Opinião

Por uma lei geral nacional dos concursos públicos

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19 de agosto de 2022, 13h14

No Brasil, com razão, há muitas críticas acerca do excesso de leis. Há lei para tudo, ficando cada dia mais difícil saber quais são os nossos direitos e deveres. Por outro lado, é curioso que mesmo com tal inchaço legislativo ainda faltem leis para regular temas importantes da vida nacional.

E um desses temas diz respeito ao concurso público, pois, não temos ainda uma lei geral nacional [1] estabelecendo quais são os direitos e as obrigações daqueles que se submetem a um concurso público. Muitas das regras previstas atualmente são fruto da jurisprudência dos Tribunais Superiores, notadamente, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Ocorre que, recentemente, dois grandes [2] concursos (Polícia Civil dos estados da Bahia e do Paraná) tiveram suas provas suspensas sendo que num deles (Polícia Civil do Paraná) a suspensão só foi comunicada aos candidatos horas antes da prova começar. Daí que surgem os questionamentos: quais os direitos desses candidatos que, muitas vezes,
vieram de longe para fazer a prova? Cabe algum tipo de indenização a título de dano moral e/ou material?

É evidente que dentre os milhares de inscritos alguém tenha se sentido lesado e queira bater às portas do Poder Judiciário a fim de obter algum tipo de ressarcimento. E, neste caso, a falta de uma legislação nacional prevendo hipóteses como esta pode levar a decisões conflitantes dos tribunais o que, por certo, desprestigia a segurança jurídica.

Com efeito, ao menos em tese, juízos diferentes podem entender, por exemplo, pela (in)existência de dano moral: um juízo pode decidir que há dano moral [3] e outro concluir que não há dano moral, ou seja, que é caso de mero aborrecimento.

A Constituição prevê que o Estado responde pelos danos causados
aos particulares cabendo eventual direito de regresso em face do causador do dano. É o que consta expressamente do artigo 37, § 6º da CF segundo o qual "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que
seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa"
. É com base principalmente neste dispositivo constitucional que os candidatos que se sentem lesados acionam o Poder Judiciário.

O STF já tem jurisprudência firmada acerca da responsabilidade civil do Estado no que diz respeito a cancelamento de concurso por indício de fraude. No julgamento do RE no 662.405/AL [4], relatado pelo ministro Luiz Fux, o Tribunal decidiu que "o Estado responde
subsidiariamente por danos materiais causados a candidatos em concurso público organizado por pessoa jurídica de direito privado (art. 37, § 6o, da CRFB/88), quando os exames são cancelados por indícios de fraude"
.

Mas é preciso ter muita cautela ao analisar este precedente tendo em vista
todas as peculiaridades envolvidas nele sendo a principal delas a questão da fraude, ou seja, o que o STF decidiu é que há responsabilidade civil subsidiária — não direta — do Estado quando o concurso é cancelado por suspeita de ter havido indício de fraude na condução do certame.
E mais: a responsabilidade se dá apenas naquilo que toca aos danos materiais (ex: despesas com hospedagem e alimentação devidamente comprovadas por quem não reside na mesma cidade onde a prova é realizada).

É isso que consta expressamente da ementa do acórdão: "(…) 4. O
cancelamento de provas de concurso público em virtude de indícios de fraude gera a responsabilidade direta da entidade privada organizadora do certame de restituir aos candidatos as despesas com taxa de inscrição e deslocamento para cidades diversas daquelas em que mantenham domicílio. Ao Estado, cabe somente a responsabilidade subsidiária, no
caso de a instituição organizadora do certame se tornar insolvente (…)"
[5].

Já no que diz respeito aos pedidos de dano moral a jurisprudência se inclina no sentido de entender que o cancelamento de prova de concurso é mero aborrecimento a que todo candidato está sujeito a passar.

No caso dantes citado envolvendo a Polícia Civil do Paraná colhe-se do
acórdão da Turma Recursal a seguinte passagem "(…) os transtornos e aborrecimentos decorrentes do adiamento da prova, ainda que implicassem deslocamento entre cidades, não podem ser comparados às situações de profundo desgosto que geram abalo moral indenizável" [6].

