Opinião

Devolução do ECG pago por empresas nos empréstimos do Peac

Autor

  • Perisson Andrade

    é advogado tributarista em São Paulo e mestre em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

14 de agosto de 2022, 7h15

O governo está prestes a regulamentar mais uma rodada de garantias, pelo FGI/BNDES, de empréstimos de bancos privados a empresas de determinados portes, na tentativa de reaquecer a economia e o investimento. Isso porque, com o agravamento da crise econômica e inflacionária, muitas empresas não têm de fato atualmente obtido acesso a crédito no mercado, por faltarem-lhe garantias. E sem garantias, nenhum banco oferece crédito, como é público e notório. Sendo assim, já que não existe no Brasil um mercado privado segurador de crédito bem desenvolvido, ao menos não para empresas menores, o governo suprirá, como já fez em outras oportunidades, essa necessidade de mercado, para fomentar a liquidez financeira, por meio da garantia do risco dos bancos. E fará isso por meio de instrumento de garantia já existente, o Fundo Garantidor de Investimentos (FGI), gerido pelo BNDES e capitalizado principalmente por recursos públicos.

Quando vier a fazê-los novamente, poderá exigir a cobrança, dos mutuários, de um prêmio para esse seguro de crédito, o Encargo de Concessão de Crédito (ECG), ou poderá prestar a garantia que falta ao mercado de crédito nacional de forma gratuita, como já fez durante a primeira onda da pandemia do Covid-19, por razões óbvias de ordem pública.

O que poucos se lembram é que essa gratuidade assegurada no ano de 2020, primeiro da pandemia, que deve ser sempre prevista em lei, beneficiou somente uma parcela das empresas mutuárias nessa primeira onda da crise sanitária. E isso por conta de ato infralegal, editado pelo BNDES, a seguir analisado.

Com efeito, milhares de empresas, durante a fase mais aguda da pandemia do Covid-19, para poderem manter em pleno funcionamento as suas atividades essências para a sociedade, precisaram recorrer a uma linha de crédito emergencial, criada pelo governo, por meio do Programa Emergencial de Acesso ao Crédito (Peac), inicialmente veiculado pela Medida Provisória nº 975/2020, o qual "se insere no pacote de medidas emergenciais do BNDES para combate aos impactos econômicos causados pela pandemia do coronavírus" (conforme descrito no próprio site na internet do BNDES).

Isso se deu por meio de contratações de empréstimos, em instituições privadas, no âmbito do referido Peac, e com a garantia do Fundo Garantidor de Investimentos (FGI), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Referida linha de crédito emergencial, criada pelo governo federal, por medida provisória (MP 975/2020), dada a urgência reclamada no período, e aliada ao Auxilio-Emergencial liberado para autônomos e trabalhadores informais, foi uma das inúmeras medidas emergências adotadas pelo poder público federal, no combate aos efeitos econômicos e sociais da pandemia da Covid-19, para conferir liquidez ao sistema financeiro nacional, proteger o mercado, os empregos, a produção nacional e o próprio sistema financeiro, inclusive dos efeitos de uma crise de baixa produção e do consequente descontrole da temida inflação, maléfica a toda a sociedade brasileira, em todos os níveis e classes econômicas.

Realmente, o governo federal, para assegurar uma eficaz injeção de liquidez no sistema financeiro e assim estimular os agentes financeiros, bancos, a de fato emprestarem o seu capital, precisou criar uma linha emergencial de crédito, o Peac, por meio da referida MP, prevendo a sua GARANTIA por fundo público/privado, criado pelo artigo 7º, da Lei nº 12.087, de 11 de novembro de 2009, o Fundo Garantidor de Investimento (FGI), e capitalizar esse fundo com mais R$ 20 bilhões.

E no seu artigo 8º, a MP 975/2020 alterou o artigo 9º, parágrafo 3º, da Lei nº 12.087, de 2009, para criar o ECG-FGI, para garantir tais operações de empréstimo, de forma a retirar esse risco de crédito das instituições financeiras, incentivando-as de fato a emprestar, garantindo 80% dos empréstimos concedidos.

E para tanto, por meio da alteração de seu Artigo 8º, que conferiu nova redação ao Artigo 9º, § 3º, da A Lei nº 12.087, de 2009, a Medida Provisória nº 975/2020, em seu artigo 8º, fixou que os fundos, no caso o FGI:

"deverão receber comissão pecuniária com a finalidade de remunerar o RISCO assumido e SEU CUSTO poderá ser repassado ao tomador do crédito, nos termos do disposto nos regulamentos de operações dos fundos" (grifamos).

