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Lillian Salgado: Mínimo existencial, conta que não fecha

19 de agosto de 2022, 17h07

Por Lillian Salgado

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Foi editado e publicado em Diário Oficial da União, no último dia 26 de julho, o Decreto nº 11.150/2022, que regulamenta a "preservação e o não comprometimento" do mínimo existencial para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento em dívidas de consumo, nos termos do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 — Código de Defesa do Consumidor (CDC).

O Instituto Defesa Coletiva, por intermédio do seu comitê técnico do qual eu presido, em razão da publicação do decreto, que, absurdamente, definiu o mínimo existencial nas relações de consumo em 25% do salário mínimo, quer demonstrar através deste artigo os fundamentos de inconstitucionalidade e ilegalidade do referido ato do presidente da República.

A norma editada tem por objetivo "regulamentar" o mínimo existencial previsto na Lei nº 14.181/2021, que alterou o Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo diretrizes para preservação e tratamento do superendividamento no Brasil. Porém, no exercício dessa atribuição legal, o chefe do Poder Executivo teve por bem fixar em 25% do salário mínimo o montante da renda do consumidor destinado às despesas básicas para a sobrevivência. De pronto, já é possível identificar que o ato transbordou os limites da espécie normativa denominada decreto.

Vejamos: o decreto é um ato infralegal que deve ser utilizado para regulamentar uma lei, isto é, sua base e seus limites emanam da legislação. Nesse sentido, a regulamentação por decreto não pode limitar ou diminuir aquilo que a lei estabeleceu. Além disso, o decreto afronta essa básica premissa da hierarquia de normas do ordenamento jurídico brasileiro, incorrendo em desrespeito ao artigo 84, IV, da Constituição da República, porque esvaziou por completo a lei que deveria regulamentar. Em outros termos, a publicação do referido decreto funcionou como uma verdadeira revogação das normas da Lei nº 14.181/2021, vez que com ela não guarda qualquer compatibilidade.

A Lei nº 14.181/2021 positivou medidas para prevenção e tratamento do superendividamento no Brasil. Para tanto, atribuiu aos fornecedores, como os bancos, o dever de oferecer crédito de forma responsável, com a promoção do aconselhamento e de informações claras ao consumidor. A legislação, estabeleceu, também, balizas para o tratamento da pessoa superendividada, demonstrou clara opção de priorizar a preservação dos direitos básicos do consumidor, buscando diminuir o estigma social decorrente da inadimplência, resgatando a dignidade do cidadão, por meio da proteção do seu mínimo existencial.

Essa essência legal não foi contemplada no Decreto nº 11.150/2022, que, subvertendo a sua função da regulamentação, diminuiu o alcance e a efetividade da Lei nº 14.181/2021 ao estipular em 25% do salário mínimo o percentual correspondente ao valor destinado para as despesas básicas do consumidor superendividado. Além de fixar um valor de mínimo existencial que não condiz com a Lei nº 14.181/2022, o Decreto excluiu do seu cálculo dívidas que, segundo a citada lei, deveriam constar da equação do mínimo existencial, tais como as operações decorrentes de crédito consignado, o que retira do decreto sua validade jurídica. Ademais, o percentual de 25% não poderá ser atualizado de acordo com o salário mínimo a cada ano, vez que o decreto estabeleceu que caberá ao Conselho Monetário Nacional promover a alteração do valor do mínimo existencial. Desta forma, o que identificamos, é um verdadeiro disparate contra a sociedade brasileira, pois foi desconsiderada uma das maiores mazelas do país: a perda de poder de compra do cidadão em decorrência da inflação.

A edição do Decreto nº 11.150/2022 fere também o caráter democrático que se espera da regulamentação de uma lei de tamanha importância para o mercado de consumo brasileiro, como a Lei nº 14.181/2021. No ponto, percebe-se que foram ignoradas todas as contribuições dos órgãos e das entidades de defesa do consumidor, especialmente as discussões ocorridas na audiência pública promovida pela Senacon, para discussão do mínimo existencial, em outubro de 2021. O Instituto Defesa Coletiva desenvolveu trabalho relevante, baseando-se em dados científicos e econômicos expostos no parecer econômico da economista Adriana Fileto, mestre em finanças pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

O estudo foi apresentado a Senacon, por meio do Ofício 2021-25.10-197, encaminhado à secretaria, nas datas de 25/10/2021 e 4/4/2022. A entidade rechaça a fixação de um percentual fixo de mínimo existencial, sugerindo um escalonamento calculado sobre a renda do consumidor.

Primeiro, conforme aponta o parecer técnico da economista Adriana Fileto, com base na Pesquisa Sobre Orçamentos Familiares (POF), que é realizada pelo IBGE, desde 1974, as despesas que devem compor o mínimo existencial são: alimentação, habitação, vestuário, transporte, higiene e cuidados pessoais, assistência à saúde e educação. Assim, o percentual de mínimo existencial deve ser calculado pela soma dessas despesas, de acordo com sete níveis de renda que correspondem aos níveis pré-determinados na POF que variam entre um salário mínimo e mais de 12,5 salários mínimos. Ademais, considerando a extensão territorial do Brasil, as características de consumo variam regionalmente e essas diferenças devem ser contempladas pelo mínimo existencial. Sendo assim, deve-se adotar percentuais específicos para cada uma das cinco regiões do país.

