Direito Civil Atual

A maldita "Escola do Direito Livre" (parte 1)

Autor

  • Diogo Pitta

    é advogado em São Paulo mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE) com período de mobilidade acadêmica na Eberhard-Karls Universität Tübingen (Baden-Württemberg).

15 de agosto de 2022, 13h13

Nos últimos 40 anos, a historiografia de Direito Privado alemã tem revisto consensos bem assentados de autorreflexão metodológica e que inclusive haviam sido objeto de recepção na literatura jurídica de outros países, como o Brasil. O esforço de revisão historiográfica de nomes como Bernd Rüthers (1930-), Michel Stolleis (1941-2021), Joachim Rückert (1945-) e Hans-Peter Haferkamp (1966-) revelaram que determinadas concepções acerca da história, teoria e dogmática do Direito Privado alemão tinham sido forjadas no seio do movimento nacional-socialista de "renovação jurídica" com um claro viés anti-liberal e anti-legalista e que, por motivos que extrapolam os limites desse texto, haviam sobrevivido ao processo de desnazificação do pós-guerra.

ConJur
No Brasil, a Revista de Direito Civil Contemporâneo tem sido o locus por excelência de recepção dessa reavaliação dos fundamentos metodológicos e históricos do Direito Privado no século 20[1]. Considerando a enorme influência que autores ligados ao nacional-socialismo tiveram em nossa literatura, como Karl Larenz (1903-1933) e Franz Wieacker (1908-1994) [2], em especial sobre a construção da visão dominante acerca do Código Civil brasileiro de 1916, talhada à imagem e semelhança do Código Civil alemão [BGB] de 1900, mostra-se muito bem-vindo o influxo dessas "novas" ideias alemãs [3].

Em um movimento semelhante à revisão do pandectismo do século 19, autores da civilística alemã contemporânea, como Marietta Auer (1972-) e o já referido Joachim Rückert, têm proposto uma reabilitação do legado histórico da "Escola do Direito Livre", revelando uma série de "lendas" e "fábulas" em torno deste suposto movimento jurídico da virada do século 19 para o século 20, cujas origens também estão em obras-chave de Franz Wieacker e Karl Larenz [4]. Segundo Rückert, "assim como a Jurisprudência dos Conceitos, as reais pretensões e percepções de ambas as tendências [Movimento do Direito Livre e Jurisprudência dos Interesses] são obscurecidas por polêmicas e lendas, especialmente no caso do Direito Livre […]" [5].

Em primeiro lugar, é posta em xeque a ideia de que tenha existido propriamente uma "Escola do Direito Livre", no sentido de um movimento coerente em torno de nomes como Ernst Stampe (1856-1942), Ernst Fuchs (1859-1929), Eugen Ehrlich (1862-1922) e Hermann Kantorowicz (1877-1940) [6]. Havia pouco em comum entre um conservador nacionalista, Oficial de Infantaria prussiano e professor de Direito Civil em Greifswald (Stampe), um praxista, "livre pensador", advogado em Karlsruhe (Fuchs), um austríaco, cosmopolita, social-democrata e professor de Direito Romano em Viena (Ehrlich) e um jovem liberal de esquerda, polemista, de origem judia e professor [Privatdozent[7] de Direito Penal em Freiburg (Kantorowicz). Para Rückert, uma lenda persistente insiste em chamar de "Escola" um grupo nada homogêneo de autores, que nunca chegaram a editar uma revista ou uma série de livros didáticos, comentários à legislação ou qualquer outra forma similar de implementação e divulgação de suas ideias, como sói de acontecer com verdadeiras "Escolas". O que se tinha, na realidade, era um agrupamento solto de críticos ferozes ao estado da arte do debate metodológico alemão na virada para o século 20[8]. Para Auer, o termo "Direito Livre" é um rótulo impreciso para designar algumas das teorias mais provocantes da virada do século que ofereciam uma compreensão "alternativa" ou "anti-formalista" da teoria das fontes e do método jurídicos, mas que, em última análise, estão no mesmo contexto de outras abordagens da época, como a "Jurisprudência teleológica" da segunda fase da obra de Rudolf von Jhering (1818-1892) [9].

