Opinião

Futuro do instituto da relevância está nas mãos do legislador infraconstitucional

Autores

  • Luiz Rodrigues Wambier

    é advogado com atuação no Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal sócio do escritório Wambier Yamasaki Bevervanço & Lobo Advogados e professor no programa de mestrado e doutorado em Direito do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

  • Evie Malafaia

    é advogada e mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

17 de agosto de 2022, 9h01

Em vigor há quase um mês, a Emenda Constitucional 125/2022 já foi objeto de incontáveis artigos doutrinários, nos quais foram externadas dúvidas e preocupações a respeito da aplicação do filtro ao exame dos recursos especiais. Ainda que estejamos em um cenário bastante prematuro, afinal, muito há de ser regulamentado pela lei ordinária, cumpre-nos, aqui, trazer as nossas primeiras impressões sobre o tema. Embora o requisito da relevância já exista como Direito posto, importante destacar dois problemas que devem ser mitigados, a aumentar a responsabilidade do legislador infraconstitucional que disciplinará o instituto.

O primeiro deles — que, ao que nos parece, escapou aos comentários daqueles que já se manifestaram sobre o tema — diz respeito aos impactos da estadualização da interpretação do direito federal. Muito embora a introdução de um filtro de acesso do jurisdicionado ao tribunal superior seja vista como solução inafastável por parte da doutrina, que destaca o baixo número de recursos em tribunais estrangeiros que assim o fizeram, não se pode perder de vista que a importação de institutos de outros países demanda necessária ressignificação à luz da cultura e da sociedade brasileira. Não é porque funcionou lá, que funcionará cá, e outros exemplos de antropofagia jurídica já revelaram isso.

E o contexto brasileiro é de um país cuja vida em sociedade é regrada, em quase sua totalidade, por leis federais. O artigo 22 da Constituição contempla um extenso rol de matérias cuja competência legislativa é exercida privativamente pela União. O artigo 24 traz inúmeras outras matérias nas quais a União pode legislar concorrentemente aos demais entes federativos, cabendo-lhe o papel de traçar as normas gerais sobre cada um dos temas. Aos municípios sobra a atividade legislativa para assuntos de interesse local (artigo 30, I) e os estados possuem uma competência residual a tudo isso (artigo 25, §1º).

Em decorrência da ampla competência legislativa conferida à União, e visando a controlar o assoberbamento do Supremo Tribunal Federal, o Constituinte originário previu a criação de um novo tribunal superior  e de um novo recurso  com a precípua função de uniformizar a interpretação da lei federal neste país de dimensões continentais. Desta forma, poderia o STF consolidar-se como Corte Suprema da interpretação das normas constitucionais, ao tempo em que o Superior Tribunal de Justiça teria a função de controle da aplicação das leis federais.

Assim, a inclusão de um filtro que oportunizará o STJ afastar o papel traçado pelo Constituinte originário implica, necessariamente, admitir que, ao menos em certas hipóteses, a última palavra sobre a aplicação da lei federal será dada por um tribunal ordinário. Nesses casos, haverá, sim, estadualização da interpretação da lei federal. Pode-se dizer, portanto, que o Constituinte derivado alterou de forma significativa o papel previsto pelo constituinte de 1988 para o Superior Tribunal de Justiça.

Como conciliar, agora, a limitação imposta pelo constituinte derivado com a mesma ampla competência legislativa da União? E mais do que isso, como conciliar essa nova realidade com o discurso de isonomia e previsibilidade atribuído ao sistema de precedentes no âmbito dos tribunais superiores? A defesa da vinculatividade da tese de direito firmada em recurso especial repetitivo tem como principal fundamento a necessidade de interpretação isonômica da lei federal em todo país. Agora, essa mesma lei federal, em algumas hipóteses, não precisa ter uma interpretação tão isonômica assim.

A fim de mitigar os efeitos da inafastável estadualização da interpretação da lei federal, a lei regulamentadora deveria incluir novas hipóteses de relevância presumida, além daquelas enumeradas pela Constituição Federal.

Uma delas seria a ação civil pública, já que a extensão subjetiva do acórdão ali proferido  norma jurídica que contiver interpretação de lei federal  é ampla e pode atingir toda a sociedade brasileira, a depender da natureza do direito transindividual discutido, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal [1]. A inclusão desta hipótese dentre o rol de exceções ao filtro encerraria medida salutar à mitigação dos efeitos da estadualização, impedindo que a interpretação última de uma norma federal com aplicabilidade para além dos limites da competência do órgão prolator seja feita por um tribunal ordinário.

Outra hipótese que deveria figurar como presumidamente relevante na futura lei regulamentadora seria a tese de lei federal decidida em sede de IRDR [2]. Em decorrência do efeito vinculante previsto no CPC/15, a tese de direito ali firmada atingirá os casos semelhantes  pendentes e futuros  que estiverem no âmbito da competência do tribunal que a estabeleceu, sendo necessário evitar que a lei federal tenha diferentes interpretações, com efeito vinculante, nos diversos tribunais ordinários brasileiros. Esse não era o plano do constituinte originário.