E no mesmo acórdão há citação de outros julgados em sentido idêntico valendo a pena destacar o seguinte: "ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANCELAMENTO. DANOS MATERIAIS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. DANOS MORAIS. AUSÊNCIA. 1. O sentimento
de frustração e insatisfação em virtude do fato ocorrido não gera a pretendida indenização por dano moral, fazendo jus a candidata somente ao ressarcimento das despesas realizadas em razão do concurso anulado
(TRF-4, AC 5006225-56.2011.4.04.7100, 4ª Turma, rel.: Luís
Alberto D'Azevedo Aurvalle. Julgado em 21/10/2014)".

No nosso entendimento seria prudente que uma lei geral nacional de concursos públicos previsse expressamente o cabimento de danos morais e/ou materiais sempre que houvesse anulação do concurso o que, por certo, causa prejuízo das mais variadas ordens para todos aqueles que se submetem a tais certames. Danos estes que não são, segundo
pensamos, apenas de ordem material, mas também, moral.

Concurso público no Brasil é projeto de médio a longo prazo. Envolve, além de recursos financeiros, expectativas, sonhos, projetos de vida. Muitas vezes os candidatos se preparam com anos de antecedência para aquela prova específica. Entender genericamente que o cancelamento do concurso não gera dano moral nos parece inadequado.

E analisando o texto do projeto de lei no 252/2003 [7], aprovado esta semana na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado, nota-se que as questões acima mencionadas até são tratadas no texto, todavia, de maneira muito vaga e genérica.

Com efeito, o texto fala que todos os atos relativos ao concurso público são
passíveis de exame e decisão judicial, especialmente, dentre outros, os que configurem lesão ou ameaça de lesão a direito do candidato (artigo 4º, inciso II) e diz também que o cancelamento de concurso público com edital já publicado exige fundamentação objetiva, expressa e razoável, amplamente divulgada, e sujeita o órgão responsável a indenização por prejuízos comprovadamente causados aos candidatos (artigo 8º).

Como o projeto de lei foi enviado ao Senado, esperamos que lá ele
seja aperfeiçoado e a questão envolvendo os danos morais e materiais no caso de cancelamento do concurso seja mais detalhada. O tempo dirá se é isso que acontecerá.


[1] Falamos em legislação nacional sem desconhecer, por exemplo, a existência da Lei Distrital no 4.949, de 15/10/2012, que estabelece
normas gerais para realização de concurso público pela administração direta, autárquica e fundacional do Distrito Federal.
[2] Estamos nos referindo ao concurso público da Polícia Civil do Estado do Paraná – https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2021/02/22/concurso-policia-civil-do-parana-entenda-o-que-levou-a-suspensao-da-prova-e-quais-as-consequencias-da-decisao.ghtml – e ao concurso público da Polícia Civil do Estado da Bahia – https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2022/07/30/apos-suspensao-por-confusao-na-aplicacao-de-provas-concurso-para-delegado-de-policia-civil-da-bahia-tem-nova-data-divulgada.ghtml.
[3] No caso específico do concurso da Polícia Civil do Paraná um candidato ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais em face da Universidade Federal do Paraná. Ao analisar a questão, o juízo decidiu pela procedência dos pedidos. Em grau de recurso, a Turma
Recursal deu parcial provimento ao recurso interposto reconhecendo apenas a existência de dano material. (Processo nº: 5011150-
55.2021.4.04.7000).
[4] Recurso Extraordinário no 662.405/AL, rel. min. Luiz Fux, Plenário, j. 29/6/2020.
[5] Recurso Extraordinário no 662.405/AL, rel. min. Luiz Fux, Plenário, j. 29/6/2020.
[6] Recurso Cível nº: 5011150-55.2021.4.04.7000/PR. 1ª Turma Recursal do Paraná. Relator: juiz federal Vilian Bollmann. Julgado em
20/9/2021.
[7] https://www.camara.leg.br/noticias/901670-plenario-aprova-proposta-que-cria-norma-geral-para-concursos-publicos-
acompanhe/
. Acesso em /6/8/2022.

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