Nota-se, por óbvio, que o valor de 25% do salário mínimo não corresponde ao necessário para a vida digna do cidadão brasileiro, que, segundo os dados científicos precisa de no mínimo 88% de sua renda de até um salário mínimo para suportar as despesas básicas. Hoje o salário mínimo no país é de R$ 1.212,00. Assim, o mínimo existencial, na forma estabelecida pelo Decreto nº 11.150/2022, corresponde a R$ 303, valor bem inferior ao necessário para a compra de uma cesta-básica no Brasil, que custa R$ 663,29, segundo o Dieese, o que compromete cerca de 55% do salário mínimo. Percebe-se, também, que nem mesmo o valor do salário mínimo atual suporta todas as despesas básicas do cidadão. Estudos do Dieese apontam que o salário mínimo ideal no Brasil, para uma família composta por quatro pessoas, deveria ser, em julho de 2022, R$ 6.527,67. 20. Logo, o montante de R$ 303,00 decretado pelo presidente da República como suficiente para a sobrevivência digna do cidadão é mais de 20 vezes menor do que é de fato necessário.

Segundo dados do Serasa, o brasileiro tem encontrado sérias dificuldades para adimplir as contas básicas, como água e luz. Há um aumento na inadimplência destas despesas: em dezembro de 2021, o atraso nas contas básicas representava 23,9% das dívidas das famílias brasileiras, perdendo apenas para os débitos com instituições financeiras e cartões, 27,7%. Nesse cenário, a fixação do mínimo existencial em 25% do salário mínimo tem o condão de instituir no Brasil uma verdadeira escravidão financeira, em contraponto a um aumento exponencial da lucratividade dos bancos. Isso porque, nos termos do Decreto nº 11.150/2022 combinado com a recente Medida Provisória nº 1.106/2022, que aumentou a margem de consignado para 45% e estendeu a contratação de empréstimos consignados a beneficiários do BPC/Loas e dos auxílios sociais, um cidadão poderá ter 120% da sua renda comprometida para pagamento de dívidas, ou seja, estará institucionalizado no país o custo de vida negativo!

Percebe-se que os termos do decreto desconsideraram por completo toda a realidade social do país, na qual a miséria cresce a cada dia. Deixou de lado, ainda, as políticas de prevenção e tratamento do superendividamento instituídas pela Lei nº 14.181/2021, que trouxe mecanismos efetivos de aprimoramento da concessão do crédito, preservação da dignidade do consumidor e fomento do adimplemento de dívidas.

Causa espécie, também, a preterição de toda a discussão sobre o mínimo existencial promovida pelas entidades de proteção do consumidor, como o Instituto Defesa Coletiva, que foram completamente silenciadas na regulamentação de um tema de fundamental importância para a recuperação da dignidade dos mais de 30 milhões de cidadãos brasileiros superendividados, em total ultraje aos artigos 4º, II, b; 5º, V; 105 e 106, IX, todos do CDC, que fomentam a participação democrática das associações no Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

Nessa linha de intelecção, conclui-se que o Decreto nº 11.150/2022 afronta, a um só tempo, os seguintes ditames da Constituição da República: (1) artigo 1º, III, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro; (2) artigo 3º, II e III, por não contribuir para o desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza e da marginalização, nem para a redução das desigualdades sociais; (3) artigo 5º, XXXII, porque cabe ao Estado promover a defesa — e não a exposição — do consumidor; (4) artigo 6º, por privar o cidadão de seus direitos sociais; (5) artigo 7º, IV, uma vez que o valor do salário mínimo não arcará com as necessidades básicas dos consumidores; (6) artigo 84, IV, pois que o ato normativo transbordou os seus limites regulamentares ao esvaziar o conteúdo da Lei nº 14.181/2021; e (7) artigo 170, V e VII, pois a ordem econômica tem entre seus objetivos assegurar a existência digna, com base na justiça social, fundamentada nos princípios da defesa do consumidor e da redução das desigualdades regionais e sociais, o que não ocorrerá com a aplicação do decreto.

O Decreto nº 11.150/2022 desrespeita, também, as diretrizes internacionais de proteção à dignidade da pessoa humana, tal como consubstanciado no artigo 25, 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU: todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

Para findar, garantir o mínimo existencial não constitui um favor, pelo contrário, deve ser um dos principais objetivos de um Estado Democrático de Direito que se preze. Permitir que o cidadão viva com R$ 303, inundado por dívidas impagáveis, publicidades predatórias das instituições financeiras, sem qualquer garantia de sobrevivência digna relega o consumidor a uma verdadeira escravidão contemporânea. Portanto, é uma conta que não fecha!

E se a conta não fecha, é urgente a revogação do Decreto nº 11.150/2022 e a consequente adoção da Tabela de Mínimo Existencial escalonada pela renda do consumidor como garantia e resgate da dignidade e cidadania da população brasileira.