A segunda questão que nos preocupa  esta, sim, já abordada em artigos publicados sobre o tema [3]  diz respeito ao efeito que a lei regulamentadora atribuirá à decisão do Superior Tribunal de Justiça que negar relevância a uma determinada questão de direito federal. Em outras palavras, a decisão pela inexistência de relevância valerá apenas para o caso concreto  como ocorre na arguição de transcendência prevista na legislação processual trabalhista  ou vinculará os demais casos que tratem de idêntica questão e estejam em tramitação nos tribunais ordinários  à semelhança do que ocorre na repercussão geral?

O artigo 896-A da CLT, com redação dada pela Lei nº 13.467/17, determina que o relator de um recurso de revista "examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica" [4]. O afastamento monocrático da transcendência admite a interposição de recurso ao colegiado competente. A lei não prevê qualquer vinculatividade do tema cuja transcendência foi negada aos casos pendentes de julgamento; ainda, a Presidência do TST não pode negar seguimento a um recurso por falta de transcendência, pois isso é competência do órgão que julga o recurso de revista. Verifica-se, portanto, que a decisão de ausência de transcendência em um determinado caso concreto apenas a ele está adstrito, sem prejuízo de servir como precedente persuasivo para futuros casos.

No instituto da repercussão geral, por outro lado, desde a sua regulamentação pela Lei nº 11.418/2006, a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconhecer a sua inexistência encerra uma tese jurídica que será aplicada nos demais casos que tratem de matéria idêntica. O CPC/15, inclusive, por meio da alteração trazida pela Lei 13.256/16, consolidou a orientação firmada pelo STF na QO-AI 760358, no sentido de descaber agravo em recurso extraordinário da decisão que negar seguimento a recurso cuja repercussão geral da matéria já tenha sido afastada pelo Supremo.

A EC 125/2022 define qual rumo o instituto da relevância deverá tomar, mas seria desejável que seguisse o regime semelhante à transcendência. A uma, para mitigar os efeitos da mencionada estadualização da interpretação da norma federal, já que a análise casuística não impediria o acesso dos demais jurisdicionados à instância superior, inclusive para fazer eventual distinção do seu caso com o precedente persuasivo. A duas, porque aproximar os institutos da repercussão geral e relevância significa aproximar as funções do STF e STJ a despeito do desenho prescrito na Constituição.

Com efeito, muito embora atualmente se defenda um modelo de Cortes Supremas no país, não se pode descurar a existência de hierarquia entre esses dois tribunais. Afinal, apenas o STF é Supremo. A criação do STJ e deslocamento da competência para interpretar a lei federal surgiu para reforçar o papel do STF de Corte Constitucional brasileira. A própria inclusão, pelo Constituinte derivado, do instituto da repercussão geral reforçou esse modelo, atrelado ao discurso de que, na inchada Constituição, nem todas as questões seriam relevantes e muitas delas poderiam ser dirimidas pela aplicação de leis federais. E o STJ remanesceu como o Tribunal da Cidadania, após o STF restringir cada vez mais o acesso do jurisdicionado. Assim, equiparar o instituto da relevância ao instituto da repercussão geral significa deixar uma fresta cada vez menor de acesso do jurisdicionado aos tribunais superiores.

Caso o legislador federal opte por atribuir efeito vinculante à decisão pela inexistência da relevância, espera-se, ao menos, que não repita integralmente o regime conferido à repercussão geral. Isso, porque o regime de vinculatividade previsto atualmente para a repercussão geral impede que o próprio STF faça o controle da aplicação do seu entendimento, uma vez que o artigo 1.030, I, 'a' c/c §2º do CPC/15  de constitucionalidade duvidosa  atribui ao tribunal ordinário essa função, mediante julgamento de agravo interno. Vale lembrar que o STJ possui entendimento muito mais restrito a respeito do cabimento de reclamação para controle de precedentes [5], de modo que também esta via de acesso não seria garantida.

O futuro do instituto da relevância, portanto, está nas mãos do legislador infraconstitucional, que poderá mitigar os efeitos da estadualização e manter o acesso do jurisdicionado ao STJ, ou sucumbir aos anseios pela redução do acervo de processos e desconfigurar o modelo de Poder Judiciário desenhado pelo constituinte originário.

[1] Conforme Tema 1.075 do STF (RE 1101937).

[2] De acordo com a recente jurisprudência da Corte Especial do STJ (REsp 1.798.374/DF), ao menos naqueles casos em que a tese vinculante foi firmada em julgamento que também decidiu o caso concreto.

[3] Nesse sentido, CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. A relevância da questão de direito federal no recurso especial será um filtro individual? Migalhas. Publicado em 19 de julho de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3owl4jf.

[4] O parágrafo primeiro da norma em referência, acertadamente, diga-se, traz critérios para aferição da transcendência nos diversos aspectos elencados no caput.

[5] Conforme decidido pela Corte Especial do STJ na Rcl 36.476/SP.

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