Direito da Insolvência

Limites da tutela de urgência na mediação antecedente à recuperação judicial

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2 de agosto de 2022, 21h45

Introdução
A Lei 14.112/2020 introduziu à Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei 11.101/2005) a "Seção II-A – Das Conciliações e das Mediações Antecedentes ou Incidentais aos Processos de Recuperação Judicial". Por meio dos artigos 20-A a 20-D, a Lei 11.101/2005 agora regula expressamente a adoção de métodos autocompositivos de solução de controvérsias para incrementar o sistema recuperacional.

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A regulamentação da mediação e da conciliação no contexto da recuperação judicial vem associada ao ímpeto legislativo de concretizar os meios alternativos de solução de controvérsias, estampados no inciso V do artigo 139 do Código de Processo Civil. Assim como o legislador processualista de 2015 buscou induzir os juízes a "promover, a qualquer tempo, a autocomposição", desta vez tenta o legislador falimentar estabelecer essa sistemática à Lei 11.101/2005, na tentativa de maximizar a efetividade do sistema recuperacional brasileiro [1].

A crise global da atividade empresária tornou necessária a aproximação entre os agentes financeiros e os empresários, a fim de que as controvérsias diretamente ligadas ao mercado de crédito e à crise empresarial tivessem uma solução adequada. A negociação amigável entre os diversos agentes do mercado com vistas à solução não litigiosa da crise empresarial, notadamente nas hipóteses em que ela for pontual e transitória, poderia permitir a superação de eventual controvérsia sem a distribuição de uma recuperação judicial e evitaria efeitos adversos a todos [2].

Nesse aspecto, inseriu o art. 20-B a possibilidade de mediações antecedentes ou incidentais nos processos de recuperação judicial entre sócios e acionistas de sociedade em dificuldade, entre concessionárias ou permissionária de serviços públicos e órgãos reguladores ou entes públicos, entre devedor e credores extraconcursais ou em face de créditos submetidos à recuperação judicial.

Como justificativa para permitir a superação da crise e de se estimular a equalização dos débitos, a composição entre os devedores e os credores submetidos à eventual futura recuperação judicial foi incentivada por meio da atribuição, desde que preenchidos os requisitos legais, de faculdade aos devedores de requererem tutela de urgência cautelar, a fim de que sejam suspensas as execuções contra os devedores pelo prazo de até 60 dias.

Os limites da aplicação dessa tutela de urgência, contudo, exigem cautela aos aplicadores. Sua eventual extrapolação poderá não apenas infirmar o processo principal de recuperação como comprometer a legitimidade dos próprios métodos autocompositivos que se procuram incentivar.

O limite da tutela de urgência na mediação: créditos não sujeitos à recuperação judicial
O principal ponto de embate entre os participantes de mediações antecedentes é a extensão dos efeitos da tutela de urgência prevista no §1º do art. 20-B da Lei 11.101/2005 sobre os créditos que não se sujeitariam à eventual recuperação judicial do requerente da mediação.

Com efeito, há que se distinguir, desde já, duas situações. A primeira é aquela em que os credores submetidos à uma eventual e futura recuperação judicial submetem-se à mediação ou a uma negociação coletiva antecedente à recuperação judicial, como prevista a hipótese no artigo 20-B, inciso IV, da Lei 11.101/2005 [3].

Nessa hipótese, apenas, como determina expressamente o §1º do artigo 20-B, será facultada às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais o requerimento para obtenção de tutela de urgência cautelar a fim de sejam suspensas as execuções contra elas propostas pelo prazo de até 60 dias para tentativa de composição.

Situação absolutamente diversa ocorre na hipótese de crédito não sujeito à recuperação judicial. Nesse caso, a mediação não é impedida, nos termos do inciso III do artigo 20-B da Lei 11.101/2005. O credor poderá, por sua livre e espontânea vontade, aceitar mediar ou submeter seus direitos creditórios a uma negociação coletiva via mediação antecedente à recuperação judicial.

Nesse aspecto, é da essência do método autocompositivo a manifestação voluntária de adesão dos interessados. Os créditos não submetidos à recuperação judicial, seja porque celebrados com garantia fiduciária, decorrentes de arrendamento mercantil, compra e venda com reservada de domínio ou compromisso de compra e venda irretratável ou oriundo de contratos de adiantamento de câmbio, pela previsão do artigo 49, §§ 3º e 4º, da Lei 11.101/2005, não podem ser afetados pela mediação antecedente à recuperação judicial a menos que seus titulares aquiesçam com a sujeição do seu crédito ao procedimento de mediação ou de negociação [4].

