"Minijulgamento" criminal

Casos de legítima defesa passam por "audiência de justificativa" nos EUA

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4 de agosto de 2022, 10h31

Juízes e promotores de Utah (Estados Unidos) protestam contra uma lei nova e controvertida sobre legítima defesa, que criou uma "audiência de justificativa" em antecipação a julgamentos criminais — um tipo extra e peculiar de audiência preliminar.

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"Minijulgamento" levantou controvérsias nos Estados Unidos

O objetivo da "audiência de justificativa" é decidir se a alegação de legítima defesa, reclamada pelo réu em caso de crime, é ou não justificada, e, então, se a ação penal deve prosseguir ou ser trancada.

A defesa, porém, só tem de fazer a alegação, sem a obrigação de constituir provas. Se quiser levar o réu a julgamento, cabe ao promotor provar, de forma "clara e convincente", que o caso não é de legítima defesa e que o uso de força não se justifica.

Se não convencer o juiz de que os fatos existentes levam à conclusão "altamente provável" de que o caso não é de legítima defesa, o magistrado será obrigado a trancar a ação e o promotor não poderá voltar a processar o réu pelo mesmo crime, ainda que encontre provas claras e convincentes mais tarde.

Se o caso for a julgamento, o promotor tem de provar "além de qualquer dúvida razoável" — o padrão mais alto de prova — que o réu não agiu em legítima defesa e deve ser condenado pelo crime.

Mas, no julgamento, ele não pode informar o júri que a alegação de legitima defesa foi descartada em uma "audiência de justificativa". O réu, por outro lado, poderá alegar novamente que agiu em legítima defesa de sua vida ou em defesa de outros.

Em Utah (como em outros estados dos EUA), os promotores devem estabelecer "causa provável", como padrão normal de prova em audiências preliminares a julgamentos criminais. Apenas no julgamento é que eles devem apresentar provas "além de qualquer dúvida razoável" para obter a condenação.

Os defensores da nova lei dizem que faz parte de seus objetivos evitar julgamentos desnecessários, que são caros para o réu — normalmente custando de US$ 60 mil a US$ 250 mil (ou bem mais, em casos de alto nível) —, e mostrar que é possível simplificar a Justiça Criminal e  reduzir custos para o Judiciário.

Os opositores, principalmente promotores e alguns juízes, dizem que o que ocorre na prática é justamente o contrário: a nova norma só teria criado um julgamento extra, que seus críticos apelidaram de "minijulgamento", forma de prolongar a tramitação do processo — o que significa mais trabalho e mais custos.

Ademais, tanto a defesa quanto a acusação podem entrar com recurso contra a decisão do juiz na "audiência de justificativa", o que significa mais um julgamento. Vale destacar que só depois da decisão de segundo grau é que o caso poderá ir ou não a julgamento do mérito.

De acordo com a KSL-TV, emissora de televisão de Salt Lake City filiada à NBC, o promotor distrital do condado de Salt Lake, Sim Gill, declarou que alegações de legítima defesa viraram moda no estado para os mais variados tipos de crime:

"Desde homicídios a lesões corporais sérias, assaltos, motins na prisão, uso ilegal de armas, temos de tudo. No momento, temos um caso de uma pessoa que esfaqueou outra, uma pessoa que bateu com uma pedra na cabeça da outra, um homem que deu tiros de advertência, mas uma bala ricocheteou e acertou um jovem, um cidadão que usou spray de pimenta e um taser em manifestantes, um motorista que deu tiros em um caminhão que bateu nele de propósito, mas acertou outro carro, todas alegando legítima defesa e pleiteando 'audiência de justificativa'", disse Gill à KSL-TV.

Um levantamento da emissora encontrou 53 pedidos de audiência de justificativa em Utah nos últimos 12 meses, movidos por um total de 52 réus (sendo que um deles fez dois pedidos). Deles:

  • Sete pedidos foram negados porque se referiam a casos de violência doméstica, aos quais a lei não se aplica;
  • 11 casos foram resolvidos de outra forma, como através de um acordo de admissão de culpa;
  • 22 casos foram decididos a favor da promotoria porque os réus não se qualificavam para uma audiência especial ou porque os promotores apresentaram provas suficientes para levá-los a julgamento;
  • Três dos casos contaram com aceitação do juiz em relação às alegações de legítima defesa dos réus, levando ao trancamento dos respectivos processos;
  • Dez casos ainda estão pendentes.

Em dois desses três casos de aceitação os juízes lamentaram serem obrigados a trancar o processo e deram aos promotores o raro conselho de recorrer contra a decisão deles. Eles pediram ainda à Assembleia Legislativa do estado para rever a nova lei, tendo em vista os problemas que surgiram com a sua aplicação.

O que essa norma fez foi transferir a tradicional responsabilidade do júri  de julgar alegações de legítima defesa para um juiz singular. Com isso, ações penais são extintas sem que o caso sequer seja apresentado ao júri, disseram juízes e promotores consultados pela KSL-TV.

Os promotores reclamam, particularmente, do dever de apresentar provas "claras e convincentes" antes mesmo que o caso seja completamente investigado e que provas importantes sejam produzidas. Para eles, esse cenário cria mais trabalho e um ônus da prova adicional.

Os defensores da lei, por sua vez, argumentam que, se os promotores não conseguem provar que o réu não agiu em legítima defesa de modo claro e convincente em "audiências de justificativa", certamente não serão capazes de provar as acusações além de qualquer dúvida razoável no julgamento.

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