Opinião

Humor, charge e eleições: uma combinação democrática

Autor

  • Allan Carlos Moreira Magalhães

    é doutor e pós-doutor em Direito (Unifor) professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor do livro Patrimônio Cultural Democracia e Federalismo (Dialética-SP).

14 de agosto de 2022, 15h17

A tragédia e a comédia são formas clássicas de contar uma história cuja origem remonta ao teatro grego na passagem do século 4 para o 5 a.C. A tragédia surge primeiro, e é por essência edificante, levando o público a se compadecer com os personagens que são exemplos de heroísmo, pois defendem valores caros à sociedade, mas são arrebatados pelas consequências das suas ações heroicas para a comoção do público.

Reprodução/Latuff
Charge do artista Latuff, que já foi censurada pela Justiça do Rio Grande do Sul
Reprodução/Latuff

A comédia é o oposto, pois é questionadora e desconstrutora de dogmas, possuindo vários pontos catárticos, em momentos inesperados para surpreender os espectadores, mas com a preocupação permanente de que o público entenda a mensagem humorística para poder provocar-lhes o riso, já que não se ri daquilo que não se entende, mas se pode chorar  [1].

O humor desenvolveu e aperfeiçoou, ao longo da história, diferentes suportes para veicular críticas à estimadas grandezas de uma sociedade. A charge é um desses suportes, cuja mensagem é construída com um elemento gráfico, desenho caricato, e um elemento escrito, uma fala, um diálogo permeado por opiniões contrárias e ironias para gerar um efeito humorístico sobre o acontecimento retratado.

Os acontecimentos políticos dominam o humor veiculado pelas charges, especialmente, em períodos eleitorais. Pois, assim como Aristófanes, na antiguidade, despertou a ira dos políticos de sua época, que não queriam ser satirizados; na atualidade, os políticos tentaram criar barreiras ao humor para não serem ridicularizados no período eleitoral, sob o fundamento também utilizado na Grécia Antiga: política é algo sério. Mas, quem disse que o humor não é coisa séria? É tão sério e essencial à democracia que usa as vestes protetivas dos direitos fundamentais; o manto da liberdade de expressão.

A "proteção" que os políticos atuais criaram para não serem alvos de piadas, charges, sátiras, paródias, ou quaisquer outros meios humorísticos, foi inserir uma vedação na lei que estabelece normas para as eleições (Lei nº 9.504/1997), na qual proibia-se aos veículos de comunicação, sob pena de multa, ridicularizar os candidatos no período das eleições. Tal comando normativo implantava de forma clara um tipo de censura prévia ao humor, mas que felizmente foi expurgado no nosso ordenamento jurídico pelo guardião da Constituição (STF: ADI 4.451).

O Supremo Tribunal Federal reafirma em diferentes julgados [2] a liberdade de expressão como valor essencial da democracia e os programas humorísticos, as charges, as sátiras como suas formas legítimas de exteriorização, e que não podem ser restringidos justamente no momento mais importante da democracia: as eleições.

Contudo, a liberdade de expressão enquanto direito fundamental e essencial à democracia não é um direito absoluto, pois encontra limites em outros de igual estatura, a exemplo dos direitos à honra e à imagem, o que lhe impõe um exercício responsável na produção da crítica social com o uso do humor.

Um desses cuidados é que os fatos/ações retratados e atribuídos a alguém de forma satírica devem ser verídicos ou de um absurdo tal que não possam fazer o público acreditar na sua veracidade. A charge que se vale do exagero, da deformação hiperbólica, do burlesco para transmitir a mensagem jornalística não pode usar desses recursos para deliberadamente inventar fatos e acontecimentos inverídicos, pois realizará uma conduta antijurídica, que pode ser objeto de reparação civil.

A democracia é assunto levado a sério ao combinar humor, charge e eleições no debate político e é uma forma de transmitir mensagens críticas sobre o dia a dia da política, da organização da sociedade e do exercício do poder e dos seus desvios de maneira humorada, ácida, satírica e impactante para uma rápida assimilação pelo público, e no ritmo do dito que se popularizou de que "uma imagem vale mais que mil palavras" [3].

Notas e referências
[1] POSSOLO, Hugo. Seria Fácil Se Não Fosse Cômico. In: OLIVIERI, Cris; NATALE, Edson. Direito, Arte e Liberdade. São Paulo: Edições Sesc, 2018. p. 207.
[2] Conferir no STF: o Habeas Corpus no 82.424, julgado em 2003; a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. ADPF no 130, julgada em 2009; Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.451 julgada em 2018; e a Reclamação n. 38.782, julgada em 2020.
[3] Frase atribuída ao filósofo chinês Confúcio (552 e 479 a.C).

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    é doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor do livro "Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo".

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