O Fundo Garantidor de Investimento (FGI) possui, de acordo com a Lei 12.087/2009, natureza privada, mas é inegavelmente alimentado com recursos públicos, do Tesouro Nacional, transferidos ao BNDES. A sua natureza jurídica, como se vê dos dispositivos legais supra transcritos, é de autêntico e verdadeiro SEGURO PÚBLICO/PRIVADO, com recursos da União Federal, sendo assim, em última análise, um seguro do próprio Estado e povo brasileiro, em favor do setor financeiro e do mercado financeiro, para a proteção da própria sociedade.

O custo deste seguro, que remunera o próprio Fundo Garantidor (FGI) dos riscos pelo mesmo assumidos, como verdadeira seguradora, denominado de Encargo de Concessão de Garantia (ECG), constituiu, por sua vez, um autêntico PRÊMIO DE SEGURO, fixado em função do RISCO garantido, ou seja, do RISCO EFETIVO E INCORRIDO, na medida de seu tamanho e de sua efetiva incursão ao longo do tempo, como quaisquer seguros, os quais, como mostra a nossa experiência comum, quando encerrados antes do seu prazo final (por cancelamento ou endosso para outra seguradora — como nosso seguro de automóvel), acarretam necessariamente na obrigação da segurada devolver o prêmio pago a mais pelo segurado nessas situações ou transferir o seu crédito para a outra seguradora escolhida pelo segurado.

E é exatamente isso o que preceitua § 3º do artigo 9º da Lei nº 12.087, de 11 de novembro de 2009, em relação especificamente à finalidade e à forma de cálculo do custo de garantia, o ECG aqui discutido, atrelada intrínseca e naturalmente ao risco segurado:

"deverão receber comissão pecuniária com a finalidade de remunerar o RISCO assumido e SEU CUSTO poderá ser repassado ao tomador do crédito, nos termos do disposto nos regulamentos de operações dos fundos" (grifamos).

Sobre esse ponto, o próprio BNDES descreve o ECG e a sua fórmula de cálculo, atreladamente ao PRAZO do empréstimo, o qual naturalmente influencia o Risco de inadimplência garantido.

E, de fato, estão presentes no caso as características de um verdadeiro seguro de proteção dos riscos em uma operação de empréstimo bancário.

O BNDES mesmo expressamente reconheceu essa característica, em evento público realizado na ABIMAQ no dia 15/7/2020, que foi objeto de matéria no jornal Valor Econômico com o título "FUNDO PARA SEGURO DE CRÉDITO DO BNDES PODERÁ EMPRESTAR ATÉ R$ 100 BI", cujas palavras do sr. presidente do BNDES, Gustavo Montezano, se transcrevem abaixo, tais como publicadas pela Valor:

"Vai ser UM FUNDO DE SEGURO DE CRÉDITO com o potencial de emprestar até R$ 100 bilhões para micro, pequenas e médias empresas, se a demanda conseguir suportar isso. Um fundo todo gerido e operacionalizado pelo BNDES. O banco tem expertise para fazer a transição do empréstimo para o seguro-fiança. E o marco inicial a gente vai comemorar na próxima semana”, informou Montezano, se referindo ao Programa Emergencial de Acesso ao Crédito.

E nem poderia ser diferente a afirmação do presidente do BNDES. Uma simples análise da legislação que deu origem ao Fundo FGI em debate já é suficiente para se chegar a essa mesma conclusão. Com efeito, a gênese e finalidade do fundo "FGI" em questão está contida na Medida Provisória nº 464/2009 que, à época, fazia referência a outra crise financeira que o país atravessava, originada do chamado "subprime".

Na exposição de motivos de referida medida provisória resta claro que o FGI foi criado como um verdadeiro "SEGURO" do governo para incentivar a concessão de crédito pelos agentes financeiros.

Logo, a natureza jurídica de seguro do FGI em debate está absolutamente demonstrada. Igualmente, está demonstrado que o ECG funciona como "Prêmio de Seguro" nesse caso.

Pois bem, logo após a criação do primeiro Peac (e que em breve deverá ser reeditado), garantido pelo FGI do BNDES, mediante a cobrança do referido Encargo de Concessão de Garantia, milhares de empresas se socorreram, no primeiro momento, de tais montantes, mesmo diante de um custo elevado de prêmio sobre a garantia do BNDES (ECG em torno de 5% do total dos empréstimos contraídos e cobrado de início, descontando-se o seu valor do montante do empréstimo repassado ao mutuário), por uma questão de sobrevivência.