Concentrando-se no panfleto A Luta Pela Ciência do Direito, publicado por um jovem Kantorowicz, sob o pseudônimo de Gnaeus Flavius, aos 28 anos de idade em 1906, Marietta Auer nos mostra a "fábulacontra-legem", isto é, a caracterização da obra de Kantorowicz como a defesa de um “voluntarismo jurídico” [10], como se o autor defendesse que o juiz simplesmente ignorasse a lei vigente e decidisse, para se valer de uma expressão que ganhou notoriedade no Brasil, "conforme a sua consciência" [11]. Donde decorre também a lenda de que a obra de Kantorowicz seria uma espécie de antecedente da teoria jurídica anti-legalista e anti-formalista dos anos do nacional-socialismo (1933-1945), o que seria bastante injusto, pois culmina na culpabilização de uma vítima imediata do regime hitlerista [12]. Uma associação direta entre a "Escola do Direito Livre" e tendências jurídico-ideológicas "materiais", "sociais" ou "socialistas" de superação do Direito liberal, emergentes no início do século 20, deve ser posta sob suspeita, especialmente para o caso de Kantorowicz, que era declaradamente um liberal democrata [13].

Antes de adentrar no conteúdo da obra, é importante entender a escolha do pseudônimo de Gnaeus Flavius: segundo a tradição romana, Gnaeus Flavius foi um escriba que tornou públicas as normas técnicas do processo formulário romano, que eram mantidas em segredo pelos pontífices, destruindo, assim, o monopólio destes de consulta e interpretação do Direito. Nesse sentido, A Luta Pela Ciência do Direito não deve ser lida como um manifesto fundador de um movimento, como sugeriram Larenz e Wieacker [14], mas antes como uma obra de denúncia, de denúncia da "criptologia" dos juristas. Kantorowicz problematiza a distância entre a auto-imagem da aplicação do Direito como uma atividade objetiva, racional, impessoal, publicamente controlável e não arbitrária e a realidade da "criação jurídica" na práxis. A obra contém, portanto, uma potente crítica metodológica, além de, sob o rótulo impreciso do "Direito Livre" [15], uma embrionária teoria das fontes e uma teoria científica do Direito.

Na próxima coluna, adentraremos no conteúdo de A Luta Pela Ciência do Direito, realizando o cotejo das posições metodológicas ali formuladas com outros autores da teoria jurídica, que gozam de maior respeitabilidade na comunidade jurídico-científica. A finalidade é demonstrar que há, sim, conteúdos metodologicamente sérios a serem extraídos dos textos "canônicos" associados à "Escola do Direito Livre"; e que, portanto, esses textos não devem ser descartados como uma manifestação de uma aberração polêmica ou um desvio maldito no curso da história das ideias do pensamento jurídico [16].

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] A abertura do editorial do volume 16 da RDCC é bastante transparente nesse sentido: "A reavaliação dos fundamentos metodológicos e históricos do Direito Civil na Alemanha é um processo em marcha desde o final dos anos 1980. A partir das críticas formuladas desde então por Joachim Rückert, Reinhard Zimmermann, Michael Stolleis, Bernd Rüthers e Dieter Nörr, foram postas em causa algumas 'verdades axiomáticas' sobre o Código Civil alemão, o positivismo jurídico do século XIX, o liberalismo, o caráter antissocial da legislação civil e a lenda negra sobre Savigny e os pandectistas. Nas últimas duas décadas, Hans-Peter Haferkamp, Christian Baldus, Ulrich Falk, Tilman Repgen, além de nomes mais jovens como Jan Peter Schmidt e Benjamin Herzog, têm ampliado essa revisão histórico-crítica ao contextualizar e criticar algumas das principais teses da 'jurisprudência dos valores', na tradição de Karl Larenz, e a historiografia jurídica herdeira de Franz Wieacker. Esse debate, com algum atraso, começa a chegar ao Brasil, o que é muito saudável para a cultura jurídica, em particular aquela de tradição privatística. Ainda são muito fortes os sinais e os efeitos da reprodução de muitos dos postulados e das visões históricas sobre o Direito Civil desenvolvidos na Alemanha a partir dos anos 1930 e que se tornaram preeminentes no Brasil desde o Estado Novo até aos dias atuais. A Revista de Direito Civil Contemporâneo, desde seu nascimento em 2014, tem aberto suas páginas para essas novas tendências da dogmática e da metadogmática europeia". In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Editorial. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 16, ano 5, p. 11-13, jul.-set. 2018. p. 11.

[2] "Franz Wieacker e Karl Larenz são particularmente relevantes, dada sua enorme influência no pensamento jurídico brasileiro da segunda metade do século XX e até aos dias de hoje". In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. O Direito (Lisboa), v. 147, p. 45-110, 2015, p. 102.

