Defesa da Concorrência

The meeting of two black arts: Cade e a utilização da arbitragem

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15 de agosto de 2022, 8h02

Nas palavras de James Bridgeman, "arbitration of competition law is the meeting of two black arts" [1]. E, realmente, a conciliação entre arbitragem e direito da concorrência nem sempre é evidente.

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De um lado, a arbitragem é um meio de resolução de conflitos privado, cujo fundamento se encontra na convenção de arbitragem, marcada pela liberdade e autonomia de vontade das partes. Do outro, o direito da concorrência tem natureza pública e prevê uma série de normas cogentes, cuja aplicação está cercada por interesses de ordem pública.

No entanto, a evolução do direito antitruste a nível internacional tem sido, indubitavelmente, a do cruzamento das duas artes negras. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE):

"o uso de métodos alternativos de solução de controvérsias, incluindo arbitragem e mediação, para solucionar controvérsias comerciais com componente concorrencial, cresceu de forma exponencial nos últimos anos. Esta interface entre arbitragem e concorrência estimulou intensos debates entre acadêmicos, advogados e economistas, o que permitiu o desenvolvimento de interessante jurisprudência sobre o assunto [2]".

Sendo assim, verifica-se que as interfaces entre arbitragem e concorrência já são exploradas por autoridades da concorrência no direito comparado há alguns anos, não sendo propriamente uma novidade em alguns países europeus.

No Brasil, é possível identificar alguns casos importantes em que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) adotou soluções relacionadas ao instituto da arbitragem na forma de remédios comportamentais [3]. Isso porque passou-se a entender que o sistema antitruste deve colocar à disposição instrumentos voltados a elevar o grau de eficácia material da legislação [4]. Nesse sentido, vislumbra-se a arbitragem como uma ferramenta de estímulo à articulação do public enforcement com o private enforcement do direito antitruste, contribuindo para a concretização do arcabouço normativo concorrencial [5].

No julgamento do Ato de Concentração nº 08700.000344/2014-47 (ILC Brasil/Vale Fertilizantes) o conselho previu no Acordo de Controle de Concentração (ACC) o recurso à arbitragem como mecanismo de resolução de controvérsias entre concorrentes [6]. A autarquia antitruste justificou a utilização da arbitragem (1) na maior flexibilidade assegurada ao ACC diante da impossibilidade de se prever todas as situações em que a recusa de fornecimento pelas requerentes poderia ser considerada legítima e (2) na redução dos custos de monitoramento, na medida em que discussões complexas relativas aos motivos que levaram à recusa de negociação ou à inadequação dos critérios de negociação ficariam a cargo do árbitro.

Por outro lado, o ACC previu que a escolha do tribunal arbitral deveria ser aprovada pelo Cade, que, por sua vez, também resguardou sua competência, dispondo expressamente que a decisão final relativa ao cumprimento do Acordo caberia ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), independentemente do resultado da arbitragem.

No que tange às preocupações procedimentais, restou previsto que a arbitragem seria custeada pela signatária a fim de estimular o cumprimento do ACC, bem como no intuito impedir que os elevados custos da arbitragem inibisse os concorrentes ou entrantes de denunciarem recusas de fornecimento, reforçando a efetividade do remédio [7].

Diferentemente do que ocorreu no caso supramencionado, no julgamento do Ato de Concentração nº 08700.004860/2016-11 (Bovespa/Cetip), o Cade outorgou, pela primeira vez, poderes suficientemente amplos para uma decisão arbitral com caráter definitivo e irrecorrível, retirando a necessidade de referendo pelo conselho.

Segundo o Conselheiro Paulo Burnier, que iniciou a divergência da relatora e cujo voto-vogal convenceu a maioria do Plenário, "o caso em exame representa talvez o leading case pelo Cade no uso de um mecanismo de arbitragem próximo a sua acepção mais tradicional no direito privado".

Nesse caso, a cláusula arbitral do ACC também foi utilizada como mecanismo para resolução de conflitos entre concorrentes, contudo, previu, de antemão, a aplicação das regras procedimentais do Regulamento do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC).

Outro caso que vale registro é o Ato de Concentração nº 08700.001390/2017-14 (AT&T/Time Warner). Nesse precedente, a essência do instituto da arbitragem consagrada no direito privado é mais uma vez respeitada, porém há uma ampliação do escopo da cláusula compromissória ao se prever que o litígio levado ao juízo arbitral não necessariamente teria como causa de pedir disposição prevista no ACC, mas sim poderia versar sobre qualquer direito patrimonial disponível, em consonância com o artigo 1º da Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem).

Ademais, também em respeito aos contornos jurídicos do instituto, o Cade frisou, de forma precisa, a ausência de força vinculante da decisão arbitral para formação de suas decisões, bem como destacou a falta de qualquer tipo de delegação do seu poder de polícia relacionado à verificação de cumprimento das condições do ACC, o qual seria feito pela própria autarquia a partir das informações a serem prestadas pelo trustee.

Sendo assim, analisando a evolução da jurisprudência, é possível perceber que o Conselho tem cada vez mais se preocupado em fazer o uso da arbitragem de maneira técnica e sem descaracterizar a essência do instituto enquanto mecanismo heterocompositivo de resolução privada de conflitos, cujo regime jurídico encontra-se estabelecido na Lei de Arbitragem.