A discussão da compulsoriedade da mediação, embora afete a própria essência do método como autocompositivo, somente é discutível, pela lei, na específica hipótese de "vigência de estado de calamidade pública, a fim de permitir a continuidade da prestação de serviços essenciais", como estabelece de forma absolutamente restritiva a norma do artigo 20-B, inciso III, da LRE. A norma é expressa ao tratar do estado de calamidade como hipótese excepcional, de maneira que não comportaria uma interpretação extensiva.

A submissão voluntária à mediação ou negociação antecedentes, ademais, não se confunde com os efeitos que poderão ser produzidos por eventual tutela de urgência cautelar sobre os referidos créditos.

Além de redação expressa do dispositivo legal sobre a tutela de urgência somente fazer referência à produção de efeitos aos créditos sujeitos à recuperação, a medida cautelar não pode extrapolar os efeitos que sequer o processo principal produziria[5][6].

Como cautelar, sua finalidade é assegurar a utilidade do processo principal de recuperação judicial. Se nem no processo de recuperação judicial as execuções do referido credor seriam suspensas, a cautelar, que visa a garantia a produção dos efeitos do processo principal, não poderia extrapolar os seus efeitos.

Nesse sentido, não se pode olvidar que a suspensão das execuções movidas contra o devedor mediando nada mais é do que a antecipação dos efeitos do stay period da recuperação judicial (artigo 6º da Lei 11.101/2005). Tanto é assim que o prazo de 60 dias de suspensão (oriundo da mediação) é deduzido do período total de suspensão previsto para os processos de recuperação judicial ou extrajudicial (180 dias), nos termos do art. 20-B, §3º da Lei 11.101/2005.

Se, na superveniência de uma recuperação judicial, o crédito não sujeito pode ser cobrado livremente pelo titular até mesmo durante o período de negociação, o mesmo raciocínio deve ser aplicado à suspensão decorrente da mediação prévia ao pedido de recuperação judicial. Se nem mesmo a tutela principal (stay period na recuperação judicial) teria o condão de suspender a cobrança dos créditos extraconcursais, muito menos poderá a medida cautelar destinada a antecipar os efeitos ou a garantir a utilidade deste período de proteção[7][8].

Certamente, pela sua relevância, a matéria é merecedora de maior atenção pela doutrina especializada, pois a proliferação de medidas de suspensões de execuções de créditos não sujeitos à recuperação judicial, além de se mostrar contra legem, na prática, pode inutilizar a contratação de garantias fiduciárias e de modalidades contratuais que, por expressa disposição legal, não se submeteriam à novação coletiva. Os efeitos para o mercado de crédito podem ser catastróficos, pelo que pertinente e necessário o aprofundamento do tema [9].

Conclusão
Com a reforma promovida pela Lei 14.112/2020, a Lei 11.101/2005 passou a autorizar a mediação antecedente à recuperação judicial como alternativa para o devedor que pretender se utilizar deste procedimento para organizar e preparar o seu pedido recuperatório (artigo 20-B, inciso IV). Se fundamentada no inciso IV, a mediação terá como escopo a preparação para a futura recuperação judicial do devedor mediando, que se valerá da mediação como instrumento para viabilizar ou para evitar a recuperação judicial.

Para esses casos, a lei autoriza o Poder Judiciário a conceder medida cautelar consistente na suspensão, por 60 dias, das execuções movidas contra o devedor. O intuito do legislador é impedir a expropriação do patrimônio do devedor durante o período em que este se organiza e se prepara para a distribuição da recuperação judicial, tratando-se de medida de cunho meramente preparatório — tanto que, nos termos do artigo 20-B, §3º, sobrevinda a recuperação judicial, o stay period será descontado do prazo pelo qual as execuções ficaram suspensas durante a mediação preparatória.

Dessa forma, portanto, apenas os credores que se sujeitariam à recuperação judicial podem ser afetados pela suspensão das execuções promovida no âmbito da mediação preparatória. Afinal, a medida cautelar não pode extrapolar os limites da tutela principal que visa a acautelar. Assim, os créditos que não seriam afetados pelo processamento da recuperação judicial, como são aqueles indicados no artigo 49, §§ 3º e 4º, da Lei 11.101/2005, tampouco podem ser atingidos pela suspensão fundamentada no §1º do artigo 20-B da Lei de Insolvência.

 


[1] Embora não acredite na efetividade dos meios alternativos de solução de controvérsias no contexto da recuperação judicial, Fábio Ulhoa Coelho reconhece que "a mediação é a grande aposta da Reforma de 2020 para a redução da quantidade de processos de recuperação judicial, a eliminação de conflitos parciais (com alguns credores) ou paralelos (questões societárias, por exemplo) e o aumento do apoio dos credores ao plano do devedor". (Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 95)

[2] Sobre os benefícios que a mediação pode trazer ao sistema recuperacional, vide: VASCONCELOS, Ronaldo; HANESAKA, Thais D'Angelo da Silva; CARNAÚBA, César Augusto Martins. Mediação na recuperação judicial: paralelos com a evolução estrangeira. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 16, n. 62, p. 45-81, jul./set. 2019.

