Ambiente Jurídico

Dolo ou culpa nas infrações ambientais

Autor

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

13 de agosto de 2022, 8h03

Os debates sobre o caráter da responsabilidade administrativa em matéria ambiental, sobretudo com relação a pena de multa, foi longo, ora entendendo-se que a aplicação de sanção administrativa independia de dolo ou culpa, ora adotando-se o entendimento de que o elemento subjetivo era necessário para caracterizar a punibilidade.

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O Superior Tribunal de Justiça mudou de entendimento várias vezes sobre o assunto. No REsp 467.212/RJ (2003) o entendimento foi firmado pela responsabilidade objetiva, diferentemente do que se entendeu no REsp 1.251.697/PR (2012). No âmbito do REsp 1.318.051/RJ (2015) decididiu-se pela responsabilidade objetiva, entendimento alterado, logo a seguir, no AgRG no AREsp 62.584/RJ.

A partir de 2016 o entendimento foi uniformizado na Corte Superior, pela necessidade de caracterização de dolo ou culpa, no REsp 1.401.500/PR (2016), entendimento que veio sendo reiterado, a partir de então, conforme demonstram os julgados nos REsp 1.640.243/SC (2017), AgInt no REsp 1.712.989 (2018), REsp 1.708.260/SP (2018), AgInt no REsp 1.263.957/PR (2018), AgInt no AREsp 826.046 (2018), AgInt no REsp 1.263.957 (2018), AgInt no REsp 1.828.167/PR (2019), REsp 1.805.023 (2019), dentre outros.

As decisões do STJ influenciam não só os debates nos Tribunais mas sobretudo no âmbito dos órgãos ambientais, sejam os federais, estaduais ou municipais, onde a grande maioria dos autos de infração são decididos e concluídos.

Por meio de despacho publicado no Diário Oficial da União, em 14 de julho de 2022, o senhor presidente do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) aprovou o Parecer nº 04/2020/Gabin/PFE/Ibama, oriundo do órgão jurídico de assessoramento à autarquia, que firma entendimento pela responsabilidade subjetiva no âmbito da responsabilidade administrativa ambiental e atribui efeito vinculante para todo o Ibama, firmando assim, no âmbito do órgão federal de meio ambiente, a necessidade de caracterização de dolo ou culpa como condição para a aplicação das penalidades decorrentes da prática de infrações ambientais.

Desta feita, a aplicação de penalidades administrativas de natureza ambiental seguirá, por decorrência dos precedentes da Corte Superior, a teoria da culpabilidade, e não a lógica anterior que se inspirava na responsabilidade civil objetiva, para a qual bastaria a caracterização do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado infracional. É preciso ir além. Há que se investigar, no caso concreto, se o suposto infrator agiu com a vontade livre e consciente de praticar a infração ou atuou com os elementos que integram a culpa: negligência, imprudência e imperícia.

Os conceitos de dolo e culpa são emprestados, por analogia, do direito penal, à vista de que no direito administrativo, no tocante as esferas da punibilidade decorrente de infrações ambientais, não haver legislação ou mesmo teoria estabelecida a respeito que a torne de alguma forma diferente do direito penal.

Por dolo, portanto, teremos a situação em que o infrator quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo, conforme estabelece o artigo 18 do Código Penal.

Manifesta-se, portanto, no dolo, uma vontade subjetiva, um querer do agente direcionado a obter um resultado previsto no núcleo infracional do tipo.

Vejamos, a esse respeito, uma infração administrativa ambiental e a caracterização do dolo decorrente, para exemplificar.

"Dec. 6.514/2008:
Artigo 61. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da biodiversidade:
Multa de R$ 5.000,00 a R$ 50.000.000,00.
Lei 6.938/81:
Artigo 3º – Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

III – poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;".

Conforme se pode verificar, para que ocorra a infração de "causar poluição" faz-se necessário que haja, por parte do agente, pessoa física ou jurídica, uma vontade livre e consciente de produzir uma degradação da qualidade ambiental nas condições previstas no artigo 3º da Lei 6.938/81, em níveis capazes de resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da biodiversidade.

É dizer que, para a caracterização da infração do artigo 62, supra citado, há que se avaliar, na situação do caso concreto, se o agente teve a intenção deliberada de produzir o resultado — poluição — ou pelo menos assumiu o risco de produzi-lo. Deve haver uma antevisão do resultado, por parte do autuado, que está inserida como elemento de caracterização da infração. Portanto, no exemplo, não basta que se verifique que um lançamento de efluentes prejudicou a segurança da população afetada ou que afetou as condições sanitárias do meio ambiente. Não basta que o lançamento tenha provocado a morte eventual de animais ou uma contaminação de água, ou a interrupção do abastecimento público.

É necessário que o agente tenha agido com a intenção de poluir. Portanto, será necessário avaliar se o agente queria o resultado ou o anteviu. Disso decorre que se, por exemplo, um lançamento de efluentes que gerou a poluição decorreu de uma falha de materiais num duto que estava em perfeito estado de conservação e manutenção (sem culpa), não houve a intenção de provocar o resultado. Logo, não há que se falar em dolo, nem, portanto, na caracterização da infração.

Diferente da circunstância de que se o agente sabia de um vazamento no duto ou não realizou sua manutenção para evitar o vazamento, conforme normas técnicas pertinentes, não tendo, portanto, realizado as intervenções para evitar o problema, ele assumiu o risco de produzir o resultado poluidor e neste caso restará caracterizada a infração, pela culpa.

