EC nº 125 no contexto do processo e do desenvolvimento
9 de agosto de 2022, 7h08
O processo jamais fora um fenômeno isolado, o mesmo se diga para quem dele se orienta.
Em diálogo franco com o serviço público de justiça, nunca é demais perceber que a atividade jurisdicional se destina a dar — ou tentar! — a melhor resposta a quem dela se socorre.
Aqui estamos a falar das expectativas que se tem quando dos flexos e reflexos operados pelas decisões judiciais e sua aptidão para transformar realidades [1], mesmo que a partir de uma expectativa para tal, afinal, previsibilidade e segurança são atributos do direito [2], sendo o processo seu realizador quando diante de resistências à sua vontade.
Disso é que se deposita no aludido serviço público da justiça o alcance para a melhoria da qualidade de vida, operando-se então o efetivo desenvolvimento entre nós [3].
A eclosão desenvolvimentista não surge e mesmo tão somente está adstrita ao conteúdo de uma regulação legislativa. Trata-se muito mais dos efeitos positivos e/ou negativos que esta regulação pode propiciar ao tecido social de determinado tempo e lugar.
Assim, pensar o Poder Judiciário no plano de um serviço público não se traduz tão somente na tarefa de regula-lo normativamente, mas muito mais do que isso.
Poder Judiciário é também governo [4] e bem por isso as múltiplas noções que perpassam o seu papel institucional devem sempre ser levadas a sério, sobretudo em relação ao seu papel condutor de vidas. As questões sociais, econômicas, políticas, além das jurídicas de quem está sob o seu manto e guarda são também suas responsabilidades.
Se é certo que, diante de um acervo normativo desforme e patológico, é tarefa hercúlea construir a unidade do direito em um país como o Brasil, mais duvidoso ainda é tentar, por meio de tal acervo, controlar a qualidade e a quantidade do direito a ser reconhecido como apto a "valer à pena" sua análise e solução.
Nestes termos, decorrente da Emenda Constitucional nº 125, de 14 de julho de 2022, alterado foi o artigo 105 da Constituição, instituindo então no recurso especial o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional.
Assim, passa o aludido recurso a possuir o denominado "filtro da relevância" ou da "questão relevante", importando em mais um requisito de admissibilidade objetivo do mesmo, a fim de que se possa chegar ao Superior Tribunal de Justiça e ser respectivamente "levado a sério", tanto no conhecimento e quanto no julgamento daquela via recursal excepcional.
De início, deverá o recorrente em sede de recurso especial, conforme inteligência do §2º do artigo 105, §2º da CF, demonstrar em seu bojo a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo, pela manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente para o seu julgamento.
Nota-se que daí se depreende a espera de lei que traçará balizas para que a relevância seja melhor aclarada, ainda que nos moldes da já conhecida repercussão geral incita aos recursos extraordinários (ev vi do artigo 1.035 do CPC).
Entre os pressupostos subjetivos e objetivos para a configuração do que seria a relevância, fundamentalmente pensamos que a matéria a ser discutida transcenda ao próprio interesse das partes no processo, e que a relevância assegure contornos sociais, políticos, jurídicos ou econômicos que exijam a imprescindível manifestação da questão discutida para fins do bem da própria unidade do direito.
Não obstante isso, tratou o constituinte derivado, no âmbito da própria EC nº 125, elencar em rol temático, a relevância já presumida, nos seguintes termos:
"§ 3º Haverá a relevância de que trata o §2º deste artigo nos seguintes casos:
I – ações penais;
II – ações de improbidade administrativa;
III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos;
IV – ações que possam gerar inelegibilidade;
V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça;
VI – outras hipóteses previstas em lei".
Assim, ações penais, ações em sede de improbidade administrativa e ações que possa gerar ilegibilidade, estariam em um rol temático "escolhido" pelo legislador, para fins de, per si, já possuírem o "atestado de relevância".
Outrossim, têm-se igualmente relevante, as demandas cujo o valor da causa ultrapassar a 500 salários mínimos — de lamentável e duvida técnica — e ainda as hipóteses em que o acórdão atacado pelo REsp contrariar "jurisprudência dominante" do STJ, termo implexo e de muito por nós criticado, tamanha a gigante abstração e imprecisão do mesmo, levando à uma indeterminação quantitativa e qualitativa de aferir a dominância.
