Opinião

Divergência de narrativa na reconstituição: o crime do castelinho da rua Apa

Autor

  • Marcus Rogério Oliveira dos Santos

    é auditor fiscal tributário do município de São Paulo professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos na área fiscal e mestre em Direito Tributário pela FGV Direito-SP e em Engenharia de Estruturas pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

15 de agosto de 2022, 11h01

No texto anterior, vimos que Álvaro César dos Reis foi indicado pela autoridade policial como autor do crime do castelinho da rua Apa sem que houvesse qualquer prova contra ele. Afirmamos que, no laudo elaborado pelo Laboratório de Polícia Technica, havia lacunas que, se resolvidas, demonstrariam que ele foi vítima e não autor desse crime. Vimos ainda que a autoridade policial se baseou em uma premissa equivocada ao considerar que somente os familiares estavam presentes no castelinho na noite do crime e, por meio de um raciocínio lógico bastante questionável, lhe imputou a autoria desse crime.

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Castelinho da rua Apa, no centro de SP
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Porém, atribuir a autoria do crime a Álvaro não foi o único erro cometido pelas autoridades que atuaram no caso, havendo vários outros que colocam em xeque as conclusões da investigação. Um deles é o de que dona Maria Cândida não foi atingida pelos disparos no contexto indicado na reconstituição do crime. Vejamos como foi a narração do fato que a vitimou, pelo Laboratório de Polícia Technica [1]:

"Alvaro Cesar dos Reis, de arma em punho, investe contra Armando, isto no hall da residência de d. Maria Candida. – Na iminência de uma agressão a tiros, ou o próprio Armando se protege com o corpo de sua mãe, ou esta voluntariamente se interpõe aos dois irmãos. Não obstante isso, três tiros partem e d. Maria Candida é attingida por todos elles."

Preliminarmente, não havia sinais de pólvora nas mãos de Álvaro, razão pela qual não pode ser lhe imputada a autoria dos disparos e tampouco foram encontrados sinais de luta no local [2]. Também não foram encontradas digitais na arma, fato que remete a autoria a uma terceira pessoa, pois se Álvaro tivesse alvejado sua mãe e irmão e se suicidado depois, não teria interesse algum em apagar suas digitais na arma. Porém, as inconsistências não se resumem a estes fatos. É necessário verificar os ferimentos produzidos no corpo da anciã pela ação dos projéteis de arma de fogo e comparar com a narrativa apresentada na reconstituição.

Quanto a esses elementos, nos reportamos às descrições dos orifícios de entrada e de saída de projéteis de arma de fogo em seu corpo registrados pelo Gabinete Médico Legal, pois a descrição deles apresentada pelo Laboratório no laudo elaborado omite elementos importantes.

D. Maria Cândida recebeu um disparo enquanto estava de pé, que a transpassou lateralmente, ingressando o projétil na axila direita e saindo pela face lateral esquerda do tórax, quatro centímetros para baixo do concavo axilar. O projétil correspondente a esse disparo, de calibre 9mm, foi encontrado na sala de refeições. Trata-se de um disparo proferido pela pistola Mauser C 96, a arma de titularidade de Álvaro. Considerando o local onde seu corpo foi encontrado, o disparo ocorreu com o atirador localizado no vestíbulo apontando para a sala de refeições, uma vez que não houve manchas de sangue no chão que denunciassem o movimento de pessoa ferida.

Ela sofreu outros dois disparos em que o atirador estava em um plano superior em relação à vítima e de frente para ela: no segundo disparo, o projétil atingiu a região epigástrica (na altura da linha mediana) e saiu pela região sacro lombar esquerda. Tal projétil se esfacelou em três partes ao colidir com o piso do hall. Ocorre que o sentido desse disparo é quase oposto ao do disparo anterior. A massa deste projétil é um pouco mais do que a metade da massa do projétil 9 mm disparado pela pistola Mauser. Lembramos que na cena do crime, foram encontradas cinco cápsulas, enquanto houve sete disparos, no total. Tal fato reporta dois disparos a uma arma que não ejeta cápsula: um revólver. Seria necessário saber se o projétil relativo ao segundo disparo colidiu com tecido ósseo da anciã e se fragmentou dentro do seu corpo ou se a fragmentação ocorreu ao colidir com o piso, conforme afirmamos anteriormente. Verificando que o orifício de saída do projétil do segundo disparo na região sacro lombar esquerda tem forma circular, com diâmetro de 9 mm e com trajetória retilínea dentro do corpo, é pouco provável que tenha ocorrido a fragmentação do projétil em eventual colisão com tecido ósseo. O orifício de saída de um projétil costuma ser superior ao diâmetro do projétil que o provocou. As massas dos fragmentos encontrados totalizam 4,426g ("Dois fragmentos de chumbo e um fragmento de camisa de blindagem (de cobre), tudo resultante do estilhaçamento de um projectil de arma de fogo" [3], demonstrando tratar-se de projétil encamisado ou com jaqueta). Tais informações estão correlacionadas com o calibre .32, o qual possui 8 mm de diâmetro e massa em torno de 4,6g.