Ocorre que, pouco mais de 2 meses após a criação do Peac, pela MP 975/2020, e a contratação dos empréstimos mencionados e o pagamento antecipado do correspondente ECG por milhares de empresas, foi promulgada a Lei nº 14.042, de 19 de agosto de 2020, em cujo § 5º, do artigo 6º, foi veiculada norma de PROIBIÇÃO LEGAL dessa cobrança, a todas as operações de credito garantidas pelo FGI, dentro do Peac, sem qualquer distinção:

"Art. 6º — Os riscos de crédito assumidos no âmbito do Peac-FGI por instituições financeiras autorizadas a operar pelo Banco Central do Brasil, incluídas as cooperativas de crédito, serão garantidos direta ou indiretamente.
(…)
§ 5º. Para as garantias concedidas no âmbito do Peac-FGI, não será cobrada a comissão pecuniária a que se refere o § 3º do art. 9º da Lei nº 12.087, de 11 de novembro de 2009." (destacamos)

A aplicabilidade imediata de referida NORMA DE ORDEM PÚBLICA, DE PROIBIÇÃO de cobrança, ou seja, de GRATUIDADE da cobertura de risco, decorre da sua importância para a recuperação não só das empresas, como do Brasil inteiro, do mercado de crédito, do mercado consumidor, da produtividade em si, do emprego e da renda, visando manter a inflação sob controle, e assegurar em última análise o próprio povo brasileiro.

Ocorre, todavia, que o objetivo da referida norma de ordem pública de gratuidade/proibição de cobrança, contida na Lei nº 14.042, de 19 de agosto de 2020, em cujo § 5º, do artigo 6º, foi indevida e ilegalmente limitado por ato infralegal do próprio BNDES.

De fato, o Ilmo. superintendente da área de Saneamento, Transporte e Logística do BNDES, publicizou, na página da internet do próprio BNDES, classificando-o como "socumento ostensivo", o "Aviso AST nº 03/2020-BNDES", que é dirigido aos agentes financeiros. Em tal ato infralegal, a referida autoridade procura restringir o alcance da norma legal de gratuidade/proibição de cobrança aqui analisada somente aos contratos Peac-FGI cuja data de liberação de recursos de empréstimos seja posterior à publicação da Lei nº 14.042/2020, de 19/8/2020, que converteu a MP 975/2020, instituidora de início do Programa Emergencial de Acesso a Crédito (Peac):

Ou seja, por ato infralegal o BNDES de fato limitou "na marra" a norma de gratuidade que chama de "isenção", e sem qualquer poder para tanto, somente a contratos com repasse a partir do dia 20/8/2020. O ato mencionado determinou, assim, às instituições financeiras que não deverão ser devolvidos/compensados os valores descontados a título do ECG (agora gratuito de acordo com a lei) das empresas que firmaram contratos e receberam os empréstimos do Peac-FGI um mês antes e até na véspera (19/8/2020).

Só que a lei não deixa dúvidas sobre a gratuidade/proibição de cobrança/repasse do referido encargo de garantia, o ECG, para todos e quaisquer contratos nessa modalidade, já que não limitou em seu texto o seu alcance com esteio em nenhum critério temporal, muito menos com base na data de repasse dos recursos, o que, aliás, nem poderia ocorrer, sob pena de violação à isonomia, à moralidade pública, à livre concorrência.

Ademais, negar a gratuidade legal para alguns contratos, cujo risco ainda sequer tinha transcorrido, ou quando menos transcorrera somente por ínfimo período (X-1/X avos), em contraposição ao reconhecimento da gratuidade para contratos cujos recursos foram liberados pouquíssimo tempo depois, contraria a um só tempo o princípio constitucional da Legalidade e a impossibilidade hermenêutica do interprete fazer distinções onde a lei não o fez, a consequente correta interpretação ampla da norma de GRATUIDADE (PROIBIÇÃO DE COBRANÇA) do parágrafo 5º, do artigo 6º, da Lei do Peac, e também os princípios constitucionais da Igualdade, Proporcionalidade, Razoabilidade, e da Impessoalidade e Moralidade da administração pública, além de implicar em nítido tratamento diferenciado e anticoncorrencial a pessoas jurídicas que se encontravam e ainda se encontram exatamente na mesma e equivalente situação jurídica, de reconhecida necessidade pública de captação de recursos com menor onerosidade possível, para a movimentação de todo o mercado, com o fito de assegurar empregos, a produção nacional e o controle da inflação, daí a sua garantia, por força de uma norma de ordem pública, como a lei instituidora do Peac-FGI, a qual, a partir e imediatamente após a promulgação da Lei nº 14.042/2020, quis o legislador que fosse gratuita, para todos os riscos e não somente alguns deles, de forma a verdadeiramente atingir os referidos objetivos de interesse nacional e não só os dos próprios mutuários e das instituições financeiras cujas operações de empréstimo foram garantidas, com o aumento assim, seguro, de seu lucro, em meio à crise de todos.

Não podem então esses, que antes precisaram e conseguiram a aprovação e seu credito ter um tratamento diferenciado, mais gravoso, pois foram estas empresas justamente que mais se prejudicaram durante a fase mais dura da pandemia da Covid-19 e que mais rapidamente reagiram, evitando em verdade um colapso não só da saúde, mas também de fornecimento no país e a volta com força da temida inflação, deletéria para todo o Brasil, em todas as camadas sociais, principalmente aos mais pobres.

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