Processo Novo

Um novo recurso especial, um novo Superior Tribunal de Justiça

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

10 de agosto de 2022, 14h59

O Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 125/2022, que acrescentou os §§ 2º e 3º ao artigo 105 da Constituição, instituindo o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional para o recurso especial dirigido ao Superior Tribunal de Justiça [1].

Spacca
Não houve, no caso, uma reforma constitucional qualquer. Tem-se, de agora em diante, um novo recurso especial. E não será despropositado dizer que, a partir desse ponto, surgirá um novo Superior Tribunal de Justiça.

São várias as razões que conduzem a esse modo de pensar.

Não se desconhece que o Superior Tribunal de Justiça desempenha outras funções, seja no julgamento de ações de sua competência originária, seja no julgamento de recursos ordinários, que mais se assemelham ao recurso de apelação. Mas é no julgamento do recurso especial que o STJ realiza, por excelência, a sua função nomofilática, com a qual se relacionam as funções uniformizadora e paradigmática, no que diz respeito à inteligência da norma federal infraconstitucional.

Nem sempre foi assim, contudo.

Antes da Constituição de 1988, através do recurso extraordinário o Supremo Tribunal Federal definia o sentido da norma federal constitucional e infraconstitucional. Com o propósito de se reduzir a quantidade muito grande de processos que tramitavam naquela corte (e que gerou a "crise do Supremo", como então era chamada), a Constituição Federal de 1988 criou o Superior Tribunal de Justiça, com competência para definir a inteligência da norma federal infraconstitucional, fazendo-o através do julgamento do recurso especial. Ao Supremo restaria julgar, em recurso extraordinário, apenas questões federais constitucionais.

A dicotomia criada pela Constituição de 1988 não eliminou a conjuntura decorrente do número muito grande de processos em trâmite nos tribunais superiores. A "crise do Supremo" ressurgiu, e também o Superior Tribunal de Justiça entrou em crise.

O germe do problema está na origem do recurso extraordinário, na forma como foi concebido entre nós no final do século 19, particularmente pelo fato de ter-se inspirado em figura então existente no direito norte-americano. Lá, a competência legislativa federal é bem menos ampla que a que se verifica em solo brasileiro. Inevitável, portanto, que os tribunais que têm competência para definir o sentido da norma federal (constitucional ou infraconstitucional) tivessem muito mais a fazer, no Brasil, em comparação com o modelo estrangeiro que serviu de inspiração.

Com a criação do requisito da repercussão geral da questão constitucional para o recurso extraordinário pela Emenda Constitucional 45/2004, esse ambiente viria a ser profundamente alterado, não apenas no Supremo, mas também com reflexos na atuação do Superior Tribunal de Justiça.

O STF, através do recurso extraordinário, passou a julgar apenas questões qualificadas pela repercussão geral. Além disso, ao longo dos anos, intensificou-se um certo sincretismo entre o controle abstrato de constitucionalidade das leis (quando, por exemplo, julga ação direta de inconstitucionalidade) e a realizada em julgamento de recurso extraordinário. O fenômeno é conhecido também como "objetivação" (ou "dessubjetivação") do controle difuso de constitucionalidade [2].

Ao mesmo tempo em que o Supremo deixou de se manifestar sobre vários temas constitucionais (em razão da ausência de repercussão geral), viu-se o Superior Tribunal de Justiça solucionar cada vez mais problemas de direito infraconstitucional com base em fundamentos constitucionais. Certamente, essa tendência é em parte fruto da "constitucionalização" do direito infraconstitucional, consistente no reconhecimento de que a Constituição tem efetiva força normativa e, além disso, de que as regras infraconstitucionais devem ser sempre interpretadas e aplicadas a partir da Constituição (nesse mesmo contexto, recorde-se de movimento que ficou conhecido como a "constitucionalização do direito privado") [3].

Esse, a meu ver, o primeiro ponto que merece realce na evolução do recurso especial e do Superior Tribunal de Justiça, decorre dos reflexos da transformação experimentada pelo Supremo Tribunal Federal com a instituição da repercussão geral da questão constitucional como requisito para o recurso extraordinário.

Segundo ponto de destaque sucedeu com a instituição de procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça, com a reforma da Lei 11.672/2008, que adicionou o artigo 543-C ao CPC de 1973. Poucos anos depois, em 2011, a Corte Especial do tribunal firmou o entendimento de que contra a decisão que negasse seguimento a recurso especial interposto contra acórdão que adotasse orientação firmada no julgamento de recurso especial repetitivo seria cabível apenas agravo regimental, a ser julgado no próprio tribunal local, não sendo admissível recurso para o Superior Tribunal de Justiça [4]. Essa orientação jurisprudencial consolidou-se com a reforma da Lei 13.256/2016, que deu nova redação ao artigo 1.030 do CPC de 2015. Nesses casos, cumpre ao tribunal local, e não mais ao Superior Tribunal de Justiça, verificar o acerto da decisão proferida, quanto a se saber se ela se encontra em harmonia com a tese firmada pelo STJ. Aqui já se podia observar uma forma (ainda que indireta, ou imperfeita) de descentralização da função nomofilática desempenhada pelo Superior Tribunal de Justiça, quando à higidez do sentido normativo atribuído às regras de direito federal infraconstitucional [5].

Esses momentos, sem dúvida, são de grande relevo. Mas nenhum deles se compara com a transformação que o recurso especial está a experimentar neste momento, com a aprovação da Emenda Constitucional 125/2022.

