Observatório Constitucional

Novo capítulo no tema das associações autoras de ações coletivas

Autor

20 de agosto de 2022, 8h00

As ações coletivas adquiriram importância inquestionável no direito brasileiro e se transformaram em importantes instrumentos de proteção de direitos difusos e coletivos. Há também inegável valor no campo da economia processual e da democratização do acesso à Justiça, uma vez que uma ação tem o potencial de representar inúmeras pretensões individuais.

A Constituição, inclusive, reconhecendo esse potencial, tratou tanto da ação popular (artigo 5º, LXXIII), quanto da ação civil pública (artigo 129, III). Ainda no elenco dos direitos e deveres individuais e coletivos do artigo 5º, prescreve-se, no inciso XXI, a responsabilidade das entidades associativas em sua atuação judicial e extrajudicial.

Como todo o instituto jurídico, entretanto, as ações coletivas precisam ser compreendidas em contextos sociais e econômicos complexos, de atrito entre direitos fundamentais igualmente prestigiados, de concordância entre valores constitucionais e de nítido choque entre direitos individuais, direitos coletivos, interesses associativos e interesses de setores econômicos.

A premissa que se quer aqui estabelecer é essa: uma interpretação constitucionalmente adequada de qualquer instituto jurídico precisa garantir regime claro de responsabilidade associada ao exercício de qualquer prerrogativa processual. No tema das garantias constitucionais processuais, se é verdade que o "poder de agir" não engloba o poder de abusar ou de praticar o excesso, torna-se evidente que limites razoáveis precisam ser assegurados a tais prerrogativas.

Fixada essa proposição inicial é de se destacar que, nos últimos anos, algumas decisões judiciais vêm apontando para um sentido contrário, especialmente no campo da atuação das associações por meio de ações civis públicas. Um exemplo eloquente desse direcionamento foi o julgamento levado à cabo pela 2ª Seção do STJ, em abril de 2021, nos autos do RESP nº 1.438.263, por meio do qual se definiu o Tema Repetitivo nº 948.

Naquela assentada, o STJ definiu que "Em Ação Civil Pública proposta por associação, na condição de substituta processual de consumidores, possuem legitimidade para a liquidação e execução da sentença todos os beneficiados pela procedência do pedido, independentemente de serem filiados à associação promovente".

Para chegar a essa conclusão, a 2ª Seção entendeu haver duas espécies de legitimidade concedida às associações:

(1) a legitimação ordinária com base no artigo 5º, XXI, da Constituição, entendida como "representação processual"; e

(2) a legitimação legal extraordinária com arrimo nos artigos 81, 82, 91 e 103 do CDC e artigo 5º da Lei nº 7.347, de 24/7/1985 (ação civil pública substitutiva ou ação coletiva de consumo), entendida como "substituição processual".

No primeiro caso, apenas os associados experimentariam os efeitos da legitimação de sua associação para a ação coletiva. No segundo caso, qualquer consumidor — independente de ser associado — seria beneficiado pela propositura de ação por associação.

O STJ, portanto, criou uma estranha oposição entre a situação prevista na Constituição e a situação que seria extraída de interpretação heterodoxa do CDC. Nessa lógica, a lei ordinária (representada pelo CDC) passa a não mais concretizar dispositivos da Constituição, mas a rivalizar com eles, assumindo existir uma nova fonte normativa paralela ao Texto Constitucional. O que está no artigo 5º, XXI, da Constituição não é o tratamento da questão, mas apenas o tratamento parcial da questão.

Certamente a defesa do consumidor é um valor importante prestigiado pela Constituição (artigo 5º, XXXII; e artigo 170, V), mas daí não se deveria extrair argumento que, na prática, atribui ao CDC uma hierarquia constitucional e às ações coletivas que a instrumentalizam um regime ilimitado. Uma consistente teoria da interpretação constitucional teria dificuldade para acomodar tal conclusão.

Essa possibilidade aventada pelo STJ se abriria também para ações coletivas articuladas na defesa do meio ambiente? De valores artísticos, turísticos e paisagísticos? Contra infrações da ordem econômica ou da ordem urbanística? Na defesa do patrimônio público e social ou à honra e dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos? Afinal, não é possível identificar legislações ordinárias protetivas desses valores? Não teríamos aqui novos casos de "substituição processual" para direitos homogêneos?

Notem que, com esse enquadramento de premissas, a exceção (legitimidade extraordinária) passa a ser a regra, e a regra constitucional (representação processual) se torna elemento ancilar e secundário.

Esse salto criativo realizado pelo STJ ganha contornos ainda mais dramáticos se se considerar que o Supremo Tribunal Federal tem posição assentada acerca da interpretação do artigo 5º, XXI, da Constituição e, portanto, acerca da legitimidade ativa para executar sentença prolatada em ação coletiva proposta por associação.

De fato, no julgamento do RE nº 573.232, o tribunal, em decisão de 14/5/2014, fixou a tese de que "a previsão estatutária genérica não é suficiente para legitimar a atuação, em Juízo, de associações na defesa de direitos dos filiados, sendo indispensável autorização expressa, ainda que deliberada em assembleia, nos termos do artigo 5º, inciso XXI, da Constituição Federal". Na sequência do enunciado do Tema nº 82, o STF definiu que "As balizas subjetivas do título judicial, formalizado em ação proposta por associação, são definidas pela representação no processo de conhecimento, limitada a execução aos associados apontados na inicial".

