Importação proibida

Ronnie Lessa é condenado a cinco anos de prisão por tentativa de tráfico de armas

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7 de agosto de 2022, 7h30

Se, mesmo com a alteração da regulamentação de norma penal em branco, a conduta continua a ser socialmente reprovada, não deve haver retroatividade para beneficiar o réu. Com esse entendimento, a 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro condenou, nesta quinta-feira (4/8), o policial militar reformado Ronnie Lessa a cinco anos de prisão e multa de R$ 454 mil por tentativa de tráfico internacional de armas de fogo.

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Ronnie Lessa também foi condenado a pagar multa de R$ 454 mil
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O juízo também manteve a prisão preventiva de Lessa com o objetivo de garantir a ordem pública. Como há indícios de que ele integra organização criminosa, a prisão busca evitar a prática de novos delitos.

Ronnie Lessa e Élcio Queiroz são acusados de assassinar a vereadora Marielle Franco (Psol) e o motorista Anderson Gomes em 2018, no Rio de Janeiro. Os dois serão submetidos a júri popular. O ex-policial, sua mulher, Elaine Lessa, o cunhado e dois amigos foram condenados no ano passado a quatro anos de prisão por destruição de provas. De acordo com o Ministério Público, o grupo se articulou para descartar armas de fogo no mar da Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. Há suspeita de que a arma usada para matar Marielle e Anderson estava entre as descartadas.

Em 2017, a Receita Federal apreendeu 16 quebra-chamas novos para fuzis AR-15 ou similares, provenientes de Hong Kong. Os acessórios têm a finalidade de ocultar as chamas decorrentes de disparos de arma de fogo, de modo a não revelar a posição do atirador.

A encomenda se destinava à Academia Supernova Saúde do Corpo. Mas o endereço indicado era o da residência de Ronnie Lessa e sua mulher, Elaine Lessa — bem como o telefone fornecido era o do celular dela. Em busca e apreensão no local, a polícia apreendeu ferramentas para montagem e desmontagem de fuzis.

Amigo de Lessa, Alexandre Mota foi preso em 2019 após a Polícia Civil encontrar em sua casa 117 fuzis incompletos do tipo M-16. As peças eram novas e estavam desmontadas em caixas. Mota declarou que o material pertencia a Lessa, que lhe pediu para guardar os itens.

O Ministério Público do Rio denunciou o casal Lessa por importação de arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito sem autorização da autoridade competente (artigos 18 e 19 do Estatuto do Desarmamento).

A defesa de Ronnie Lessa admitiu que ele importou os acessórios. Contudo, alegou não se tratar de crime, uma vez que os materiais apreendidos são freio de boca e, ainda que possam desempenhar a função de supressor de clarão, não poderiam ser classificados como quebra-chamas, pois a função principal de um freio de boca seria a de reduzir o recuo do armamento. Conforme os advogados, a importação de freio de boca é livre. E ainda que os materiais apreendidos fossem quebra-chamas, a importação também seria legal, pois esses materiais deixaram de ser controlados pelo Comando do Exército pelo Decreto 10.627/2021.

Sucessão de normas
A 5ª Vara Federal Criminal do Rio apontou, com base em perícia, que os produtos importados são quebra-chamas.

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Ronnie Lessa responde pelo homicídio de Marielle Franco e o motorista dela 
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O Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) estabelece que o governo federal, mediante proposta do Comando do Exército, estabelecerá quais são as armas de fogo e acessórios de usos proibidos, restritos e permitidos. Também determina que cabe ao Comando do Exército autorizar, excepcionalmente, a aquisição de armas de fogo de uso restrito.

O juízo apontou que, segundo o artigo 18 da norma, para importar qualquer arma ou acessório, é preciso ter autorização do poder público. E a importação de armas e acessórios de uso proibido ou restrito configura crime, com causa de aumento de pena estabelecida pelo artigo 19 do Estatuto do Desarmamento.

Em 2017, quando os quebra-chamas foram importados, o produto era considerado de uso restrito pelo Decreto 3.665/2000. A norma foi revogada pelo Decreto 9.493/2018 — que, contudo, manteve a classificação do artefato.

O Decreto 10.030/2019 revogou a norma e estabeleceu que a definição dos Produtos Controlados pelo Exército (PCE) passaria a competir exclusivamente ao Comando do Exército. Regulamentando essa disposição, a Portaria 118 do Comando Logístico do Exército listou os produtos bélicos a serem especialmente controlados por conta de seu uso restrito. A norma incluiu os quebra-chamas nesse grupo. Dois anos depois, o Decreto 10.627/2021 excluiu os quebra-chamas da lista dos PCEs.

Tal alteração, contudo, não implica que a importação dos itens por Ronnie Lessa não seja crime, destacou o juízo. Afinal, os artefatos foram trazidos para o Brasil em 2017, quando os quebra-chamas eram considerados acessórios de uso restrito pelo Decreto 3.665/2000.

O juízo ressaltou que o artigo 19 do Estatuto do Desarmamento (que prevê aumento de pena para importação de armas e acessórios bélicos de uso restrito), nos termos do artigo 23 (que prevê que o Executivo estabelecerá que quais armamentos são de uso restrito), é uma norma penal em branco. Portanto, exige norma que a regulamente para ser aplicada.

Quando há sucessão no tempo das normas regulamentares (ou integrativas), os parâmetros para a definição de qual deve ser aplicada devem ser a excepcionalidade ou temporalidade de que trata o artigo 3º do Código Penal (“a lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”), informadas pela exposição do bem jurídico a perigo ou lesão, avaliou o juízo.

Dessa maneira, ainda que a norma seja temporária ou excepcional, se a revogação estiver associada ao fato de que, mesmo no seu período de vigência, a reprovação da conduta não estava presente na sociedade, ela deve retroagir para beneficiar os acusados.

Mas não é o caso de Ronnie Lessa, avaliou o juízo. Afinal, a alteração do complemento da norma penal em branco do artigo 19 do Estatuto do Desarmamento não modificou a conduta que demanda aumento de pena por importação de armamentos e acessórios de uso restrito.

“A regulação de armamentos, especialmente no que concerne à importação, se amolda perfeitamente às hipóteses nas quais a proibição penal tem por escopo tornar efetivo o controle estabelecido pelo Poder Público em dado cenário, o que confere temporalidade à normas integrativas relacionadas ao tipo. A exclusão de determinado acessório ou armamento da lista de produtos não altera sua natureza, pois armamentos continuam a ser. Neste sentido, não há diferenciação ontológica em relação às situações nas quais o controle de determinada doença deixa de ser tutelada pela lei penal, como explicitado anteriormente. A conduta daquele que viola as regras de controle em determinado cenário continua a ser desvalorada pelo tipo incriminador, que permanece com seu núcleo inalterado”, afirmou o juízo.

Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto ao contrabando (Habeas Corpus 73.168-6), disse a 5ª Vara Federal Criminal do Rio, destacando que o crime de tráfico internacional de armas nada mais é que um contrabando mais grave.

Assim, o juízo opinou que, mesmo com o Decreto 10.627/2021, a importação de armas e acessórios de uso restrito depende de autorização estatal. Como Ronnie Lessa não a obteve, houve a tentativa de praticar crime de tráfico internacional de armas, que só não foi consumado porque a Receita Federal apreendeu os itens.

No entanto, a vara absolveu Elaine Lessa por falta de provas de que ela gerenciava a Academia Supernova — destinatária dos quebra-chamas — e tinha conhecimento da importação ilegal de artefatos bélicos por seu marido.

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