas residuais de enfrentar as iniquidades fiscais que perpassam as receitas (a exemplo das renúncias fiscais perenes, da dívida ativa inexecutada, da sonegação premiada em Refis sucessivos e da regressiva matriz tributária) e as despesas financeiras (do que dá provas a falta de limites para as dívidas consolidada e mobiliária da União).
É preciso reconhecer, pois, como duas faces da mesma moeda, a regressividade proporcional de custeio dos direitos fundamentais por parte da União, de um lado, e a fragilização recorrente da equitativa descentralização de responsabilidades e repasses federativos que amparam políticas públicas definidas estruturalmente no texto constitucional, de outro. Trata-se de uma contraditória e evidentemente predatória atividade legiferante da União em relação aos demais entes da federação, que afronta a noção teleológica de gestão fiscalmente responsável. Isso porque são impostas obrigações nacionais de despesa, a exemplo dos pisos remuneratórios das carreiras docente e de enfermagem; ao mesmo tempo em que o ente central dá causa à inibição da receita de impostos que perfazem o federalismo fiscal brasileiro.
É preciso, cada vez mais, defender o federalismo conjuntamente com os pisos em saúde e educação, porque a guerra fiscal brasileira perpassa ambas as dimensões: inibição de receitas e descentralização de despesas, sem suficiente equalização federativa dos recursos e das responsabilidades de custeio na consecução dos direitos fundamentais.
Sem tal defesa concomitante, será empreendida de forma ainda mais veloz e evidente a erosão dos direitos sociais, em seus arranjos federativo e financeiro, em desconstrução do eixo de identidade da Constituição de 1988.
A erosão de qualquer dos quatro pilares inscritos no §4º do artigo 60 da CF fragiliza estruturalmente nosso ordenamento, pois há entre eles evidente conexão reflexiva e reforço normativo. Infelizmente, contudo, a comunidade jurídica não tem tido suficiente clareza sobre o severo risco de desmoronamento fiscal das cláusulas pétreas, a pretexto de corrosão paulatina do financiamento federativamente equilibrado dos nossos principais direitos sociais.
Não basta formalmente vedarmos que não haja mitigação da (1) federação brasileira; do (2) ciclo eleitoral mediante voto direto, secreto, universal e periódico ou mesmo, ainda, do (3) sistema de freios e contrapesos. É necessário que defendamos, mediante garantia de prioridade orçamentária efetiva, o compromisso civilizatório para com a realização intertemporal dos (4) direitos fundamentais.
Eis, em suma, a razão pela qual reputamos inconstitucional, do modo como está pautado, o veto ao artigo 14 do PLP 18/2022, em seu escopo nuclear de redução da capacidade de custeio dos serviços públicos essenciais nos estados, DF e municípios, sobretudo em face do retrocesso que impõe aos pisos em saúde e educação e ao Fundeb.
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