Opinião

EC nº 125 no contexto do processo e do desenvolvimento

Autor

  • Antônio Pereira Gaio Júnior

    é professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; pós-doutor em Direito (Universidade de Coimbra) e em Democracia e Direitos Humanos (Ius Gentium Conimbrigae/Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra); doutor e mestre em Direito (UGF) e pós-graduado em Direito Processual (UGF). Membro do Instituto Iberoamericano de Direito Processual do Instituto Brasileiro de Direito Processual da International Bar Association da Comissão Permanente de Direito Processual Civil do IAB-Nacional e também da Comissão de Educação Jurídica da OAB-MG.

9 de agosto de 2022, 7h08

O processo jamais fora um fenômeno isolado, o mesmo se diga para quem dele se orienta.

Em diálogo franco com o serviço público de justiça, nunca é demais perceber que a atividade jurisdicional se destina a dar — ou tentar!  a melhor resposta a quem dela se socorre.

Aqui estamos a falar das expectativas que se tem quando dos flexos e reflexos operados pelas decisões judiciais e sua aptidão para transformar realidades [1], mesmo que a partir de uma expectativa para tal, afinal, previsibilidade e segurança são atributos do direito [2], sendo o processo seu realizador quando diante de resistências à sua vontade.

Disso é que se deposita no aludido serviço público da justiça o alcance para a melhoria da qualidade de vida, operando-se então o efetivo desenvolvimento entre nós [3].

A eclosão desenvolvimentista não surge e mesmo tão somente está adstrita ao conteúdo de uma regulação legislativa. Trata-se muito mais dos efeitos positivos e/ou negativos que esta regulação pode propiciar ao tecido social de determinado tempo e lugar.

Assim, pensar o Poder Judiciário no plano de um serviço público não se traduz tão somente na tarefa de regula-lo normativamente, mas muito mais do que isso.

Poder Judiciário é também governo [4] e bem por isso as múltiplas noções que perpassam o seu papel institucional devem sempre ser levadas a sério, sobretudo em relação ao seu papel condutor de vidas. As questões sociais, econômicas, políticas, além das jurídicas de quem está sob o seu manto e guarda são também suas responsabilidades.

Se é certo que, diante de um acervo normativo desforme e patológico, é tarefa hercúlea construir a unidade do direito em um país como o Brasil, mais duvidoso ainda é tentar, por meio de tal acervo, controlar a qualidade e a quantidade do direito a ser reconhecido como apto a "valer à pena" sua análise e solução.

Nestes termos, decorrente da Emenda Constitucional nº 125, de 14 de julho de 2022, alterado foi o artigo 105 da Constituição, instituindo então no recurso especial o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.

Assim, passa o aludido recurso a possuir o denominado "filtro da relevância" ou da "questão relevante", importando em mais um requisito de admissibilidade objetivo do mesmo, a fim de que se possa chegar ao Superior Tribunal de Justiça e ser respectivamente "levado a sério", tanto no conhecimento e quanto no julgamento daquela via recursal excepcional.

De início, deverá o recorrente em sede de recurso especial, conforme inteligência do §2º do artigo 105, §2º da CF, demonstrar em seu bojo a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo, pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente para o seu julgamento.

Nota-se que daí se depreende a espera de lei que traçará balizas para que a relevância seja melhor aclarada, ainda que nos moldes da já conhecida repercussão geral incita aos recursos extraordinários (ev vi do artigo 1.035 do CPC).

Entre os pressupostos subjetivos e objetivos para a configuração do que seria a relevância, fundamentalmente pensamos que a matéria a ser discutida transcenda ao próprio interesse das partes no processo, e que a relevância assegure contornos sociais, políticos, jurídicos ou econômicos que exijam a imprescindível manifestação da questão discutida para fins do bem da própria unidade do direito.

Não obstante isso, tratou o constituinte derivado, no âmbito da própria EC nº 125, elencar em rol temático, a relevância já presumida, nos seguintes termos:

"§ 3º Haverá a relevância de que trata o §2º deste artigo nos seguintes casos:
I – ações penais;
II – ações de improbidade administrativa;
III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos;
IV – ações que possam gerar inelegibilidade;
V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça;
VI – outras hipóteses previstas em lei".

Assim, ações penais, ações em sede de improbidade administrativa e ações que possa gerar ilegibilidade, estariam em um rol temático "escolhido" pelo legislador, para fins de, per si, já possuírem o "atestado de relevância".

