Opinião

Restrição constitucional da decisão liminar de tutela

Autor

  • Hugo Jordane Lucena Costa

    é advogado bacharel em Direito pós-graduado em Direito Processual Civil pós-graduando em advocacia cível pela Escola Superior do Ministério Público e secretário-adjunto da Comissão de Diversidade da OAB – Subseção Guará (triênio 2022/2024).

4 de agosto de 2022, 7h02

As tutelas de urgência possibilitam decisões ex officio e sua compatibilidade com o sistema jurídico "baseia-se na eficácia do controle preventivo e pugna pelo entendimento de que toda espécie normativa nasce de acordo com a Constituição" (Filho, 2013) [1].

O antigo artigo 273 do CPC/73 previa apenas a possibilidade de tutela provisória na modalidade de antecipação e de modo a exigir-lhe prova inequívoca e verossimilhança das alegações bem como a demonstração do (1) receio de dano irreparável ou de difícil reparação ou (2) caracterização do abuso de direito de defesa ou do manifesto propósito protelatório do réu.

Já com a evolução do CPC/15 as tutelas provisórias tomaram um palco mais valioso e aperfeiçoado quanto a sua obtenção e satisfação. São elas cautelar e antecipada. Com a demora do Judiciário, várias decisões precárias, isto é, em sede de cognição sumária, tornam-se, de fato, decisões definitivas até a prolação de sentença, surtindo os efeitos e conservando sua eficácia na pendência do processo, inclusive no período de suspensão, muito embora podendo ser revogada ou modificada a qualquer tempo.

A tutela de natureza cautelar possui um caráter preventivo, embora estando atrelada ao objeto principal da demanda objetivando salvaguardar a efetividade da prestação jurisdicional é ação autônoma.

A tutela de urgência de natureza antecipada, diversamente da anterior, busca satisfazer imediata, total ou parcialmente, o direito material pretendido pela demanda de modo a antecipar os efeitos da decisão definitiva.

"A tutela que satisfaz, por estar além do assegurar, realiza missão que é completamente distinta da cautelar. Na tutela cautelar há sempre referibilidade a um direito acautelado. O direito referido é que é protegido (acautelado) cautelarmente. Se inexiste referibilidade, ou referência a direito, não há direito acautelado" [2].

Ambos os institutos estão subdivididos em incidental ou antecedente. Esta quando é requerida até o ajuizamento da demanda ou até mesmo durante a fase postulatória e aquela no curso do processo quando, em razão da demora, vê-se necessário imobilizar o objeto central do processo.

Por fim, a tutela provisória de evidência está indicada no artigo 311 do CPC/15 e será concedida, independente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil da demanda, desde que:

I – ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; ou
II – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; ou

III – se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa; ou
IV – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.

Portanto, da leitura dos incisos do artigo 311 do CPC/15 nota-se que a tutela de evidência se caracteriza em razão do direito material se evidente, com alto grau de probabilidade, podendo ser requerido tanto pelo autor quanto pelo réu, não havendo necessidade de demonstração de perigo na demora, podendo, inclusive, o juiz decidir liminarmente quando as provas puderem ser comprovadas documentalmente e houver tese firmada em recurso repetitivo ou nos casos de pedidos reipersecutório.

"Quanto maior a probabilidade, menor a exigência de dano para a concessão da tutela provisória. As situações jurídico-processuais tipificadas no art. 311 pressupõem um altíssimo grau de probabilidade de procedência da pretensão do requerente, daí por que o periculum in mora é dispensado" [3].

Nota-se que a distinção entre as tutelas se dão na medida em que objetiva a pretensão (se satisfativa ou preventiva), na fase processual que são postuladas (incidental ou antecedente) ou se estão vinculadas a demonstração de perigo, risco ou dano (urgência ou evidência), devendo, em todas as hipóteses se demonstrado o a verossimilhança das alegações com o direito invocado.

Noutro passo, a Constituição Federal (CRFB/88) preconizou como garantia fundamental no artigo 5º, inciso LV a segurança do exercício do contraditório em processo judicial ou administrativo.

"LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;"

O princípio do contraditório deveria compreender: (a) ser ouvido; (b) de acompanhar os atos processuais; (c) produzir provas; (d) ser informado regularmente dos atos praticados no processo; (e) motivação das decisões judicial; (f) impugnar as decisões através dos recursos a ela inerentes. Para tanto, é necessário a intimação das partes para plena ciência e exercício do direito fundamental constitucional do contraditório.

O próprio CPC/15 indicou que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil (artigo 1º) e prescrevendo que não se proferirá decisão sem que ela seja previamente ouvida (artigo 9º) bem como a proibição do juiz decidir sem que se tenha dado às partes a oportunidade de se manifestar ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício (artigo 10).

"Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício."

O parágrafo único do artigo 9º do CPC/15 foi de encontro ao seu próprio caput, ao artigo 10 do CPC/15 bem como ao artigo 5º, inciso LV da CRFB/88 trazendo que não é aplicável o exercício do contraditório à tutela provisória de urgência bem como às hipóteses de tutela de evidência quando as provas puderem ser comprovadas documentalmente e houver tese firmada em recurso repetitivo ou nos casos de pedidos reipersecutório.

"Art. 9º. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica:
I – à tutela provisória de urgência;
II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III ;"

Nota-se, portanto, que o parágrafo único do artigo 9º do CPC/15, norma de natureza infraconstitucional propõe limitações ao próprio texto constitucional.

Maria Helena Diniz classifica as normas constitucionais em (a) normas com eficácia absoluta, (b) normas com eficácia plena, (c) normas com eficácia relativa restringível e (d) normas com eficácia relativa complementável ou dependente de complementação [4].

A normas constitucionais de eficácia absoluta são aquelas em que não há possibilidade sequer se serem emendadas. Obstam qualquer outro ato normativo que lhe seja contrário ou tendente a suprimi-la. Se diferem das normas de eficácia plena pois estas podem ser modificadas pelo poder constituinte derivado.

As normas de eficácia restringível (ou eficácia contida pela classificação proposta por José Afonso da Silva) podem ser assim classificadas porque a eficácia da norma constitucional será reduzida em virtude de lei. No entanto, permanecem válidas e plenas até que a norma infraconstitucional venha a ser editada.

Por fim, as normas constitucionais de eficácia relativa complementável (ou limitada ou eficácia contida pela classificação proposta por José Afonso da Silva) exigem a complementação de um ato normativo infraconstitucional. Embora sejam juridicamente eficazes é necessário a edição da sua complementação para sua validade e eficácia plena cujo próprio texto constitucional limitou o alcance do preceito.

O artigo 60, §4º da Constituição Federal obsta a deliberação de proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais, portanto, tornando-os normas com eficácia absoluta de modo a impedir que qualquer outro ato normativo que lhe seja contrário ou tendente a suprimi-la. A simples tentativa de deliberação, por si, já é inconstitucional.

Por fim, utilizando da maiêutica socrática, indaga-se: o artigo 5º, inciso LV da Constituição que garante, de modo fundamental, o exercício do contraditório pode ser limitado por uma norma de natureza infraconstitucional, como é o parágrafo único do artigo 9º do CPC/15?

A conclusão que se chega é que a discussão constitucional acerca do parágrafo único do artigo 9º do CPC/15, isto é, da restrição do contraditório para aplicabilidade das tutelas provisórias e de evidência, limitadores de norma constitucional, garantia fundamental, deve ser analisada a luz da classificação das normas.

O artigo 60, §4º da CRFB/88 veda a deliberação de proposta tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais, mas não impede a restrição de certos direitos fundamentais. Isso porque, como se sabe, nenhum direito — ainda que constitucional — é absoluto e pode ter sua eficácia restringida por outro direito (como se vê em conflitos aparentes de normas).

Desta forma, ao restringir a aplicação do artigo 5º, inciso LV da CRFB/88 quando da edição do parágrafo único do artigo 9º do CPC/15 possibilitando decisões de ofício sem aplicação do caput do próprio artigo bem como o artigo 10 do mesmo diploma, o legislador está demonstrando que o inciso LV do artigo 5º se trata de norma de eficácia contida e, portanto, passível de limitação infraconstitucional.

BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Constituição (1988). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
BRASIL, Lei 13.105/15 (Código de Processo Civil). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
FILHO, Gabriel. B. G. de Oliveira. Comentários sobre as ações de constitucionalidade no STF da Lei nº 9.868/98 disponível em https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8036/Comentarios-sobre-as-acoes-de-constitucionalidade-no-STF-da-Lei-no-9868-98 acesso em 21/12/2021.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 164 – 165.
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Específica. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil, 22ª edição. Grupo GEN, 2019, p. 496
DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 109.


[1] FILHO, Gabriel. B. G. de Oliveira. Comentários sobre as ações de constitucionalidade no STF da Lei nº 9.868/98 disponível em https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8036/Comentarios-sobre-as-acoes-de-constitucionalidade-no-STF-da-Lei-no-9868-98. Acesso em 21/12/2021.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Específica. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

[3] DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil, 22ª edição . Grupo GEN, 2019, p. 496

[4] DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 109.

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  • é advogado, bacharel em Direito, pós-graduado em Direito Processual Civil, pós-graduando em Advocacia Cível pela Escola Superior do Ministério Público e secretário-adjunto da Comissão de Diversidade da OAB – Subseção Guará (triênio 2022/2024).

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