Da impossibilidade de submissão do devedor à dívida de caráter eterno
3 de agosto de 2022, 16h02
Em recente atuação, na defesa de devedores que tiveram seus proventos penhorados em razão de um tribunal haver entendido pela legitimidade da recusa de bens à penhora pelo credor, colaciona-se o fundamento invocado pela corte:
"Outrossim, a recusa de bens à penhora pelo embargado não afronta a boa-fé contratual (artigo 422 do Código Civil) e tampouco a dignidade da pessoa humana, especificamente do idoso (artigo 10 da Lei nº 10.741/03 e artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal), pois, conforme explicitado no v. acórdão recorrido, a penhora em dinheiro tem preferência na ordem de constrição judicial, por força dos ditames do artigo 835, inciso I, e §1º, do Código de Processo Civil. Desse modo, na possibilidade de penhora parcial da remuneração dos devedores, não há necessidade de aceitação de bens à penhora pelo credor".
Nesse contexto, a ratificação da não aceitação de bens à penhora agravou em demasia a situação dos devedores, pois a constrição de seus proventos não será suficiente nem para quitar os encargos acessórios mensais da dívida, de modo a caracterizá-la como uma dívida de caráter eterno, uma vez que o montante principal nunca será solvido, o que se advoga ser incompatível com o nosso ordenamento jurídico, senão vejamos.
Preliminarmente, importa destacar que o procedimento executório existe para garantir ao credor a satisfação do direito material objeto da execução, permitindo a jurisprudência pátria a constrição judicial parcial de verbas de natureza salarial, de forma excepcional, para garantir a satisfação de dívidas de caráter não alimentar, quando observado o princípio da dignidade do devedor e a preservação do mínimo existencial destinado ao custeio da sua subsistência e de sua família.
Igualmente, o ordenamento jurídico também prevê que a execução deve se dar do modo menos gravoso para o devedor [1], devendo a penhora recair sobre o bem que ofereça maior eficácia para a satisfação da obrigação.
Nesse sentido, quando os bens oferecidos à penhora pelo devedor forem mais eficazes para a satisfação do débito, a opção pela penhora de "dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira", em circunstâncias que não se mostrarem suficientes nem para quitar os encargos acessórios, deve ser considerada ocorrência caracterizadora de violação da teoria do "duty to mitigate de loss", eis que seria o caso de sopesar os valores envolvidos (máxima efetividade da tutela satisfativa vs. menor onerosidade da execução, bem como a dignidade da pessoa humana examinada sob os dois prismas, do credor e do devedor).
O "duty to mitigate the loss" consiste no dever do credor de mitigar o seu próprio prejuízo, assim, ao permitir o acúmulo do débito em ad eternum, a ponto de comprometer os proventos dos devedores, viola o credor o aludido dever, tido pela doutrina como um dos conceitos parcelares da boa-fé objetiva.
Desse modo, infere-se que a penhora dos proventos dos devedores contraria a teleologia do que previu a jurisprudência quando assentou a possibilidade de constrição judicial parcial de verbas de natureza salarial, pois objetivava garantir a satisfação integral das dívidas e não a quitação parcial de verbas acessórias que em nada influiriam no montante principal, que vai se protrair no tempo até a morte dos devedores, representando verdadeira redução salarial.
Ademais, o STJ possui relevante fundamentação quanto à ratio decidendi utilizada para a exclusão de pessoa jurídica do Refis pela a aplicação da "tese da parcela mínima", considerando que em tais casos não se está diante de parcelamento ou de moratória, mas de uma remissão, pois o valor do débito jamais será quitado se o valor que está sendo pago pela empresa a título de parcelamento for irrisório, é como se ela não estivesse pagando nada, já que o débito total nunca conseguirá ser quitado.
Segundo essa tese [2], não se pode admitir a existência de débito tributário perene, ou até, absurdamente, que o valor da dívida fiscal aumente, tendo em vista o transcurso de tempo e a irrisoriedade das parcelas pagas.
Com base no exposto, advoga-se que da mesma forma que não se admite o débito tributário perene ou que o valor da dívida fiscal somente venha a aumentar com o tempo em função do pagamento de parcelas irrisórias em Refis, o ordenamento jurídico vigente não tem como admitir a constrição salarial de proventos ad eternum, para funcionar apenas como pagamento parcial de verba acessória de dívida principal que somente crescerá com o tempo, tornando-se impagável, pois, evidentemente, contraria preceitos fundamentais, como a dignidade de pessoa humana, conferindo aos devedores tratamento desumano e constrangedor, os quais terão os seus proventos permanentemente reduzidos, sem, contudo, quitar integralmente a dívida.
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