Jurisprudência defensiva e a admissibilidade nos tribunais superiores
3 de agosto de 2022, 18h07
Um campo minado: o célebre predicado dado por Eduardo Ribeiro, então ministro do Superior Tribunal de Justiça, aos recursos de instância especial. Com razão, não são poucas as oportunidades de se perder o acesso às instâncias uniformizadoras do Direito. Desde há muito se debate a jurisprudência defensiva e a conveniência de se furtar o mérito de sua apreciação devido a questões formais.
A exegese da lei processual sempre foi pródiga em identificar hipóteses pelas quais não seria admitido o recurso especial ou o recurso extraordinário. A ratificação do recurso interposto na pendência dos declaratórios, a formulaica e sacramental demonstração do preparo, a famigerada Súmula 7 do STJ, a eterna questão dos feriados locais, o cotejo analítico, que devido à crescente cautela dos advogados contribui para a prolixidade das peças de interposição, a inaplicabilidade do artigo 13 do antigo CPC às instâncias especiais, e até mesmo certa jurisprudência do carimbo borrado, bem registrada no meticuloso trabalho dos processualistas Teresa Alvim e por Bruno Dantas. Todo esse inventário, que receio esteja incompleto, parece dar razão aos espíritos mais céticos, convencendo-os de que sempre será difícil levar as causas à capital federal.
Certas experiências até ganham contornos aparentemente kafkanianos, como a de um REsp interposto no período inicial de digitalização dos processos que subiam ao STJ, e cujos autos físicos, escaneados pelo tribunal inferior, subiram já na versão eletrônica sem a chancela mecânica do protocolo do recurso especial. O recorrente, que não interveio em qualquer ato da digitalização do processo, teve seu recurso inadmitido.
A história recente de nosso direito processual sugere que o tema da jurisprudência defensiva será de continuada intrusão, e, por essa razão, compartilho os lapsos mais comuns, alguns até mais prosaicos, com os quais me deparo na lide dos tribunais superiores.
O primeiro equívoco está em confundir o mérito da causa com o mérito do recurso. Isso porque pode ocorrer de serem distintos. Caso o pedido seja extinto por uma questão processual a questão recursal passa a ser procedimental. Como ensina Fredie Didier Jr., o juízo de admissibilidade da causa passa a ser mérito do recurso. Em um segundo exemplo, no recurso extraído de um pedido de condenatório improcedente pela prescrição o mérito do apelo passa a ser a extinção da pretensão, e não mais a condenação. Certa vez pude ver o litigante levar até o STF, passando pelo STJ, a questão relativa ao direito de indenização, ao passo que desde a instância local o mérito passou a ser ausência de seu interesse de agir.
Outro, é confundir o agravo interno do artigo 1.021 e o agravo em RExt. e em REsp. do artigo 1.042. O primeiro, para a corte local, se destina a realizar o distighishing entre as questões de fato da causa e do paradigma. Acaso bem sucedido, o recurso terá sua admissibilidade apreciada, e somente então, caso inadmitido, será possível manejar o agravo em RExt e em REsp. Trocar um pelo outro é considerado "erro grave" pela jurisprudência do STJ e, não obstante, já testemunhei até mesmo a Fazenda Pública nele incorrer.
O terceiro está em não abrir um tópico preliminar específico para a repercussão geral na peça de interposição do RExt. A previsão regimental deste requisito exala forte odor de jurisprudência defensiva, já que a petição deveria ser apreciada em sua inteireza, tratando-se de mero defeito de formalidade, que não deveria resultar na inadmissibilidade. Mesmo assim, ainda se vê a rejeição de recursos extraordinários carentes desta preliminar.
Também é comum faltar nos recursos a impugnação específica das razões da decisão recorrida. Trata-se de ônus inserido no Código de Processo Civil e de dever de dialeticidade de quem recorre, o qual se desatendido atrapalha o contraditório de quem se defende. Por vezes o recorrente reitera as razões de seu pedido inicial e rebate os argumentos da outra parte, mas passa bem ao largo de se manifestar sobre os específicos fundamentos da decisão impugnada.
Também é preciso cuidado para não incorrer na Súmula a 7 do STJ, já que as cortes superiores exercem função nomofilática do Direito, não se manifestando sobre provas. Verdade que haverá circunstâncias em que as questões de fato estarão soberanamente decididas pelas cortes locais, não havendo como levar a causa adiante. Em uma oportunidade pude ver questão sobre a existência de monopólio de determinada agência ser irremediavelmente levada ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal, ao passo que o segundo grau já havia resolvido o assunto em definitivo.
Mesmo assim, em que pese STF e STJ não possam decidir como aconteceram os fatos, podem as cortes superiores dizer qual o direito que a eles adere e os disciplina. Trata-se da revaloração da prova, que não se confunde com o reexame, este de fato interditado às instâncias superiores. Dada a importância da certificação dos fatos sobre os quais poderão as cortes superiores realizar a subsunção do Direito, o correto prequestionamento é fundamental para que se tenha maiores chances de obter resultado dos recursos especial e extraordinário.
A Constituição diz que STF e STJ julgarão as "causas decididas" pelos órgãos juízos inferiores, extraindo-se daí o prequestionamento como condição de admissibilidade. De DNA autenticamente defensivo, é antiga a jurisprudência segundo a qual o magistrado não está sujeito a apreciar todos os argumentos das partes, ensejadora de verdadeiro empeço à subida dos recursos de instância especial. Ainda na vigência do Código anterior coube a Fredie Didier Jr. o devido temperamento, tendo ele ressalvado que, embora os argumentos da parte vencedora poderiam não ser todos apreciados, o mesmo não deveria acontecer com as teses da parte perdedora. Apesar do advento do Código de Processo vigente, e de seu artigo 489, §1º, IV, que pretendeu solucionar a questão, ainda restam cautelas importantes no prequestionamento. Delas, a que parece passar mais despercebida é a do prequestiomaneto das questões de fato.
Os tribunais superiores decidem de acordo com o quanto estiver circunstanciado pelos demais tribunais em seus acórdãos. Para tanto, as questões de fato têm de estar descritas nas decisões das cortes inferiores, sob pena de não ser possível ao STF e ao STJ realizar a subsunção do Direito ao dado concreto. Por esta razão é necessária atenção no exame da decisão da qual se vai recorrer para fins de aferir se ela encerra tanto a norma tida por violada quanto a representação da moldura fática sobre a qual incidiu o Direito. Faltando esta última, é dever do recorrente embargar para que no acórdão conste a descrição dos fatos que importam à solução da lide.
Longe de encerrar hermetismos, a atuação nas cortes superiores possui relevos próprios que exigem a atenção de quem neles litiga. Como em quase todas as demais áreas do Direito, a cada visita sobre o tema se descobrem novas nuances, e o profissional, aos poucos, vai melhorando seu instrumental jurídico para alcançar o objetivo.
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