Direito Eleitoral

Efeitos da detração da nova Lei de Improbidade sobre as inelegibilidades

Autores

  • Amanda Guimarães da Cunha

    é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político autora do livro "Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial" (editora Tiran Lo Blanch) juntamente com Luiz Magno Pinto Bastos Júnior.

  • Guilherme de Salles Gonçalves

    é advogado eleitoralista professor de Direito Eleitoral na UEL na ESA-PR na EJE-PR na ABDConst e na EMA-MT ex-presidente e fundador do Iprade (Instituto Paranaense de Direito Eleitoral) membro fundador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e do Ibrade (Inst. Brasileiro de Direito Eleitoral).

15 de agosto de 2022, 8h05

É de conhecimento amplo e notório que as condenações por improbidade administrativa, dentre outras sanções, podem levar não só à suspensão dos direitos políticos como sanção autônoma mas, nos termos da Lei do Ficha Limpa, a períodos de inelegibilidade como consequência de determinados tipos de condenação em improbidade. É o caso da condenação em ato de improbidade por infração que cumule dano ao erário e enriquecimento ilícito — normalmente dispostas nos artigos 9º e 10º da Lei da Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92, com redação atualmente dada pela Lei 14.230/2021) — prevista na alínea "l" do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 64/90 [1], se assim reconhecida, frisa-se, pela Justiça Eleitoral.

E aqui o destaque é proposital. Há muito tempo a doutrina tem criticado a fórmula que as autoridades e tribunais eleitorais adotam não só para compreender estes atos como aptos a atrair a mencionada causa de inelegibilidade, fazendo uma verdadeira reanálise de mérito — na maior parte das vezes extensiva e em mala partem — das decisões da justiça comum, como em especial os marcos que consideram para o início de sua contagem. E é sobre esse segundo ponto que nos debruçaremos na breve análise de hoje.

A Justiça Eleitoral — majoritariamente e com precedentes sobre a matéria proferidos até 2018 — ainda entende que, para o início da contagem do prazo de inelegibilidade "adicional" (oito anos), há que se esgotar o cumprimento de todas as sanções impostas por conta do ato de improbidade administrativa [2]. E, ainda, insiste em entender como sanção a medida de ressarcimento ao erário [3], posicionando-se contrariamente ao entendimento não só da doutrina majoritária, como dos demais tribunais superiores e do próprio Supremo Tribunal Federal [4].

Com essa postura, além de adotar uma fórmula que prolonga demasiada e arbitrariamente a restrição à capacidade eleitoral passiva, a Justiça Eleitoral acaba afrontando a própria lei. E tal é evidente, visto que a redação da alínea "l" se refere exclusivamente ao cumprimento da pena de suspensão de direitos políticos para início da contagem do prazo de inelegibilidade. Além disso, acaba por instituir um critério censitário, discriminatório e desproporcional sobre o lapso temporal de restrição aos direitos políticos: o daqueles capazes de quitar as obrigações financeiras a termo e os que não.

Todavia, o tema, indene de qualquer dúvida, deve ganhar novos contornos diante das alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa (LIA), aptas a influenciar diretamente também o regime das inelegibilidades. Tema que a Justiça Eleitoral terá que enfrentar, inevitavelmente, já que este é o primeiro período eleitoral sob a sua vigência.

Dentre as mudanças, destacam-se as seguintes: a) o reconhecimento de que se aplicam as regras de direito sancionador ao regime das improbidades; e b) o estabelecimento da detração entre a sentença de segundo grau e a decisão transitada em julgado para cálculo da pena de suspensão de direitos políticos.

Com relação ao primeiro, diz a nova redação:

"Art. 1º — O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021) […]

§ 4º. Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)."

A partir de então, os ilícitos de improbidade administrativa passam a ser considerados, formal e materialmente, como manifestação do direito sancionador, um reconhecimento há muito pleiteado pela doutrina e que acompanha os amplamente majoritários precedentes dos tribunais superiores e do próprio STF [5].

Como consequência, para apuração de tais ilícitos devem ser observadas, invariavelmente, as regras gerais de direito sancionador previstas no ordenamento jurídico, notadamente as do devido processo legal, constitucional e convencional. Para o caso em questão, destaca-se a irretroatividade de regra maléfica e consequentemente a retroatividade de norma mais benéfica, positivada constitucionalmente.

