Opinião

SAF é o dínamo de transição cultural do futebol brasileiro

Autor

  • Italo Godinho

    é pós-graduado em História da Cidade do Rio de Janeiro pela Faculdade Metropolitana São Carlos (Famesc) jornalista e assessor jurídico da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ).

2 de agosto de 2022, 15h07

Acredita-se que uma das primeiras referências históricas ao futebol esteja no ato 1, cena 4, da peça "King Lear", de Shakespeare. No argumento, o conde de Kent, após afligir Oswald, assistente de Goneril, dá-lhe um pontapé, chamando-o cinicamente de "jogador de futebol" [1]. Mais do que nunca, o futebol "é a coisa mais importante dentre as menos importantes", como disse Arrigo Sacchi [2], e a promulgação da lei federal nº 14.193/2021, popularmente conhecida como Lei da SAF, pôs essa ideia em evidência.

Embora recente, a lei da SAF já é realidade palpitante: há novos projetos que examinar e também novos agentes econômicos com significativa capacidade financeira, os quais, em período recente, deixaram o mercado nacional em ebulição. É verdade que muitos enxergam na Sociedade Anônima do Futebol o motor que irá aquecer a indústria do esporte e do entretenimento futebolístico no Brasil [3]. No entanto, mergulham numa cascata de erros os que acreditam em ilusões virginais. Ora, a SAF não é a bala de prata do futebol brasileiro; sem embargo, representa o dínamo de transição cultural do nosso esporte.

Porém, o que torna a Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021, diferente da legislação anterior? Sabe-se que a norma em questão disciplina mecanismos de governança, controle e transparência, mas não só. A Lei instituiu meios próprios de financiamento da atividade futebolística ao conceber instrumentos (1) para a captação de recursos e (2) para o tratamento dos passivos trabalhistas e tributários. O primeiro, graças à "debênture-fut" [4], prevista no artigo 26 da lei supracitada; e o segundo, por meio do Regime Centralizado de Execuções, previsto no artigo 14 usque ad artigo 24 da mesma lei.

Posto que não esteja livre de apuros, a migração do modelo associativo para uma estrutura de mercado [5] do tipo empresarial preservaria o clube de influxos políticos que, em certas agremiações, beiram a delinquência [6]. Mais estabilidade ensejaria um ecossistema equilibrado para executar planejamentos de médio e longo prazo — coisa rara no cenário atual.

Uma das características que merece destaque é a responsabilidade dos sócios e acionistas que ficará limitada ao preço de emissão das ações subscritas — ou adquiridas — no mercado de capitais. A novidade de feição capitalista exige, doravante, comprometimento permanente dos gestores de clubes (CEO) que ficam, sob pena de escrutínio posterior, obrigados a perfilhar comportamento não só ético, mas também eficaz. Dessa forma, nos clubes que aderirem voluntariamente à SAF, profissionais liberais que inda militam no futebol darão lugar a executivos. O tempo dirá se o desenvolvimento apoiado nas técnicas de governança e no aprumo sustentável de despesas suplantará a velha praxe.

A associação civil, dedicada ao fomento do esporte na posição de sócia minoritária, será a guardiã dos interesses do torcedor e dos princípios que presidiram a operação econômica. É salutar que haja, então, cláusulas assecuratórias suficientemente capazes de proteger a identidade do clube e de preservar, tanto quanto possível, seus elementos visuais e o cunho histórico, sob pena de converter o futebol brasileiro em safári para exploração de milionários ociosos [7].

Muitas vezes tomamos conhecimento de clubes com dificuldades no fluxo de caixa, motivo pelo qual seus ativos circulantes são desordenadamente transferidos a credores, visando à satisfação de obrigações de curto prazo. Sem liquidez corrente, os clubes apelam a empréstimos draconianos, penhorando a juros altos o futuro da instituição que, por isto, sujeita-se a recursos de maquiagem contábil em conselhos fiscais de quando em quando. Como se vê, trata-se de um círculo vicioso que desmoraliza a saúde administrativa de qualquer organização.

Endividamento crônico, rixa política e ineficiência administrativa empurraram grandes times à Série B. Não sem motivos, a segunda divisão do Campeonato Brasileiro de futebol conta com seis campeões nacionais pela primeira vez na história. Ao cotejar o faturamento e o endividamento desses clubes, chega-se a uma conclusão sem-par: a maioria permanece estrangulada por dívidas e vitimada por uma incompetência criminosa. Deduz-se que, apesar da realidade diferente de cada qual, a enfermidade é uma só… gestões aventureiras e populistas que levam clubes à bancarrota, ou os entregam a mais absoluta mediocridade sem qualquer apuração de responsabilidade ulterior.

Assim entendida, a Lei da SAF é uma esperança para times esgotados que, carentes de recursos, cogitam reclamar os aceleradores de tratamento de passivo contidos na lei. Esse movimento que ocorre há muito no mundo inteiro, ensejando modelos atrativos de investimento, enfim colocou o Brasil na rota dos grandes negócios desportivos, já que, além do experimento cultural, a SAF induz a transformação dos clubes sem promover descontinuidade ou quebra das atividades comerciais desenvolvidas.

Convém, entretanto, buscar a justa medida para não sucumbir a truques ilusórios. Entre a falta e o excesso, entre a covardia e a temeridade, entre a avareza e a prodigalidade está o meio, que, para o início desta excursão, já é bastante. Para nossa gente, nunca será demais repetir que, antes de tudo, é necessário saber que em futebol também se erra… e às vezes se erra feio. Eis o ponto mais difícil.

 


[1] Oswald: "I’ll not be strucken, my lord." / Kent: (tripping him) "Nor tripped neither, you base football player?" SHAKESPEARE, William. The Tragedy of King Lear. Edited by Barbara A. Mowat and Paul Werstine. Washington: Folger Shakespeare Library, s.d. p. 47.

[2] O "Mágico de Milão" que, dentre outras proezas, foi vice-campeão mundial à frente da Itália na Copa do Mundo Fifa de 1994.

[3] Conforme relatório proposto pela CBF, o futebol movimenta aproximadamente R$ 52,9 bilhões na economia do país, o que corresponde a 0,72% do total do PIB brasileiro, dos quais R$ 37,8 milhões são de efeitos indiretos. Disponível em: https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/index/cbf-apresenta-relatorio-sobre-papel-do-futebol-na-economia-do-brasil.

[4] Discute-se, ademais, a possibilidade de se compor um fundo de investimento de torcedores, com o objetivo de obter ganhos financeiros a partir da aplicação em títulos e valores mobiliários.

[5] Já que a SAF tenciona explorar uma atividade econômica de forma organizada, tendo em conta o lucro.

[6] Fervilham no Brasil associações esportivas politicamente fragmentadas, que fazem do consenso um fenômeno insólito. A pulverização dessas facções alimenta disfunções administrativas, resultando em disputas sem qualquer propósito.

[7] A defesa do patrimônio imaterial dos clubes será protegida pela participação obrigatória da pessoa jurídica original sem fins lucrativos na composição societária, a propósito de tutelar o vínculo afetivo entre clube e torcida.

Autores

  • é bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, MBA em Finanças e Controladoria pela Universidade de São Paulo, pós-graduando em História da Cidade do Rio de Janeiro pela Faculdade Metropolitana São Carlos e coordenador de contratos e convênios do Instituto Rio Metrópole.

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