De volta para o futuro

Questões jurídicas físicas e virtuais devem ser discutidas no metaverso

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7 de agosto de 2022, 8h49

Há quase um ano, o mundo testemunhou o surgimento da empresa Meta, novo nome adotado pelo Facebook, que tornou públicas as intenções da companhia de Mark Zuckerberg de criar seu próprio metaverso — daí o nome escolhido para a companhia.

Gerd Altmann
Gerd Altmann/Pixabay  No metaverso, poderão ser construídas cidades inteiras, com lojas, ruas e escritórios

De forma geral, denomina-se "metaverso" o ambiente computacional em que, por meio de um avatar e frequentemente do uso de óculos de realidade virtual e aumentada, o indivíduo consegue se introduzir em um outro mundo, completamente digital, onde ele pode fazer compras, comparecer a concertos, conhecer outras pessoas, entre muitas outras atividades.

Se de fato se materializar, a transição do mundo real para o virtual deverá incluir a criação de cargos e empregos no metaverso, em que a jornada de trabalho seria cumprida no cenário digital. Isso inclui, é claro, o Direito e todos os seus profissionais. Estaria, então, o futuro do Direito dentro do metaverso?

De certa forma, a resposta já existe — e é positiva. Em maio deste ano, a Justiça do Trabalho do Mato Grosso inaugurou um ambiente virtual em que qualquer indivíduo com bom acesso à internet pode entrar. Trata-se de uma caminhada entre os portões do prédio da Justiça até a recepção e, por fim, chegando à sala de audiência, onde é possível conversar com a juíza que coordenou a inserção do Judiciário estadual naquela que muitos especialistas têm chamado de "a nova fase da internet".

Dois meses mais tarde, a OAB de Tatuapé, na cidade de São Paulo, inaugurou a sua subseção dentro do metaverso. Mais recentemente, a comarca anunciou a criação de um espaço de coworking no mundo virtual, com direito a salas onde advogados poderão receber seus clientes e conversar com eles como se estivessem frente a frente. O local poderá ser usado por todo advogado que não tiver escritório físico ou que precisar de espaço para realizar palestras ou eventos.

Com esses e outros esforços, nasce, no Brasil, mais uma iniciativa da advocacia 4.0 ou até 5.0, focada no universo digital.

A ideia certamente não é nova — em 2007, quando se tornou popular uma espécie de embrião do metaverso chamada Second Life, ao menos dois escritórios de advocacia foram abertos no mundo digital. Porém, o surgimento de novas levas de advogados focados em oferecer seus serviços no ambiente digital aponta para um interesse reiterado do Direito nessa nova etapa da internet, em que as possibilidades são muito mais vastas do que eram há 15 anos.

Obstáculos à vista
Existem, contudo, diversos empecilhos que podem frear o avanço da advocacia no universo online. O primeiro deles é a acessibilidade: para entrar no multiverso, exige-se, no mínimo, uma boa conexão à internet (algo que não faz parte da realidade de cerca de 40 milhões de brasileiros). No futuro, pode ser demandado também o uso de óculos de realidade virtual ou aumentada, o que torna o processo ainda mais custoso.

Entretanto, o principal entrave no que diz respeito à entrada do Direito no metaverso é a questão da ética. Seria possível garantir que conversas sigilosas e a inviolabilidade de escritórios e arquivos se manteriam intactas quando existe a possibilidade não só de ataques hackers, mas também da má administração e gestão de dados?

Foi com base nesse tipo de risco que, em 2007, quando um escritório de São Paulo tentou abrir uma unidade no Second Life, o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP não foi favorável à inauguração do espaço virtual. Importante assinalar, porém, que a intenção nessa época era mais voltada a apenas construir uma presença meramente institucional online do que estruturar um escritório que de fato operasse digitalmente, como se discute hoje.

Mesmo com obstáculos, especialistas especulam que a chegada do Direito ao metaverso é inevitável, uma evolução natural da vida que já levamos online. "Isso acontecerá em qualquer hipótese, porque os códigos de programação dos ambientes incorporarão regras jurídicas de um jeito ou de outro. O que pode acontecer é uma situação de conflito que já existe hoje entre a regulação feita pelas empresas e atores privados que são responsáveis pelas plataformas e a regulação estatal", opina o líder e gestor de projetos no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV-Direito de São Paulo, Guilherme Forma Klafke.