Em sendo um filtro a título de inibir que matérias não tidas como "relevantes" possam se acender ao STJ, necessário será que o controle para tal, após a análise da turma, seção ou mesmo da Corte Especial (certamente lei futura deverá estabelecer tal regramento), seja realizado pelos tribunais a quo, nos mesmos termos onde já se opera o filtro da repercussão geral para os recursos extraordinários, como ocorre em juízo de admissibilidade contido no artigo 1.030, I, a do Código de Processo Civil.
Diga-se que o papel desempenhado pelos TJs e TRFs na contenção de subida dos REs e REsps é que dão sentido ao sistema de filtragem. Uma vez ocorrendo a falha em referida filtragem, os recursos excepcionais seguem o seu desiderato e chegarão às cortes superiores. Portanto, há de ser sempre um conjunto de forças de trabalho a fazer valer o sistema de filtros recursais.
Lado outro, ao se debruçar pelos números recursais que assolam a Corte da Cidadania, observa-se que o STJ julgou 3.711 processos em 1989, primeiro ano de seu funcionamento. Dez anos depois, em 1999, essa cifra anual já chegava a 128.042, até atingir 552.174 processos apenas no ano de 2021, aqui incluída a apreciação de agravos regimentais, agravos internos e embargos de declaração [5].
Em 1989 foram 856 recursos especiais, chegando a 100.665 em 2018. No ano 2021, foram 72.311 recursos especiais julgados pelo Superior Tribunal de Justiça.
No entanto, nos parece que o foco principal para a construção do presente filtro sejam os agravos em recurso especial, recurso este que procura enfrentar as decisões dos presidentes e vice-presidentes dos tribunais de 2ª instância, quando da negação ao recebimento do recurso especial (artigo 1.042 do CPC) e que, certamente, diante da inadmissibilidade do referido recurso pela inexistência de relevância já então declarada pelo STJ, conforme alhures já comentado, procurarão limitar ainda mais a ascensão do REsp à corte.
Por tudo dito, dado o panorama da Emenda Constitucional nº 125 e suas características normativas com o foco na diminuição de acervos processuais em instância superior, e para isso, criando-se mais um filtro onde talvez possa, com as melhores intenções, conceber melhor unidade ao Direito, há de sublinhar que a aludida "diminuição de acervo" possui tentáculos para além dela, não somente tentando "racionalizar" as investidas ao Serviço Público da Justiça, mas in concreto, subordinando às boas vontades judicantes a relevância do que é o bom ou não direito, algo que na busca pela qualidade de vida como fator desenvolvimentista, individual ou coletivamente, não se mensura quando se tem a necessidade.
[1] GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Processo Civil, Direitos Fundamentais Processuais e Desenvolvimento. Flexos e reflexos de uma relação. Londrina: Thoth, 2021.
[2] LLOYD, Dennis. The idea of law. England: Penguin Books, 1981, p.258.
[3] Desenvolvimento se relaciona dentro da perspectiva de um avanço significativo no quadro das políticas sociais voltadas à edificação de melhoria das condições daquela sociedade destinatária de tais políticas, o que com isso se exige, dentre outras, a oferta com qualidade e quantidade suficientes de serviços e bens públicos essenciais a uma vida digna, hígida e dotada de previsibilidade e segurança nas relações intersubjetivas, tendo o Serviço Público da Justiça papel essencial neste contexto. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Processo Civil, Direitos Fundamentais Processuais e Desenvolvimento. Flexos e reflexos de uma relação. Londrina: Thoth, 2021, p.102-103.
[4] "O limite entre o político e o judicial não pode ser definido formalmente no Estado moderno. A justiça não pode ser 'apolítica' nesse sentido, e hoje mais do que nunca deve-se reconhecer que o poder judiciário é governo". ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário. Crises, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: RT, 1995, p.24.
[5] Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/17122021-STJ-encerra-o-ano-forense-com-mais-de-550-mil-julgamentos-realizados.aspx . Acesso em 27.07.2022
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