CNJ apresentará projeto de lei com regras para reconhecimento pessoal
11 de agosto de 2022, 17h44
O reconhecimento pessoal errôneo é considerado uma das principais causas de prisões e condenações injustas no Brasil, muitas vezes impedindo que as pessoas que realmente praticaram o delito sejam responsabilizadas. Para incidir nesse cenário, o Conselho Nacional de Justiça apresentará uma série de medidas, entre elas um anteprojeto de lei com diretrizes para modificação do Código de Processo Penal.
Essas medidas foram definidas na segunda-feira (8/8), durante a reunião plenária de encerramento do grupo de trabalho criado para esta finalidade. Coordenador do grupo de trabalho, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti Cruz explicou que também foi elaborada proposta de resolução voltada à magistratura, com diretrizes relativas ao tema.
"Enquanto o texto proposto tramita no Legislativo, a resolução servirá para nós, do Judiciário, como um orientador importante em relação a esses casos", pontuou. A norma elaborada pelo GT será apresentada ao Plenário na última sessão presidida pelo ministro Luiz Fux à frente do CNJ, no dia 6 de setembro.
Além da minuta de resolução e do anteprojeto de lei, os participantes da reunião também apresentaram uma cartilha com conteúdo orientador voltado para a população; um documento que elenca diagnóstico e boas práticas endereçados ao CNJ; e uma proposta de um curso de capacitação voltado a juízes e juízas.
Schietti afirmou que, aos poucos, as diretrizes que consideram que o reconhecimento formal deve seguir regras legais já começam a ser atendidas pela Justiça brasileira. Em São Paulo, segundo o magistrado, metade das câmaras criminais já adota essas orientações. "Isso é muito importante pois se trata do maior tribunal das Américas, responsável por metade dos processos que chegam ao STJ".
A respeito da importância do grupo de trabalho, o conselheiro Mauro Martins destacou: "Estou certo de que este GT deixará importantíssimo legado para todo o sistema de justiça criminal e seus resultados auxiliarão na qualificação dos procedimentos e decisões, evitando o aprisionamento e condenação de muitas pessoas inocentes".
Prisões injustas
A instituição de regras baseadas em métodos da psicologia do testemunho e de boas práticas podem deixar o reconhecimento pessoal menos sujeito a falhas. Um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro identificou que em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado a pessoa ficou presa por, em média, nove meses.
O grupo de trabalho do CNJ reconhece que o número de anos de aprisionamento cautelar pode ser ainda maior. Foi o caso do artista plástico mineiro Eugênio Fiúza, erroneamente reconhecido na rua por uma vítima. Foram 17 anos até que ele conseguisse a revisão do caso e sua liberdade.
Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, o juiz auxiliar da Presidência Luis Lanfredi ressaltou o caráter amplo e plural do grupo, que contou com a participação de magistrados, promotores de justiça, defensores públicos, delegados de polícia, além de juristas e representantes do terceiro setor, destacando-se também pelo protagonismo de mulheres e negros.
"Essa pluralidade de perspectivas e vivências está refletida nas medidas propostas pelo GT, que contribuem, a um só tempo, para fortalecer a cultura institucional de respeito às garantias e liberdades dos cidadãos e para a ampliar a legitimidade do sistema de justiça criminal perante a sociedade, por meio da elevação do padrão de confiabilidade da prova de reconhecimento", declarou.
A professora Janaina Matida, uma das 43 participantes do GT, enfatizou a necessidade de o reconhecimento ser presencial, além da inclusão de pessoas inocentes (não suspeitas), semelhantes à descrição do perfil feito pela vítima, entre os suspeitos. Essa medida é orientada pela psicologia do testemunho ,área do conhecimento em que se busca garantir qualidade nos relatos prestados por elas.
Ademais, é importante que as fotografias sirvam como apoio, não como prova principal. Outro ponto ressaltado diz respeito ao tempo para a realização do reconhecimento pessoal: ele deve ser feito na fase anterior ao processo penal, para evitar a degradação da memória.
Racismo estrutural
Nos Estados Unidos, os casos de prisões injustas por reconhecimentos pessoais ou fotográficos equivocados são responsáveis por cerca de 70% dos casos de revisão das condenações, atrás apenas de exames de DNA. Os motivos por trás de um reconhecimento pessoal errado podem estar em várias causas: estado de nervosismo da vítima no momento do crime; condições de iluminação do local onde o crime foi praticado, tempo de contato entre a vítima e o autor do delito durante a ação criminosa, dentre outros fatores que dificultam a captação exata e memorização da fisionomia do ofensor.
Há também o efeito racial cruzado, pois as pessoas, de modo geral, encontram maior dificuldade para realizarem corretamente o reconhecimento de pessoas que pertencem a grupos raciais distintos do seu por estarem menos familiarizadas com o fenótipo característico desses grupos. Dessa forma, por exemplo, uma pessoa branca está mais suscetível a se equivocar ao realizar o reconhecimento de uma pessoa negra, que de alguém do seu próprio grupo racial.
Outros fatores que podem levar a um reconhecimento equivocado se relacionam com a conduta de agentes do sistema de justiça criminal, como a exibição isolada de uma única pessoa para fins de reconhecimento (show up) ou a repetição do ato de reconhecimento, que podem induzir a vítima a um reconhecimento positivo, porém equivocado.
A Defensoria Pública do RJ, em levantamento recente, concluiu que em 83% dos casos as pessoas prejudicadas por reconhecimentos errôneos eram negras. "Em um país que não consegue dissociar a criminalização da repressão racial, a luta contra o erro de reconhecimento é, fundamentalmente, parte do tardio esforço das autoridades públicas para diminuição do racismo que se expressa e se estrutura por meio da seletividade penal, principalmente contra homens negros", afirmaram os relatores gerais Maurício Dieter e Thaís Pinhata.
O advogado e professor Cleifson Dias explicou que o curso de capacitação proposto abordará questões como o racismo estrutural e detalhará sobre a psicologia do testemunho. O conteúdo do curso ainda está sendo finalizado, mas deve conter seis módulos, entre eles, eficiência do reconhecimento, memória humana; racismo estrutural no contexto brasileiro e no sistema criminal.
Para Rogerio Schietti, o trabalho realizado pelo grupo permitirá uma sensibilização em relação ao trabalho dos juízes brasileiros. "Magistrados e magistradas são pessoas que detêm o imenso poder de traçar o destino de pessoas. E todo dia chegam ao STJ habeas corpus relativos a situações absurdas de injustiças cometidas pelo Judiciário. Casos que antes de chegar ao juiz, passaram por policiais militares, policiais civis, que não perceberam os erros em suas atuações. O que prova que precisamos estar mais atentos a nossas funções". Com informações da assessoria de imprensa do Conselho Nacional de Justiça.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!