Opinião

Definitivamente, o INPI tem jeito

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3 de agosto de 2022, 6h03

É até possível que haja autarquias que contem com um corpo tão qualificado de servidores quanto o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Todavia, tais entes são desconhecidos por este autor.

Com exigências altíssimas no certame para a seleção de novos funcionários estatutários, boa parte das universidades — Brasil afora — gostaria de contar com média tão elevada de mestres e doutores em seu corpo.

Para além da titulação formal, no contato cotidiano com essas pessoas humanas (que bem conhecem o conceito de urbanidade administrativa) nota-se que são profundamente vocacionadas para o serviço exercido. A percepção holística é a de que os examinadores e pesquisadores do Instituto amam a instituição em que trabalham e bem entendem sua missão constitucional transformativa e estratégica.

Um recorte de tal excelência pode ser notado pela relativa baixa judicialização dos atos praticados pelo INPI. Mesmo nos casos levados ao Poder Judiciário, não impressiona os percentuais de demandas que resultam na invalidade do ato administrativo impugnado.

Outro sintoma benévolo dos produtos e serviços administrativos da autarquia vinculada ao Ministério da Economia é o rigor com o qual se escrutina os pedidos de patente. Diferentemente de outros escritórios que têm a fama de serem mais generosos do que deveriam com o requisito da atividade inventiva (particularmente o USPTO), o paradigma regular do INPI é o de precatar que pseudas invenções gerem exclusividades e que, a partir delas, se turbe o mercado concorrencial.

Entretanto, não é novidade que a estrutura burocrática do serviço público da Propriedade Industrial está aquém do necessário para que possa funcionar de ótimo modo. Mesmo sob o regime jurídico anterior, a academia[2] e até mesmo os diretores do órgão[3] chamavam a atenção a este fato em memoráveis ensaios sobre a mora estrutural do Departamento Nacional da Propriedade Industrial (DNPI). A atribuição de personalidade jurídica (Lei 5.648/70) e a modificação da primeira letra do acrônimo resultaram em zero mudanças no déficit econômico, estrutural e pessoal do serviço público pertinente.

Longe de Brasília, e sediado na antiga capital, o INPI é conhecido por figurar distante das políticas e das paixões, bem como por decidir técnica e escrupulosamente. Nota-se que a mesma reputação nutre o serviço público oferecido pela Comissão de Valores Mobiliários, outra autarquia fincada no Rio de Janeiro.

Oferecendo (a) a melhor qualidade humana possível, (b) longe da animosidade política fugaz da capital, e (c) não gerando barreiras à entrada com preços públicos caros (o que se cobra é baratíssimo, quiçá barato demais); os não iniciados costumam (d) ficar surpresos ao saber que, além de tudo, tal máquina pública gera superávits constantes. Entretanto, a Autarquia, os servidores e os utentes do sistema da propriedade industrial não têm se beneficiado de tal saúde econômica.

Arrecadado o preço público, não há investimento para a expansão dos quadros, nem para as melhorias informáticas, ou para evitar o funcionamento claudicante do sítio virtual. E tal não é peculiar aos díspares espectros das vertentes políticas ou, tampouco, à aglutinação relevante a um ministério ou outro. Seja na administração de partidos políticos de paletas mais aptas à chancela de práticas reacionárias, conservadoras ou ditas progressistas; figurando o serviço público na vinculação junto ao Ministério do Trabalho, da Indústria ou da Economia; jamais um centro de interesses estatal da Propriedade Industrial foi prioridade da cúpula da polis nacional.

Por sinal, o relatório de "Demonstrações Contábeis e Notas Explicativas" do INPI para o exercício de 2021 confirma a triste realidade de que "[…] do valor total de R$ 1.629.958.623,75 decorrente de superavits financeiros de 2021 e dos últimos exercícios, R$ 1.607.497.217,40 não apresentam liquidez imediata, por inexistência de autorização orçamentária e financeira para sua utilização"[4].

Se o diagnóstico da doença do abandono estrutural (e, derivado de tal moléstia, o afamado acúmulo de processos administrativos não julgados) é antiga, não é por falta de suporte dos (i) Poderes Legislativo ou (ii) Judiciário que o INPI padece.

Com relação ao Poder Legiferante (i.a), desde sua gênese, o Código[5] da Propriedade Industrial de 1996 (Lei 9.279/96) conta com dispositivo apto às reformas necessárias, utilitárias e até voluptuárias de que o tanto INPI precisa. O artigo 239[6] da Lei vigente já autorizara o Poder Executivo a dar os instrumentos necessários para a imperativas vicissitudes do serviço público personalizado. Totalmente infenso à crítica de irresponsabilidade ou prodigalidade, o Poder Legislativo, no mesmo texto, indicou a limitação das rubricas aptas ao prestígio da Instituição: o recurso deveria ser próprio — o que não é o problema da superavitária autarquia.

Como se a prudente e oportuna previsão legal fosse insuficiente, os (i.b) ministros do Tribunal de Contas da União ratificaram o prestígio dos Órgãos do Poder Legislativo com INPI e, na auditoria TC 015.369/2019-6, apontaram a extensão dos danos ao erário pelo descaso da Administração Pública para com a Autarquia. Da autorização não implementada, 23 anos depois, surge uma forte recomendação.