Outrossim, têm-se igualmente relevante, as demandas cujo o valor da causa ultrapassar a 500 salários mínimos  de lamentável e duvida técnica  e ainda as hipóteses em que o acórdão atacado pelo REsp contrariar "jurisprudência dominante" do STJ, termo implexo e de muito por nós criticado, tamanha a gigante abstração e imprecisão do mesmo, levando à uma indeterminação quantitativa e qualitativa de aferir a dominância.

Em sendo um filtro a título de inibir que matérias não tidas como "relevantes" possam se acender ao STJ, necessário será que o controle para tal, após a análise da turma, seção ou mesmo da Corte Especial (certamente lei futura deverá estabelecer tal regramento), seja realizado pelos tribunais a quo, nos mesmos termos onde já se opera o filtro da repercussão geral para os recursos extraordinários, como ocorre em juízo de admissibilidade contido no artigo 1.030, I, a do Código de Processo Civil.

Diga-se que o papel desempenhado pelos TJs e TRFs na contenção de subida dos REs e REsps é que dão sentido ao sistema de filtragem. Uma vez ocorrendo a falha em referida filtragem, os recursos excepcionais seguem o seu desiderato e chegarão às cortes superiores. Portanto, há de ser sempre um conjunto de forças de trabalho a fazer valer o sistema de filtros recursais.

 Lado outro, ao se debruçar pelos números recursais que assolam a Corte da Cidadania, observa-se que o STJ julgou 3.711 processos em 1989, primeiro ano de seu funcionamento. Dez anos depois, em 1999, essa cifra anual já chegava a 128.042, até atingir 552.174 processos apenas no ano de 2021, aqui incluída a apreciação de agravos regimentais, agravos internos e embargos de declaração [5].

Em 1989 foram 856 recursos especiais, chegando a 100.665 em 2018. No ano 2021, foram 72.311 recursos especiais julgados pelo Superior Tribunal de Justiça.

No entanto, nos parece que o foco principal para a construção do presente filtro sejam os agravos em recurso especial, recurso este que procura enfrentar as decisões dos presidentes e vice-presidentes dos tribunais de 2ª instância, quando da negação ao recebimento do recurso especial (artigo 1.042 do CPC) e que, certamente, diante da inadmissibilidade do referido recurso pela inexistência de relevância já então declarada pelo STJ, conforme alhures já comentado, procurarão limitar ainda mais a ascensão do REsp à corte.

Por tudo dito, dado o panorama da Emenda Constitucional nº 125 e suas características normativas com o foco  na diminuição de acervos processuais em instância superior, e para isso, criando-se mais um filtro onde talvez possa, com as melhores intenções, conceber melhor unidade ao Direito, há de sublinhar que a aludida "diminuição de acervo" possui tentáculos para além dela, não somente tentando "racionalizar" as investidas ao Serviço Público da Justiça, mas in concreto, subordinando às boas vontades judicantes a relevância do que é o bom ou não direito, algo que na busca pela qualidade de vida como fator desenvolvimentista, individual ou coletivamente, não se mensura quando se tem a necessidade. 


[1] GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Processo Civil, Direitos Fundamentais Processuais e Desenvolvimento. Flexos e reflexos de uma relação. Londrina: Thoth, 2021.

[2] LLOYD, Dennis. The idea of law. England: Penguin Books, 1981, p.258.

[3] Desenvolvimento se relaciona dentro da perspectiva de um avanço significativo no quadro das políticas sociais voltadas à edificação de melhoria das condições daquela sociedade destinatária de tais políticas, o que com isso se exige, dentre outras, a oferta com qualidade e quantidade suficientes de serviços e bens públicos essenciais a uma vida digna, hígida e dotada de previsibilidade e segurança nas relações intersubjetivas, tendo o  Serviço Público da Justiça papel essencial neste contexto. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Processo Civil, Direitos Fundamentais Processuais e Desenvolvimento. Flexos e reflexos de uma relação. Londrina: Thoth, 2021, p.102-103.

[4] "O limite entre o político e o judicial não pode ser definido formalmente no Estado moderno. A justiça não pode ser 'apolítica' nesse sentido, e hoje mais do que nunca deve-se reconhecer que o poder judiciário é governo". ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário. Crises, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: RT, 1995, p.24.

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    é professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; pós-doutor em Direito (Universidade de Coimbra) e em Democracia e Direitos Humanos (Ius Gentium Conimbrigae/Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra); doutor e mestre em Direito (UGF) e pós-graduado em Direito Processual (UGF). Membro do Instituto Iberoamericano de Direito Processual, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, da International Bar Association, da Comissão Permanente de Direito Processual Civil do IAB-Nacional e também da Comissão de Educação Jurídica da OAB-MG.

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