Para o especialista, é fundamental pensar em regras de convivência e comportamento nesse espaço, porque conflitos certamente irão acontecer. Também é essencial conceber regulações que incentivem a abertura desses ambientes e a inclusão das pessoas nesse cenário.

Outro ponto sensível no que diz respeito à presença de advogados no metaverso é a possível perda da pessoalidade, ponto levantado pelo Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP. Afinal, em um ambiente virtual, seria impossível garantir a presença física do advogado e de seu cliente, ponto importantíssimo em sua relação. Para Gustavo Viseu, CEO do escritório Viseu Advogados, porém, a questão não constitui um empecilho.

"A pessoalidade continua presente, o advogado continua atendendo ao cliente diretamente, apenas num ambiente diferente, assim como poderia estar numa videoconferência", diz. "O que garante a pessoalidade é a certeza de que as pessoas estão identificadas, que o cliente está tratando com o mesmo advogado com o qual ele se comunica e relaciona por outros meios".

Caso brasileiro
Prova da inevitabilidade da entrada do Direito no metaverso é a recente inauguração de uma estrutura online do escritório do próprio Gustavo Viseu, chamado Viseu Advogados, no mundo virtual. O espaço terá salas de reunião, um lounge para eventos e até mesmo um mirante com vista para São Paulo. O objetivo do local é receber clientes e parceiros para encontros privados ou coletivos.

"Quando vimos empresas internacionais e alguns clientes estabelecendo seus negócios no metaverso, vislumbramos a oportunidade de estarmos presentes também para assessorar essas empresas nas questões jurídicas relacionadas ao universo virtual. Nossa iniciativa, pioneira no Brasil, mostrou-se bem-sucedida", conta o advogado.

Quanto aos possíveis problemas de segurança de informações, ele aposta que a plataforma será segura e que restrições no fluxo de dados sensíveis — como a criação de salas exclusivas para determinados clientes e a exigência de senhas para o acesso — serão suficientes para garantir a privacidade no cenário digital.

Para Viseu, a atuação de um escritório no metaverso pode servir especialmente para atender as demandas jurídicas de clientes surgidas a partir do metaverso. Como exemplos, ele menciona uma empresa que queira abrir uma loja no metaverso ou que teve sua marca utilizada no metaverso sem autorização, ou ainda uma pessoa que teve seus dados vazados no metaverso e precise reagir.

Mas isso não significa que o Direito estará restrito a embates criados virtualmente. "As questões do mundo real também vão entrar no metaverso em qualquer hipótese, seja porque haverá uma sobreposição entre offline e online, seja porque os conflitos podem transbordar um ambiente para o outro", afirma Guilherme Klafke.

Para embasar seu argumento, o gestor de projetos cita a realização de comícios políticos no metaverso e a relação entre estudantes em uma escola virtual. "Discursos poderão ser proferidos nesse ambiente com consequências para o mundo real, ou cyberbullying poderá ser cometido com repercussões físicas para alguém. Acho muito difícil conseguir dividir essas questões", conclui.

Os especialistas parecem concordar que, apesar das mudanças trazidas pelo metaverso, a evolução da internet não culminará no surgimento de um novo ramo do Direito. "As questões jurídicas permanecem as mesmas e não precisam ser reinventadas. É preciso muito cuidado com o discurso de que 'o metaverso exige um novo Direito', pois isso é apenas um argumento retórico de fuga da regulação existente e de desarme da nossa tradição de direitos fundamentais", aponta Rafael Zanatta, diretor executivo da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa.

Guilherme Klafke reitera também não acreditar que a essência do Direito vá mudar: "Continuará a haver direitos, deveres, proibições, autorizações e até mesmo a fixação de algumas autoridades (privadas ou públicas) para a organização do metaverso".

Assim, para quem trabalha com Direito, faz-se bem em prestar atenção ao desenvolvimento desse novo espaço virtual. Em um futuro próximo, parece cada vez mais provável que ao menos parte das demandas jurídicas surja e seja resolvida sem a necessidade de encontros presenciais.

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