Cerca de dois anos depois, já em 2021, (ii.a) o Poder Judiciário chancelou diagnóstico símile. No histórico, bem fundamentado e correto voto do ministro Dias Toffoli do STF, na ADI 5529[7], ainda que a urgência da reestruturação do INPI tenha saído do capítulo do dispositivo da sentença; permaneceu a admoestação de sua implementação como obiter dictum. A percepção do ministro Toffoli foi a de que não haveria causa sanada quanto à crônica crise da lentidão dos processos administrativos, se a origem de todos esses problemas não fosse enfrentada com maturidade e eficiência. Não obstante, em nova decisão judicial de 2022, as autorizações, recomendações e admoestações foram consolidadas em obrigações específicas.

Candidatíssima à mais relevante produção normativa de propriedade industrial e política púbica deste ano, (ii.b) a sentença da pena da professora mestra Caroline Somesom Tauk é indefectível. Julgando ação civil pública[8] pertinente ao verdadeiro estado de coisas inconstitucional do INPI, a magistrada se atentou à omissão específica da Administração (art. 37, parágrafo 6º, da CRFB) e determinou que a União e o INPI laborem, conjuntamente, em uma solução para o problema. Não foi uma ordem atinente à mera obrigação de meio, mas genuína obrigação de resultado.

Longe de outorgar ordem judicial caracterizada pela mera zetética ou abstração, fixou-se termo, balizas e uma moldura hermenêutica dentro da qual cabe ao ente público máximo e a autarquia federal implementarem as políticas públicas cabíveis. Ou seja, sem que tenha havido violação à necessária separação dos Poderes (artigo 2º, da CRFB), a juíza Caroline Tauk pode ter dado o derradeiro estímulo para que o INPI, tal como nos ensinamentos de Nietzsche[9], se torne o que ele foi fundado para ser.

Desta forma, com (1) as contribuições cotidianas de seus excelentes servidores, sua briosa presidência e direção (com destaque para Claudio Furtado e Reinaldo Paes Barreto); (2) o suporte da sociedade civil, das associações e da genuína Academia; (3) com o prestígio do Poder Legislativo; e (4) com a atenção e cuidado do Poder Judiciário; não quero crer que (5) o alto comando do Poder Executivo discrepará das demais forças políticas e jurídicas do país para, mantendo uma tradição antropofágica, se furtar de empoderar o INPI.

Definitivamente, o INPI tem jeito! Qualquer seriedade em um projeto plurianual de desenvolvimento e emancipação tecnológica para o Brasil, perpassa por (a) um INPI forte, e (b) com seus servidores respeitados, bem treinados, e motivados com subsídios reajustados para que melhor produzam dentro de uma adequada estrutura de trabalho.


[1] Dedico este texto à memória do falecido professor emérito da UFPA doutor Douglas Gabriel Domingues, que tanto contribuiu à teoria crítica do Direito da Propriedade Industrial. Agradeço, ainda, ao professor doutor Raul Murad pela revisão e sugestões ao texto.

[2] FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. O Estatuto do Estabelecimento e a Empresa Mercantil – Sexto Volume. São Paulo: Saraiva, 1962, p. 336.

[3] RODRIGUES, Clovis Costa. Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Editora Peixoto S.A, 1945, p. 310.

[4] INPI. Demonstrações Contábeis e Notas Explicativas. Exercício 2021, 28.01.2022, p. 6 das Notas Explicativas. Disponível em <https://www.gov.br/inpi/pt-br/acesso-a-informacao/demonstracoes-contabeis/arquivos/documentos/demonstracoes-contabeis-2021.pdf >. Acesso em 27.07.2022.

[5] BARBOSA, Pedro Marcos Nunes & BARBOSA, Denis Borges. Código da Propriedade Industrial Conforme os Tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. Denomino tal Lei de Código, pois sua função é mesmo esta, ainda que não tenha seguido os trâmites temporais de um Código. Trata-se da fonte normativa que constitui o sistema legal mais relevante – ainda que não o único – da propriedade industrial no Brasil.

[6] Art. 239. Fica o Poder Executivo autorizado a promover as necessárias transformações no INPI, para assegurar à Autarquia autonomia financeira e administrativa, podendo esta: I – contratar pessoal técnico e administrativo mediante concurso público; II – fixar tabela de salários para os seus funcionários, sujeita à aprovação do Ministério a que estiver vinculado o INPI; e III – dispor sobre a estrutura básica e regimento interno, que serão aprovados pelo Ministério a que estiver vinculado o INPI. Parágrafo único. As despesas resultantes da aplicação deste artigo correrão por conta de recursos próprios do INPI.

[7] STF, Plenário, Min. Dias Toffoli, ADIN 5529, DJ 01.09.2021.

[8] JFRJ, 31ª VFRJ, J. Caroline Somesom Tauk, ACP 509710-55.2021.4.02.5101, J. 12.04.2022.

[9] “Porque tal sou eu, no mais fundo do meu ser e desde o início: alguém que tira, que tira a si, para cima, para o alto, um tirador, criador e tratador, que não em vão, um dia, determinou a si mesmo: "Torna-te quem és!"” NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. 19ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 283.

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