[3] "De uma crítica nazista ao BGB, reproduzida ironicamente por Franz Wieacker, um professor da escola-modelo da universidade hitlerista, chegou-se ao respeitável Código Beviláqua. São realmente curiosos os efeitos de certa recepção do Direito estrangeiro no Brasil". In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX… cit.., p. 106; "As lições de Franz Wieacker contribuíram indiretamente para a formação do consenso sobre o caráter liberal e anacrônico do Código de 1916, especialmente porque a doutrina brasileira projetou para o Brasil uma série de qualificações de Wieacker sobre o BGB". In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. O Código Beviláqua no Cenário Internacional. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 473, p. 481-518, jan.-mar. 2017, p. 498-499. Não é coincidência que uma visão alternativa sobre o Código Civil brasileiro de 1916 tenha sido oferecida justamente por um aluno de Joachim Rückert, v. REIS, Thiago. Autonomia do Direito Privado ou Política Codificada? O Código Civil de 1916 como Projeto Republicano. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 473, p. 273-326, jan.-mar. 2017.

[4] Cf. AUER, Marietta. Der Kampf um die Wissenschaftlichkeit der Rechtswissenschaft. Zum 75. Todestag von Hermann Kantorowicz. Zeitschrift für europäisches Privatrecht — ZEuP, p. 773-805, 2015; RÜCKERT, Joachim. Vom "Freirecht" zur freien "Wertungsjurisprudenz" — eine Geschichte voller Legenden. Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte: Germanistische Abteilung — ZRG GA, v. 125, p. 199-255, 2008.

[5] RÜCKERT, Joachim. Die Schlachtrufe im Methodenkampf — ein historischer Überblick. In: ______; SEINECKE, Ralf (Orgs.). Methodik des Zivilrechts — von Savigny bis Teubner. 3. ed. Baden-Baden: Nomos, 2017, p. 558.

[6] RÜCKERT, Joachim. Die Schlachtrufe im Methodenkampf — ein historischer Überblick… cit., p. 558-559; AUER, Marietta. Der Kampf um die Wissenschaftlichkeit der Rechtswissenschaft… cit., p. 779-780.

[7] "Na Alemanha, diferentemente do que se dá no Brasil, a palavra professor é exclusiva do ocupante do cargo equivalente brasileiro a 'professor titular'. O professor alemão é o catedrático e somente este. […] Abaixo do catedrático, há uma série de posições acadêmicas, como a de Mitarbeiter, Assitent, Privatdozent, Referent ou ainda außerplanmäßiger Professor". In: MORAIS DA ROSA, Alexandre; KARAM TRINDADE, André. (Orgs.). Hermenêutica, Constituição, Decisão Judicial: estudos em homenagem ao professor Lenio Luiz Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 340, 341. Em Freiburg, portanto, Kantorowicz não foi propriamente um "professor", não tendo adquirido uma cátedra. Em 1929, aos 51 anos, assume a cátedra de Direito Penal na Universidade de Kiel, como sucessor de Gustav Radbruch (1878-1949), que fora seu colega de tempos juvenis no curso de Direito em Berlim. Com a ascensão dos nazistas ao poder, em 1933, Kantorowicz foi um dos primeiros professores a ser imediatamente afastado do cargo. No exílio na Inglaterra, Kantorowicz encontrou um terreno fértil (e mais amistoso) para o aprofundamento de sua Teoria do Direito. Para mais detalhes sobre a biografia de Kantorowicz, cf. AUER, Marietta. Der Kampf um die Wissenschaftlichkeit der Rechtswissenschaft… cit., p. 776-777.

[8] RÜCKERT, Joachim. Die Schlachtrufe im Methodenkampf — ein historischer Überblick… cit., p. 558.

[9] AUER, Marietta. Der Kampf um die Wissenschaftlichkeit der Rechtswissenschaft… cit., p. 780.

[10] Cf. LARENZ, Karl. A passagem ao voluntarismo com o Movimento do Direito Livre. In: ______. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 77-83.

[11] Sobre a expressão, cf. RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 99, n. 891, p. 65-106, jan. 2010, p. 2 (versão digital); STRECK, Lenio Luiz. O Que É Isto – decido conforme minha consciência?. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

[12] RÜCKERT, Joachim. Vom "Freirecht" zur freien "Wertungsjurisprudenz"… cit., p. 225.

[13] AUER, Marietta. Der Kampf um die Wissenschaftlichkeit der Rechtswissenschaft… cit., p. 781.

[14] Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito… cit., p. 79-80; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 4. ed. Tradução de António Manuel Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 670-671.

[15] No prefácio de A Luta Pela Ciência do Direito, Kantorowicz afirma que não pode ser exigida clareza conceitual de um movimento ainda tão jovem, cf. KANTOROWICZ, Hermann (pseud. Gnaeus Flavius). Der Kampf um die Rechtswissenschaft. Heidelberg: Carl Winter's Universitätsbuchhandlung, 1906, p. 5.

[16] AUER, Marietta. Der Kampf um die Wissenschaftlichkeit der Rechtswissenschaft… cit., p. 785.

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    é advogado em São Paulo, mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), com período de mobilidade acadêmica na Eberhard-Karls Universität Tübingen (Baden-Württemberg).

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