Essa é justamente a inteligência também conferida pela nova redação da Lei 14.230/21 à LIA, ao prever, como regra, a necessidade de detração da pena sobre a sanção de suspensão de direitos políticos pelo período compreendido entre a decisão colegiada de segunda instância e o trânsito em julgado da sentença condenatória; ou seja, considerando o tempo de fato em que o sancionado fica efetivamente inelegível, que é o segundo destaque do assunto em pauta:

"Art. 12 […] § 10. Para efeitos de contagem do prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, computar-se-á retroativamente o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória."

Ora, é nítida a intenção do legislador em conferir como regra critérios estritos de razoabilidade e proporcionalidade no tempo de duração da restrição de direitos políticos fundamentais, que se prolongavam por demasiado no tempo ante as regras antigas — há casos em que, apenas porque recorreu da decisão colegiada de segundo grau para tribunais superiores, o cidadão pode ficar inelegível por prazos superiores a 10, 15, 20 anos.

Isto porque, com o início de contagem da suspensão de direitos políticos após o trânsito em julgado, sem detração do tempo entre esta e a primeira decisão colegiada e somada a o período de inelegibilidade de oito anos imposta pela Lei do Ficha Limpa, chegava-se a esses impedimentos para o exercício da capacidade eleitoral passiva indefensáveis, sobretudo num Estado Democrático de Direito que atribui a natureza jurídica de jusfundamentalidade ao jus honorum.

Diante disso, pode-se afirmar, sem qualquer dúvida, de que o estabelecimento da detração entre a sentença de segundo grau e a decisão transitada em julgado para cálculo da pena de suspensão de direitos políticos afeta a contagem da sanção "adicional" de inelegibilidade, prevista pela alínea "l" do inciso I do artigo 1º da LC 64/90. Será imperativo que as autoridades e tribunais eleitorais, invariavelmente, reconheçam este novo cálculo, a fim de aferir a vigência das inelegibilidades, em especial ante os pedidos de registro de candidaturas para o pleito eleitoral que se avizinha.

É indiscutível ser o momento oportuno para a Justiça Eleitoral revisitar, e revogar de vez, essa absurda fórmula adotada, até então, para o cálculo do prazo de inelegibilidades por atos de improbidade administrativa — eis que tal hermenêutica, multiplicadora dos prazos de restrição ao sufrágio passivo, agora afrontam não só o preceito legal da alínea "l" do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 64/90, mas também os novos parâmetros da atual redação da LIA dada pela Lei 14.230/2021, nos termos exatos do par. 10º do artigo 12 da sua atual redação.

Para tanto, deve passar a considerar o início da contagem da inelegibilidade após o cumprimento apenas da pena de suspensão de direitos políticos imposta pelos atos de improbidade; e, nessa, já deve considerada — descontada — o novo cálculo da detração.

Importante ressaltar que, ainda que seja inerente ao regime de direito sancionador devidamente estendido às improbidades, tramita perante o STF o questionamento sobre a aplicação retroativa dessas normas mais benéficas. Todavia, o tema da detração, por expressa previsão legal, não se encontra dentre as hipóteses questionadas no Tema 1.199 (ARE 843.989/PR), que giram em torno da exigência de verificação de dolo para imputação das condutas e da aplicação dos novos cálculos de prescrição da própria ação de improbidade; no caso, tem-se norma de aplicação imediata, posto que diz respeito ao regime de cumprimento das sanções aplicadas.

Além do mais, para além do reconhecimento dos ilícitos de improbidade como manifestação do jus puniendi estatal, nunca é demais reiterar que, quando se está a aplicar a inelegibilidade, também estamos diante de direito sancionador, não só reconhecido amplamente pela doutrina, mas por que decorre da própria Lei 64/90 [6].

Não obstante, ainda que de forma isolada, nesse sentido há alguns precedentes da própria Justiça Eleitoral, dentre os quais se destaca o RESPE 10.294/RJ, de relatoria do, à época, ministro do TSE, Napoleão Nunes Maia Filho, que especificou:

"[…] 4. Inexistindo, como no caso, no contexto do julgado do órgão competente (Justiça Comum), elementos confiáveis dos quais se possa concluir, com a necessária segurança, que o ato de improbidade praticado pelo agravado configurou, simultaneamente, dano ao erário e enriquecimento ilícito, não há como, do ponto de vista restrito do Direito Sancionador e de suas premissas científicas, admitir a incidência da inelegibilidade prevista na alínea l do inciso I do art. 1º da LC 64/90 […]" (Recurso Especial Eleitoral nº 10.294, Acórdão, relator(a) min. Napoleão Nunes Maia Filho, publicação: DJE — Diário da justiça eletrônico, Tomo 51, data 15/3/2017, página 14/15).