Vale ressaltar que, conforme muito bem frisado nos precedentes do Cade, a arbitragem é uma ferramenta auxiliar na efetivação das normas antitruste e pode ser um instrumento importante para maior difusão do private enforcement do direito da concorrência. Não há de se falar em arbitragem enquanto substituição do papel do Estado no âmbito do controle, supervisão e aplicação das normas concorrenciais, mas sim de se reconhecer dois espaços distintos e complementares, cada qual com um propósito e limite próprio, distinto e não sobreponível [8].

Além da consolidada aplicação da arbitragem pelo Cade em atos de concentração para monitoramento de restrições, muito anima a comunidade antitruste-arbitral, se é que podemos chamá-la assim, uma das novidades trazidas pelo Projeto de Lei nº 11.275/2018, aprovado em 12 de julho de 2022 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados e que pode seguir em breve para sanção presidencial. O PL altera a Lei de Defesa da Concorrência para prever novas disposições aplicáveis à repressão de infrações à ordem econômica, trazendo importantes incentivos às ações reparatórias por danos concorrenciais (ARDCs).

Quanto ao tema das ARDCs, o PL dispõe, além de outras questões processuais e as relacionadas à prescrição — que aqueles que forem condenados pelo Cade por infrações à ordem econômica — sobretudo cartéis – deverão pagar indenização de danos em dobro aos prejudicados, bem como que os signatários de termos de compromisso de cessação (TCCs) deverão concordar (por meio da inclusão de uma cláusula compromissória no acordo) em responder pelos danos que causaram em juízo arbitral.

Tal mudança legislativa suscita questionamentos acerca da legalidade e da necessidade de imposição de mais uma obrigação aos compromissários de TCC e acerca da necessidade de regulamentação da previsão legal quanto às questões operacionais relacionadas à convenção de arbitragem pelo Cade (tais como a escolha das instituições arbitrais). Por outro lado, a comunidade antitruste-arbitral está bastante empenhada em encontrar justificativas legais e soluções técnicas para a correta aplicação dessa inovação legislativa que representa um grande incentivo aos pleitos reparatórios de danos concorrenciais, apontando para uma possível mudança de paradigma quanto ao private enforcement no Brasil.

Frise-se que o próprio Cade acredita no resultado positivo dessa nova previsão legal e no próprio encontro dessas duas black arts, tanto é que criou um grupo de trabalho chamado "Arbitragem e Trustees" em agosto de 2022, tendo como um dos escopos a apresentação de soluções para os desafios de aplicação e regulamentação das novidades do PL 11.275/2018, que está prestes a ser aprovado.

É com grande expectativa que a comunidade arbitral-antitruste aguarda os novos trâmites do projeto de lei que traz importantes inovações ao private enforcement e inaugura novas interfaces entre arbitragem e direito da concorrência no Brasil, ao mesmo tempo que traz grandes reponsabilidades para utilização técnica dessas artes conjuntamente com a autoridade antitruste.

 


[1] BRIDGEMAN, James. The arbitrability of competition law disputes. European Business Law Review, n. 19, pp. 147-174, 2008, p. 147.

[2] OCDE (2010), disponível em www.oecd.org/competition/abuse/49294392.pdf.

[3] AC 08700.000344/2014-47 (ILC Brasil/Vale Fertilizantes), de relatoria da Conselheira Ana Frazão, julgado em 10.12.2014; AC 08700.005719/2014-65 (ALL/Rumo), de relatoria do Conselheiro Gilvandro Vasconcelos, julgado em 11.02.2015; AC 08700.004860/2016-11 (Bovespa/Cetip), de relatoria da Conselheira Cristiane Alkmin, julgado em 22.03.2017; AC 08700.001390/2017-14 (AT&T/Time Warner), de relatoria do Conselheiro Gilvandro Vasconcelos, julgado em 18 de outubro de 2017.

[4] FERRANTE, Douglas Telpis; BAGNOLI. A Arbitrabilidade do Direito Concorrencial: uma interface entre a defesa da concorrência e os métodos alternativos de resolução de litígios. Revista do Ibrac, n.º 1, p. 203-225, 2020, p. 209.

[5] DANTAS, Yane Pitangueira. A arbitragem como meio alternativo na resolução de demandas indenizatórias

decorrentes da prática de cartéis e a minuta de resolução do Cade submetida à consulta pública 05/2016. Revista de Defesa da Concorrência, vol. 5, nº 1, p. 231-246, 2017, p. 244.

[6] Nesse mesmo sentido, se deu a utilização do recurso à arbitragem no AC 08700.005719/2014-65 (ALL/Rumo), de relatoria do conselheiro Gilvandro Vasconcelos, julgado em 11/2/2015.

[7] Cf. Voto da conselheira relatora Ana Frazão, p. 53 (§§ 264/270).

[8] SAYDELLES, Rodrigo Salton Rotunno. A arbitrabilidade do direito concorrencial: uma análise do caso eco swiss. Revista Res Severa Verum Gaudium: Porto Alegre, v. 6, nº 1, p. 424-438, jun. 2021, p. 433.

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