[3] O dispositivo autoriza a mediação antecedente à recuperação judicial "na hipótese de haver créditos extraconcursais contra empresas em recuperação judicial durante período de vigência de estado de calamidade pública, a fim de permitir a continuidade da prestação de serviços essenciais".

[4] Tanto que já se pôde defender esta posição anteriormente:

"[p]ressuposto da Lei é que, na iminência de eventual pedido de recuperação judicial, a qual poderia suspender todas as execuções em face do devedor, este deveria poder valer-se da conciliação e da mediação para tentar negociar com seus credores sem que houvesse a constrição sobre ativos que pudessem comprometer seu futuro plano de recuperação. Nesse sentido, a interpretação do dispositivo legal deve limitar à suspensão das execuções pelo prazo de 60 dias apenas para os créditos que poderiam estar sujeitos à recuperação judicial posterior. Créditos não sujeitos à recuperação judicial, nos termos do art. 49, §3º e 4º, não poderão ter as medidas constritivas suspensas […]" (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 153)

[5] Nesse sentido já se posicionou a Col. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Na ocasião, analisou-se a possibilidade de uma tutela cautelar requerida em caráter antecedente à recuperação judicial antecipar os efeitos do stay period, com a suspensão de medidas de cobrança em detrimento da requerente. O colegiado afastou a pretensão antecipatória da requerente. Vide: agravo de instrumento nº 2150944-48.2021.8.26.0000, Des. Rel. Fortes Barbosa, j. 19.08.2021).

[6] Igualmente, o Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central da Comarca de São Paulo, ao analisar pedido do “Grupo Máquina de Vendas”, consignou que “a tutela de proteção pretendida pelo Grupo Requerente é mais ampla que a proteção advinda de eventual processamento de pedido de recuperação judicial […]”, o que, segundo se decidiu, não pode ser decidido em antecipação aos efeitos do processo principal. Vide: processos nº 1026309-37.2020.8.26.0100 e 2070524-90.2020.8.26.0000.

[7] Nesse sentido, vide: CUEVA, Ricardo Villas Bôas, Sistemas de Pré-Insolvência Empresarial Mediação e Conciliação Antecedentes na Lei n. 14.112/2020, in “Recuperação de Empresas e Falência: Diálogos entre a Doutrina e a Jurisprudência”, Coord. Luiz Felipe Salomão, Flávio Tartuce e Daniel Carnio, Atlas, São Paulo,2021, p.204; Geraldo Fonseca, Reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência Comentada e Comparada, Forense, Rio de Janeiro, 2021, p. 28.

[8] Como já pudemos defender, “[o]utra discussão se relaciona com os créditos passíveis de suspensão. Apensar de ser possível a conciliação e mediação com créditos não sujeitos à recuperação judicial, fato que, como já se disse, sempre foi possível mesmo antes de promulgada a Lei nº 14.112/2020, é importante que a norma do §1º do art. 20-B seja interpretada à luz da sistemática da LRE. Aqui não se percebe sequer omissão a justificar uma analogia ou outros meios de integração à Lei. A interpretação há de ser conjugada como dispositivo nos §§ 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º do art. 49, e no art. 6º, §7º-A, de maneira que só se suspendem as medidas constritivas que recaiam sobre bens de capital essenciais à empresa devedora, a exemplo de como se aplica o stay period para os processos de recuperação judicial extrajudicial.” (BRAGANÇA, Gabriel José de Orleans. GUERRERO, Luis Fernando. O novo instituto da negociação prévia, in Reforma da Lei de Recuperação e Falência – Lei 14.112/2020. Coord. Ronaldo Vasconcelos, Fernanda Neves Piva, Gabriel José de Orleans e Bragança, Thais D’Angelo Hanesaka e Thomaz Luiz Sant’Ana, p. 352).

[9] Nesse sentido: “[c]om efeito, a tutela cautelar do procedimento de conciliação ou mediação é medida excepcional. De outra forma, abre-se perigosa porteira para a suspensão geral e irrestrita, o que pode colocar os agentes econômicos na posição defensiva de não pagar para preservar seu caixa. Nessa lógica, o agente “A” não paga a “B” e a “C”, seus credores, porque é esperado que “D” e “E”, seus devedores, não lhe paguem. Como não há medida jurídica a ser tomada durante a suspensão legal, incorre-se no comportamento oportunista, e perigosíssimo para todo o mercado”. (BRAGANÇA, Gabriel José de Orleans. GUERRERO, Luis Fernando. op. cit., p. 352).

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