Opinião

Crime de sonegação tributária e lavagem de capitais

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2 de agosto de 2022, 21h24

Desde logo, cumpre destacar que o objetivo deste texto não é obviar o óbvio. Contudo, embora exista significativa jurisprudência sobre a incompatibilidade da viabilidade do delito de lavagem de capitais pelo delito de sonegação tributária como crime antecedente, destaca-se que, na dimensão jurisprudencial dos tribunais de piso, tal precedente não só não foi satisfatoriamente recepcionado, como deliberadamente negado sob a pecha da idiossincrasia pessoal e particular de juízes não tão afeitos à legalidade estrita da sua função pública.

Assim, quando falamos em lavagem de capitais fruto de sonegação tributária, importa ressaltar que a conduta de não pagar tributo, por si só, não constitui crime. O contribuinte que declara todos os fatos geradores à repartição fazendária, na periodicidade exigida em lei, cumpre todas as obrigações tributárias acessórias e tem escrita contábil regular, mas que por algum motivo deixou de pagar os tributos, não comete crime. A inadimplência não se confunde com sonegação.

O crime contra a ordem tributária, salvo o delito de apropriação indébita, pressupõe, além do simples inadimplemento, alguma forma de fraude aplicada à dinâmica do efetivo pagamento dos tributos devidos, que poderá está consubstanciada na omissão de alguma declaração, na falsificação material ou ideológica de documentos, etc. O tipo objetivo da lavagem exige, além do simples inadimplemento total ou parcial da obrigação tributária, também a fraude. Vez que ausentes um ou outro elemento do tipo objetivo, não há o que falar em sonegação.

Quando tratamos do crime de lavagem de capitais, importa ressaltar que este não possui autonomia processual — o delito de lavagem exige, para a sua efetiva tipicidade objetiva, a existência de um crime anterior que tenha sido processualmente demonstrado, ou seja, somente podemos falar em lavagem de capitais quando o crime anterior goze de uma sentença penal condenatória transitado em julgado.

Como bem explica Gamil Foppel, não seria correto, em um Estado democrático de Direito, orientado pela garantia das liberdades individuais, que determinado sujeito fosse processado e quiçá condenado por lavagem diante da possibilidade de que os fatos que os possíveis crimes antecedentes que ensejaram a imputação sejam reconhecidos como inexistentes ou atípicos.

Sendo necessária a sentença penal condenatória transitada em julgado para o efeito juízo de tipicidade do delito de lavagem, questiona-se: é possível a lavagem de capitais cujo delito antecedente tenha sido o crime de sonegação tributária?

Para responder a tal questionamento, imperioso retornarmos à Exposição de Motivos n° 692/MJ/1996, que versa sobre a lei 9.613/96, que diz:

"34. a lavagem de dinheiro tem como característica a introdução, na economia, de bens, direitos ou valores oriundos de atividade ilícita e que representaram, no momento de seu resultado, um aumento do patrimônio do agente."

Conforme Bittencourt, a lei 9.613/96 não inclui, nos crimes antecedentes, aqueles delitos que não representam agregação ao patrimônio do agente, de novos bens, direitos ou valores, como é o caso da sonegação tributária. Neste, o núcleo do tipo objetivo constitui-se tão somente na conduta de deixar de satisfazer obrigação fiscal. Não há, na conduta, aumento de patrimônio com a agregação dos valores da lavagem. Há, na verdade, manutenção do patrimônio decorrente do não pagamento da obrigação fiscal.

Além do mais, tal entendimento verifica-se à simples leitura do artigo 1° da lei de lavagem, onde exige-se que os bens, direitos ou valores sejam provenientes, direta ou indiretamente de infração penal.

Os bens, direitos ou valores de procedência ilícita devem (necessariamente) ter origem criminosa. Os crimes fiscais se configuram não porque o dinheiro vem de prática criminosa, mas porque o agente, tendo dinheiro oriundo da sua atividade produtiva, legal, omite-se ou não a realiza. Assim, o objeto da "lavagem" não é proveniente, direta, nem indiretamente de infração penal.

Desta forma, levando em consideração que o objetivo da lavagem é tornar lícito o valor ilícito, quando tais valores lavados fossem integrados ao capital lícito do agente e, dessa forma, fosse tributado; não ocorreria de o Estado se tornar sócio do crime, levando parte daqueles proventos ilícitos?

Se o dinheiro foi obtido com origem lícita, como é o caso da eventual atividade produtiva do agente, ele não se transforma em um dinheiro ilícito porque pretende-se sonegar impostos. O fato é que o elemento subjetivo do sujeito não está em direção ao tipo objetivo do delito de lavagem (ocultar/dissimular origem ilícita), mas sim na mera sonegação de impostos.

Desta forma, por maiores esforços que possam ser despendidos quando a pretensão de adequação do delito de sonegação como crime antecedente da lavagem de capitais, este não pode (logicamente) ser configurado, vez que a origem não era ilícita e o elemento subjetivo da conduta terem ido em sentido diverso do exigido pela legalidade estrita do tipo penal objetivo.

 


Referências:

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Crime de Lavagem de Bens, Direitos ou Valores: Breve Estudo da Tipicidade. Direito Penal Econômico, pág. 61.

JUNIOR, José Paulo Baltazar. Crimes Federais, pág. 797.

HIRECHE, Gamil Föppel El. Conjur, Aspectos processuais da relação entre lavagem de dinheiro e crime antecedente.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, pág. 444.

Exposição de Motivos da Lei nº 9.613, em 18/12/1996.

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