Espera-se que, em sua regulamentação, a disciplina da relevância da questão federal infraconstitucional para o recurso especial espelhe-se na prevista para a repercussão geral da questão constitucional para o recurso extraordinário. Ainda que não sejam requisitos idênticos, nos dois casos está-se diante da exigência de que a questão seja qualificada para que se submeta ao exame dos tribunais superiores. É natural, assim, que a experiência haurida pelo Supremo seja aproveitada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Por exemplo, quando o STJ decidir que determinada questão não tem relevância, espera-se que a disciplina que vier a ser implantada preveja que todos os recursos especiais que versarem sobre tema idêntico terão seu seguimento negado, e também aqui provavelmente não caberá recurso para o tribunal superior, mas apenas agravo interno para o próprio tribunal local (à semelhança do que prevê o artigo 1.030, caput, I, a e § 2.º do CPC/2015). Procedimento análogo provavelmente acabará sendo previsto para os casos de verificação de conformidade com as teses que vierem a se firmar no julgamento da questão federal infraconstitucional, quando reconhecida a sua relevância pelo STJ. Afinal, a relevância da questão federal tende a ser considerada não apenas um requisito a ser verificado caso a caso, mas também um instrumento para limitar a chegada de processos no Superior Tribunal de Justiça.

Espera-se, com isso, um recrudescimento da peculiar função nomofilática desempenhada pelos tribunais locais, quanto à inteligência das regras de direito federal infraconstitucional. É que, como o Superior Tribunal de Justiça se recusará a se manifestar a respeito de temas que considerar sem relevância, sobre esses tocará aos tribunais locais dar "a última palavra". Caso, por exemplo, o STJ decida que questões de direito de vizinhança ou de direito condominial não ostentam relevância, os tribunais de cada um dos estados dirão como as regras de lei federal correspondentes devem ser interpretadas, na área de sua competência territorial.

Para atenuar os graves inconvenientes que podem decorrer da dispersão de entendimentos sobre a lei federal na jurisprudência dos tribunais locais, convém considerar que, no caso previsto no artigo 105, caput, III, c da Constituição Federal (cabimento de recurso especial contra decisão que "der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal"), a relevância da questão federal é implícita. Com outras palavras, pode-se dizer que a relevância, no caso, está in re ipsa, já que ligada à função uniformizadora do Superior Tribunal de Justiça. Também aqui será de todo conveniente haver alguma disciplina infraconstitucional, a fim de que se definam os contornos da questão, no caso de recurso especial fundado em divergência jurisprudencial. Por exemplo, seria possível identificar questões disciplinadas por lei federal que poderiam receber tratamentos distintos, em cada canto do país, sem colocar em risco a unidade do direito nacional?

Inegável reconhecer que a mudança pela qual passará o STJ acabará por repercutir também no papel desempenhado pelos tribunais locais. Afinal, a alteração de uma das engrenagens do sistema afeta-o, como um todo. Com isso, o modelo federativo brasileiro acabará sendo redesenhado, ainda que de modo ambíguo e tortuoso, pois sem que se alterem os artigos 22 e 24 da Constituição, que disciplinam as competências legislativas exclusiva da União e concorrentes entre União, estados e Distrito Federal.

Há muito mais a ser dito, e nos ocuparemos de outros problemas relacionados a esse fascinante tema em escritos vindouros. Mas já se pode colocar em evidência o surgimento, entre nós, de um novo recurso especial, que poderá conduzir ao florescimento de um novo Superior Tribunal de Justiça.


[1] O tema é polêmico. Já vínhamos tratando da proposta que deu origem à alteração em nossa coluna desde o início se sua tramitação, há quase dez anos. A primeira delas em 2013 (https://www.conjur.com.br/2013-set-16/processo-justica-nao-medida-apenas-numeros), e, dentre as mais recentes, em 2021 (https://www.conjur.com.br/2021-dez-15/processo-novas-restricoes-cabimento-recurso-especial-superior-tribunal-justica). O assunto também tem sido objeto de reflexões também em alguns de nossos livros. Cf. Prequestionamento, repercussão geral da questão constitucional, relevância da questão federal: Admissibilidade, processamento e julgamento dos recursos extraordinário e especial (7.ed., 2017), Constituição Federal comentada (7.ed., 2022), Código de Processo Civil comentado (8ª ed., 2022), todos publicados pela Ed. Revista dos Tribunais (mais informações aqui). Agora, aprovada e estando em vigor a reforma, o momento é de reflexão sobre seu conteúdo e alcance, bem como sobre sua futura disciplina legal e regimental.

[2] Sobre essa aproximação, cf. o que escrevemos em Prequestionamento… cit., e Constituição Federal Comentada cit., comentário ao artigo 102 da CF.

[3] Por exemplo, recentemente, ao julgar o tema repetitivo 1082, o STJ fixou a seguinte tese: "A operadora, mesmo após o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação (mensalidade) devida." Dentre os fundamentos da decisão, constam os seguintes: "A aludida exegese também encontra amparo na boa-fé objetiva, na segurança jurídica, na função social do contrato e no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o que permite concluir que, ainda quando haja motivação idônea, a suspensão da cobertura ou a rescisão unilateral do plano de saúde não pode resultar em risco à preservação da saúde e da vida do usuário que se encontre em situação de extrema vulnerabilidade" (STJ, REsp nº 1.842.751/RS, relator ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, DJe de 1/8/2022). Cf. também o que escrevemos nas obras indicadas na nota precedente, com base em ampla revisão doutrinária e jurisprudencial, e, também, em Código de Processo Civil Comentado cit., em comentário aos artigos 1.032 e 1.033 do CPC.

[4] STJ, QO no Ag nº 1.154.599/SP, relator ministro Cesar Asfor Rocha, Corte Especial, DJe de 12/5/2011.

[5] De duvidosa constitucionalidade, vale registrar. Vale conferir, a propósito, o que afirmara o ministro Teori Albino Zavascki em voto vencido, proferido no julgamento indicado na nota precedente.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense, professor associado na UEM, advogado, árbitro e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

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