Com isso, a interpretação de qualquer norma, em respeito a esse reconhecimento, deve se dar em prol do sufrágio universal e do exercício dos direitos políticos, não sendo demais reiterar que, em sucessivos pronunciamentos e seguindo a doutrina majoritária, o próprio TSE vem reconhecendo que a única interpretação correta em relação ao exercício do direito jusfundamental ao sufrágio passivo é aquela que lhe confira maior extensão e alcance.

Em nosso regime constitucional, a regra é a elegibilidade, a exceção é a inelegibilidade, consoante magistralmente sintetizou o ex-ministro do TSE Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, nesse trecho de paradigmático acórdão:

"[…] 4. As causas de inelegibilidade devem ser interpretadas restritivamente, a fim de que não alcancem situações não contempladas pela norma e para que se evite 'a criação de restrição de direitos políticos sob fundamentos frágeis e inseguros, como a possibilidade de dispensar determinado requisito da causa de inelegibilidade, ofensiva à dogmática de proteção dos direitos fundamentais' […] 5. As regras que prevêm a inelegibilidade não podem sofrer alargamento por meio de interpretação extensiva, desconsiderando as peculiaridades e a situação real do cidadão, segundo a materialidade do caso analisado, sob pena de obstruir o seu direito constitucional de lançar-se na disputa do certame eleitoral […]" [7].

Não pode haver mais dúvida, assim, que a interpretação da aplicação de qualquer forma de sancionamento que implique em restrição ao exercício dos direitos políticos ou aplicação de inelegibilidade — seja como sanção principal, seja como efeito secundário da pena, seja como consequência jurídica do fato — deve ser interpretada de forma a otimizar o retorno do sancionado ao exercício das suas capacidades eleitorais ativas e passivas.

Afinal, chegou a voz e a vez do direito sancionador e a Justiça Eleitoral está sendo, mais do que chamada a sua responsabilidade, convocada, em atenção à própria regra da legalidade, a se posicionar dessa forma diante do novo tema.

Deve ser superado esse desvio de interpretações maximalistas de uma exceção — a inelegibilidade — que, em sua essência, tem natureza jurídica evidentemente antidemocrática, posto que resulta em diminuir o rol de escolhas de sua excelência, o eleitorado — dando voz a discursos demonizadores da política que, como sabemos, nos trouxeram ao contexto de grave crise que vivemos, onde se ameaça a própria democracia.

 


[1] Art. 1º — São inelegíveis: I- para qualquer cargo: […] l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;

[2] […] PRAZO DA INELEGIBILIDADE. 8 (OITO) ANOS APÓS O CUMPRIMENTO DA PENA. AFERIÇÃO. EXAURIMENTO/ADIMPLEMENTO DE TODAS AS COMINAÇÕES IMPOSTAS NO TÍTULO CONDENATÓRIO. […] (TSE – Recurso Especial Eleitoral nº 23.184, Acórdão, relator(a) min. Luiz Fux, publicação: DJE – Diário da justiça eletrônico, Tomo 49, data 12/3/2018, página 109-111)

[3] […] 2. Para efeito da aferição do término da inelegibilidade prevista na parte final da alínea l do inciso I do art. 1º da LC nº 64/90, o cumprimento da pena deve ser compreendido não apenas a partir do exaurimento da suspensão dos direitos políticos e do ressarcimento ao Erário, mas a partir do instante em que todas as cominações impostas no título condenatório tenham sido completamente adimplidas, inclusive no que tange à eventual perda de bens, perda da função pública, pagamento da multa civil ou suspensão do direito de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente.[…] (TSE – Cta: 33673 DF, relator: min. LUCIANA CHRISTINA GUIMARÃES LÓSSIO, data de julgamento: 3/11/2015, data de publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, data 15/12/2015, Página 25)

[4] Vide Tema 897 e ARe 646.777 do STF e jurisprudência do STJ (ex.REsp nº 1.042.100/ES)

[5] Nesse sentido MS 32201 do STF, REsp 1.353.267/DF e RMS 37.031/SP do STJ

[6] Art. 22 […] XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação […].

Autores

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    é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais, autora do livro "Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial" (editora Tiran Lo Blanch), juntamente com o dr. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior, membro-pesquisadora do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e professora de Direitos Humanos.

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    é sócio do GSG Advocacia, mestrando em Direito Constitucional Eleitoral e professor de Direito Público e de Direito Eleitoral. Fundador e ex-presidente do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (Iprade), membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), membro do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade), do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e do Instituto Paranaense de Direito Administrativo (IPDA).

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