Num outro exemplo, se o agente realiza uma atividade minerária que envolve a possibilidade de disponibilização, no ambiente, de substâncias químicas capazes de causar poluição ou de disponibilizar metais pesados com possibilidade de contaminar pessoas, flora e fauna, com efeito sistêmico e cumulativo, mas realize a atividade devidamente licenciada, tendo adotado todas as medidas de mitigação e monitoramento previstas e, tenha ocorrido um acidente imprevisível ou mesmo a ocorrência de uma drenagem ácida de uma pilha de rejeitos, devidamente impermeabilizada e com contenção devidamente efetivada, há, a princípio, indícios de que o agente não queria o resultado poluidor e, portanto, neste caso, não há que se falar em infração.

É certa, a necessidade de que também se investigue as questões de caracterização de culpa nas modalidades de negligência, imprudência e imperícia que podem decorrer no resultado punível.

Notadamente, nas infrações de natureza ambiental, a culpa, notadamente decorrente da omissão, pode vir a ser o principal elemento de investigação, já que se associa a um dever de cuidado para com os bens ambientais que se inserem no âmbito dos direitos difusos.

Os exemplos dados ilustram que a vontade, o querer, a intenção do agente, seja por ação, seja por omissão, passam a ser elemento fundamental da caracterização da infração ambiental, diferente do que por muito tempo se deu nos julgamentos em processos administrativos, na apuração dessas infrações, em que somente o nexo causal que ligava o agente ao resultado, eram necessários.

Vale aqui se fazer referências, por meio de reforço exemplificativo, a um dos tipos infracionais mais comuns no âmbito das infrações ambientais, consubstanciado na infração de instalar ou operar empreendimento sem licença. Eis o tipo infracional previsto no Decreto 6.514/08:

"Artigo 66. Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar estabelecimentos, atividades, obras ou serviços utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, em desacordo com a licença obtida ou contrariando as normas legais e regulamentos pertinentes:
Multa de R$ 500,00 a R$ 10.000.000,00".

Como se observa, o dolo, neste caso, estará caracterizado quando o agente constrói, reforma, amplia, instala ou funciona uma atividade desprovida de licença ambiental, quando esta é exigida ou quando em desacordo com a licença obtida ou ainda, contrariando normas e regulamentos.

Pouco importa se o agente sabia ou não que a licença era exigível porque não é dado a ninguém alegar o desconhecimento da lei.

Assim, quando o agente acredita que está de posse de uma licença ambiental válida para realizar dada atividade não há a caracterização do dolo, ainda que a licença não seja válida, como na hipótese de ter sido expedida por órgão incompetente. O mesmo se pode dizer quando a licença que o agente acredita possuir seja fruto de uma falsidade ideológica praticada por terceiro, estando ele de boa-fé razoável.

Esse entendimento jurídico sobre a responsabilidade subjetiva no âmbito da infração ambiental produz resultados diretos e consideráveis no âmbito do processo administrativo já que, não se exige mais, tão somente a caracterização do nexo causal entre o autor do fato e o resultado, mas se insere, nessa análise, em julgamento administrativo, o elemento subjetivo, é dizer: o agente queria aquele resultado, ou assumiu o risco de produzi-lo ou ainda, agiu de forma negligente, imprudente ou com imperícia?

Essa caracterização de dolo ou culpa aponta a necessidade de que os elementos constitutivos da infração sejam aprofundados na instrução processual administrativa. Isto porque se já não basta mais ligar o autor, aos fatos consumativos do tipo infracional, há que se arredar quaisquer situações que apontem para a inexistência da vontade direcionada ao resultado, afastando o dolo, ou ainda, o atendimento do devido dever de cuidado esperado do agente em face dos bens ambientais, o que afastaria também a culpa.

Na infração praticada com culpa, não é a finalidade que individualiza a conduta juridicamente relevante do agente, e, sim, o modo utilizado para o alcance da finalidade; isso, porque é um modo violador de um dever de cuidado e que gera um resultado previsto no tipo infracional.

Resta, ainda que em breve síntese, adentrar a questão da prova do elemento subjetivo na prática da infração, a saber se cabe ao ente público a demonstração da caracterização do dolo ou culpa ou ao autuado, por ocasião da defesa.

Lavrado o auto de infração, deverá o agente fiscal colacionar no relatório de fiscalização ou em laudo, todos os elementos que o levaram a verificação e caracterização do dolo ou culpa.

Em infrações como desmatamento sem licença ou caça de animais silvestres sem autorização, bastará o nexo causalidade ligando o autor aos fatos vez que o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de alcançar o resultado é decorre do fato objetivo: cortar a vegetação ou perseguir o animal, respectivamente. Não é necessário adentrar a mente ou aos sentimentos do autuado, no ato de desmatar ou de caçar. Quem corta a vegetação quer esse resultado. Quem persegue o animal silvestre, armado, quer o resultado caça.

Porém, para algumas outras infrações, como é o caso da poluição ou do funcionamento de atividade poluidora sem licença, há que se aprofundar sobre a investigação do elemento subjetivo, desde o ato da lavratura do auto de infração, na apuração da situação, apontando-se, pelo menos, indícios de dolo ou culpa. Caberá ao agente fiscal, de forma expressa, apresentar, no caso concreto e, a priori, a caracterização do elemento subjetivo.

Passada a fase inicial, com a lavratura do auto de infração, caberá ao autuado afastar, por meio de provas, a caracterização do dolo ou culpa, por ocasião da defesa ou mesmo do recurso.

Em qualquer hipótese, a autoridade julgadora deverá julgar o auto de infração improcedente, mesmo de ofício, quando os elementos caracterizadores de dolo ou culpa não estiverem presentes no caderno processual ou dele não se possam extrair, diante dos elementos objetivos. É dizer: a autoridade julgadora não poderá presumir o dolo ou culpa. Tais elementos deverão estar devidamente caracterizados na instrução processual e devidamente fundamentados por ocasião da decisão que julga, em caráter administrativo, a infração.

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    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro "Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado".

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