Para o STF, portanto, a sentença em ação coletiva proposta por associação somente pode ser executada pelos associados "apontados na inicial". Não se tem, nessas situações, uma legitimação ativa genérica "independentemente de serem filiados à associação" como ficou decidido pelo STJ. É visível a contradição de orientações jurisprudenciais. Não existe, no plano da interpretação do artigo 5º, XXI, da Constituição, um tipo especial de legitimidade "de consumidor" (especialmente se tratando de direito individual homogêneo) para execução de sentença coletiva.

Em verdade, o STF, adotando a premissa da responsabilidade anteriormente exposta, bem definiu nesse julgamento, inclusive, a "necessidade de autorização expressa dos associados na data da propositura da ação de conhecimento".

Dois anos mais tarde o STF reafirmou sua posição ao julgar o RE nº 612.043 e definir a tese referente ao Tema nº 499 nos seguintes termos: "A eficácia subjetiva da coisa julgada formada a partir de ação coletiva, de rito ordinário, ajuizada por associação civil na defesa de interesses dos associados, somente alcança os filiados, residentes no âmbito da jurisdição do órgão julgador, que o fossem em momento anterior ou até a data da propositura da demanda, constantes da relação jurídica juntada à inicial do processo de conhecimento".

Também nesse julgamento o STF declarou a constitucionalidade do artigo 2º-A da Lei nº 9.494, de 10/9/1997, que limitou os efeitos de sentença prolatada em ação coletiva proposta por entidade associativa "na defesa dos interesses e direitos dos seus associados" a apenas os substituídos.

A jurisprudência do STJ traz enorme desequilíbrio ao regime constitucional de exercício das ações coletivas já que estrutura esse modelo na base do incentivo de um "franco atirador" que somente tem a ganhar com o ajuizamento de sucessivas ações civis públicas, sem qualquer vinculação a um regime de responsabilidades. A demonstração desse nefasto efeito é fácil, uma vez que basta a observação imparcial do que está a acontecer no campo do direito do consumidor.

Se qualquer pessoa pode se beneficiar da ação de uma associação, essa associação não tem a obrigação de se institucionalizar, de buscar associados, de responder internamente por suas ações, de se submeter a uma decisão técnico-estratégica tomada por seus associados.

Não se adere a ela um regime normativo de responsabilidades. Sem essa necessária institucionalização, a associação perde a sua nota mais característica: a de ser a reunião de pessoas para atuar em favor do bem comum desse grupo. É o vínculo associativo concreto que se forma entre a legitimidade para representação de seus filiados e esses mesmos filiados que marca a identidade substancial da associação. E sem associação não se tem, nos termos da Constituição, o poder de agir em ações coletivas (artigo 5º, XXI, da CF e artigo 5º, V, da Lei nº 7.347, de 24/7/1985; e artigo 82, IV, do CDC).

Não considerar esse aspecto é abandonar o elemento orgânico na conceituação de associação. Embora as Leis 7.347/85 e o CDC façam menção, para fins de definição da legitimidade nas ações coletivas, apenas a critérios objetivos (associações constituídas há pelo menos um ano e que tenha fins institucionais específicos por meio de previsão estatutária), isso certamente não basta para caracterizar essencialmente uma associação.

A falta de uma representação orgânica de pessoas objetivamente identificadas e reunidas de maneira associativa macula o próprio regime das ações coletivas, uma vez que permite que qualquer pessoa se arvore no "direito" de falar em nome de todos. Ora, quem são esses "todos"? Como é possível verificar, nesses termos amplíssimos, a correção do argumento, do pedido e do interesse defendido pela associação na ação coletiva?

Essa situação não pode ser comparada ao modelo de atuação judicial do Ministério Público que, por expressa previsão constitucional (artigo 127 e artigo 129, III) detém essa legitimação para atuar em nome de interesses difusos e coletivos.

A falta de responsabilidade da entidade para prestar contas internamente perante pessoas concretas e definidas permite — em nome de uma legitimação fluida e abstrata — a construção de ações abusivas, algumas de conotação pessoal e com pedidos esdrúxulos. No campo da defesa do consumidor, esse fenômeno é especialmente notável, especialmente diante da possibilidade real de celebração de acordos que garantem, ao final, recursos e valores à suposta associação autora.

Essa é uma marcante consequência dessa jurisprudência: a reificação das ações coletivas das associações para a defesa do consumidor.

Ademais, é importante considerar ainda o papel normativo do artigo 2º-A, da Lei nº 9.494, de 10/9/1997 no grande quadro da questão. Tal dispositivo, declarado constitucional pelo STF, trata expressamente dos limites do âmbito subjetivo da legitimação processual, vinculando a atuação da associação aos interesses de seus filiados. Trata-se, em verdade, de dispositivo de impossível conciliação com o posicionamento adotado pelo STJ, o que remete necessariamente à aplicação da Súmula nº 10 do STF.

O assunto retorna à jurisdição constitucional e o STF é mais uma vez chamado a decidir acerca do futuro de dimensão importante das ações coletivas. Isso porque se encontra sob a relatoria do ministro Edson Fachin o ARE nº 1.382.624, consubstanciando os recursos extraordinários interpostos contra esse acórdão do STJ.

A repercussão geral da questão constitucional é evidente, especialmente sob o ângulo da concorrência de duas jurisprudências divergentes. Trata-se de mais um desafio para o STF diante do qual se apresentam dois claros cenários: a opção pela ampliação ilimitada (e pouco refletida) dos efeitos de sentença proferida em ação civil pública consumerista ajuizada por associação e a opção pela repercussão responsável e consistente dos efeitos dessa sentença em linha com o que já decidido. Um dos cenários, pelo seu tom performático, tem diminuído significativamente a estatura constitucional especial que havia sido garantida às ações coletivas e às associações.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!