Quanto ao terceiro disparo sofrido por dona Maria Cândida, ela estava agachada, com o corpo em forma de arco, sendo que o atirador acertou sua região precordial. O projétil saiu na parte inferior do seio esquerdo e penetrou novamente em seu corpo no hemitorax esquerdo, mais ou menos ao nível do sexto espaço intercostal. Nada podemos afirmar quanto ao projétil relativo a esse disparo, pois não foi realizada necrópsia do seu corpo. Tal fato chegou a ser publicado em jornal [4], noticiando que as autoridades decidiram não realizar esse procedimento. Esse disparo foi realizado no mesmo sentido do segundo com o atirador posicionado frontalmente em relação à anciã.

Outro dado importante: todos os disparos efetuados contra a anciã foram a uma distância superior a 35 cm, em razão da ausência de zona de esfumaçamento e de chamuscamento, conforme declarou o Laboratório de Polícia Technica.

No castelinho, foram encontrados cinco projéteis de calibre 9 mm e cinco cápsulas. Todos os projéteis estavam íntegros, embora ligeiramente amassados, apesar de terem transpassados os corpos de Álvaro, de Armando e de dona Maria Cândida e colidirem com pisos e paredes, ou seja, nenhum deles se fragmentou. Porém, tanto o laudo quanto o exame de corpo de delito, elaborado pelo Gabinete Médico Legal comprovaram que foram realizados sete disparos no total (Álvaro sofreu dois, Armando outros dois e D. Maria Cândia, três). Um desses projéteis foi encontrado fragmentado no piso próximo ao corpo da anciã. O outro ficou alojado em seu corpo. Onde estão as duas cápsulas correspondentes?

Considerando as pequenas dimensões dos cômodos do castelinho, com todo o mobiliário, como verificar a cena narrada na reconstituição se os disparos foram proferidos a uma distância superior a 35 cm? E que tais disparos foram proferidos de sentidos opostos e de armas de calibres distintos.

Esses elementos são suficientes para demonstrar a existência de dois atiradores na cena do crime, um portando a pistola Mauser C 96 e outro, um revólver calibre .32. O primeiro, com a arma encontrada na cena do crime, atirando do vestíbulo para o hall; o segundo, atirando da sala de refeições para o hall. Isso permite afirmar que não havia saída para dona Maria Cândida, ela não poderia fugir do castelinho. As saídas estavam cercadas. Essa conclusão refuta a autoria de Álvaro, pois não se trataria mais de um suposto estado de neurastenia que o conduziu a cometer um ato insano, mas de uma chacina premeditada.

Retornando à reconstituição do crime: se dona Maria Cândida se interpusesse entre os filhos ou se Armando se protegesse com o corpo de sua mãe, como o projétil que transfixou lateralmente o corpo dela não o atingiu? Este foi o primeiro disparo que a anciã sofreu, pois ela estava no mesmo plano do atirador. No segundo e terceiro disparos, ela estava em plano inferior, provavelmente agachada. Nesse momento, se o autor do crime fosse Álvaro, ele poderia atingir seu irmão, ao invés de disparar outras duas vezes contra sua mãe e em sentido oposto ao primeiro disparo e ainda com arma de outro calibre e que não foi encontrada pela polícia na cena do crime.

Vimos, no texto publicado em 2 de abril, que não havia qualquer elemento que pudesse sustentar a imputação da autoria do crime a Álvaro, analisando apenas alguns elementos que mencionamos. Ao analisarmos os ferimentos produzidos em sua mãe, constata-se que a reconstituição do crime perde os seus pilares. A análise dos ferimentos em Armando também auxilia a refutar a hipótese de que somente as três pessoas estiveram presentes no castelinho na noite de 12 de maio de 1937 e, tem como corolário, a rejeição da reconstituição do crime apresentada pelo Laboratório de Polícia Technica.

Os elementos referentes à dona Maria Cândida convergem com todos aqueles já apresentados no texto anterior no sentido de que a reconstituição do crime não se sustenta quando cotejada com o contexto probatório e o limite dessa conclusão é a declaração da inocência de Álvaro. Curiosamente, o corpo da anciã não foi fotografado pelo Laboratório de Polícia Technica, sob a justificativa de que, quando retornaram à cena do crime, os corpos haviam sido removidos. Tal afirmação é inverídica, pois o laudo cadavérico elaborado pelo Gabinete Médico Legal afirma que o exame de corpo de delito foi realizado nas dependências do castelinho e iniciou próximo das 8h da manhã do dia 13 de maio de 1937. A ausência de fotografias de seu corpo e a não realização da necrópsia são lacunas injustificáveis para a elucidação de um crime. As fotos do corpo da anciã que se pode ter acesso foram tiradas pelos jornalistas.

Mais uma vez as conclusões apontam para a inocência de Álvaro, porém aqui, ficou claro o equívoco incorrido pelas autoridades que atuaram no caso ao suporem que apenas os três familiares estiveram presentes na cena do crime. Constata-se a presença de dois atiradores. Uma necrópsia no corpo da anciã, demonstrando que o projétil alojado em seu corpo era de calibre .32 seria a absolvição de Álvaro, porém, quem teria cometido o crime?


[1] Excerto da reconstituição do crime apresentada no laudo elaborado pelo Laboratório de Polícia Technica.

[2] Jornal O Diário de São Paulo, de 13 de maio de 1937.

[3] Excerto transcrito do laudo elaborado do Laboratório de Polícia Technica.

[4] Jornal Diário da Noite, de 13 de maio de 1937 – 4ª Edição.

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    é auditor fiscal tributário do município de São Paulo, professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos na área fiscal e mestre em Direito Tributário pela FGV Direito-SP e em Engenharia de Estruturas pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

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