Defesa da concorrência

Considerações sobre a organização jurídica dos mercados privados

Autor

  • Alessandro Octaviani

    é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e autor entre outros de Recursos genéticos e desenvolvimento Estatais (em coautoria com Irene Nohara) e Estudos Pareceres e Votos de Direito Econômico (vols. I e II).

2 de agosto de 2022, 9h23

 1. O mercado não é "livre", é constitucionalmente organizado
A Ordem Econômica Constitucional define um desenho expresso para o tecido econômico brasileiro, em que, fundamentalmente, há (i) um espaço exclusivamente para a ação econômica estatal ("atuação do Estado NA economia por absorção", com situações de monopólio), (ii) espaços nos quais convivem cooperativa ou concorrencialmente empreendimentos estatais e privados ("atuação do Estado NA economia por participação") e (iii) uma faixa na qual o Estado atua como agente ordenador, normativo, com poder cogente, ou com capacidade indutora ("atuação do Estado SOBRE a economia por direção ou indução").

ConJur
O mercado, nessa perspectiva, é uma instituição jurídica, que tem por premissas uma série de escolhas, explícitas ou implícitas, sem as quais sua forma e sentido seriam completamente diferentes. Na África do Sul, por exemplo, durante décadas, a instituição jurídica do mercado impedia que negros fossem sujeitos de direito, organizando, de antemão, os vencedores e perdedores do jogo mercantil: de saída, em razão de escolhas político-institucionais, uma parte da população sempre seria perdedora no resultado final. Por outro lado, após o fim do odioso regime de Apartheid, alguns incentivos recompensadores foram institucionalmente montados para aumentar o poder econômico de sociedades empresárias ou grupos econômicos sob o poder de integrantes da população outrora excluída.[1]

No Brasil, a escolha sobre o modelo econômico está, como afirmado, cravada na Constituição, sendo cogente aos aplicadores do direito e aos sujeitos e objetos de direito, e não de livre disposição. A larga faixa de atividade econômica autorizada aos particulares não pode ser exercida de qualquer maneira, sponte propria. Nesse sentido, não existe “livre mercado”, mas sim mercados nos quais a liberdade de atuação é juridicamente condicionada, com referência a um sistema mais amplo e complexo de valores. Por exemplo, o tecido econômico em que se desenvolve a iniciativa econômica privada deve ser concorrencialmente saudável, e não uma terra de ninguém, aberto a qualquer ato bárbaro. Da mesma maneira que não é “liberdade de expressão” defender o fuzilamento de antagonistas políticos, não é “liberdade econômica” vender órgãos humanos ou comportar-se predatoriamente em suas relações contratuais. A concorrência é tomada como uma proteção dos que produzem e também dos que consomem. O processo concorrencial, como um todo, é tomado como objeto da proteção jurídica com fundamento Constitucional. A concorrência nos mercados em que atuam os particulares, assim, em nosso sistema constitucional, deve ser simultaneamente livre e leal.

2. A disciplina jurídica dos mercados: concorrência livre e leal
Como concreção desse programa diretivo da Constituição Federal (que se articula entre os arts. 219, 170, IV, 173, e outros), os mercados financeiros devem funcionar de maneira concorrencialmente sadia, como comandam (i) a Lei nº 4.595/64 (“Lei do Sistema Financeiro Nacional”), em seu artigo 4º, inciso XVIII, c/c o artigo 10, inciso X, c; (ii) a Instrução CVM nº 461/2007, que, ao disciplinar os mercados regulamentados de valores mobiliários, dispõe, em seu artigo 51, § 2º, os requisitos para autorizar sujeito de direito a operar em mercado organizado, determinando que devem ser observados os princípios de igualdade de acesso e de respeito à concorrência; ou (iii) o Decreto-Lei nº 73/66 (recepcionado como a “Lei do Sistema Nacional de Seguros”), nos arts. 5º, I, e 36, a, que disciplinam a concorrência para o setor de seguros. Os mercados mais avançados de telecomunicações ou de dados são juridicamente submetidos à disciplina da livre e leal concorrência. No mercado de criação e comercialização de dados, de algorítimos gerenciadores de big data, a Lei nº 13.709/18 (“Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais”), em seu artigo 1º, inciso VI, define a livre concorrência como fundamento da disciplina da proteção de dados pessoais. A Lei nº 9.472/97 (“Lei Geral das Telecomunicações”), nos arts. 2º., III e V, c.c. art. 3º., II, sistematiza as pautas normativas de concorrência específicas ao setor.

O Código Civil, construindo uma camada de comandos cogentes para os comportamentos contratuais protetivos da disciplina da livre e leal concorrência, (i) em seu artigo 1.011 proíbe condenados por crimes contra as normas de defesa da concorrência, enquanto perdurarem os efeitos da condenação, de administratem sociedades, e, (ii) no artigo 1.147, estabelece ao alienante do estabelecimento obrigação de não concorrer (salvo autorização expressa) com o adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência. A Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Connsumidor), em seu artigo 4º, inciso VI, estabelece a “coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal (…), que possam causar prejuízo ao consumidor” como princípio da Política Nacional de Relações de Consumo.

Esse conjunto protetivo da livre e leal concorrência é hétero-integrado, logo abaixo da Constituição Federal, pela incidência articulada das Leis nº 9.279/96 (“Lei Contra Concorrência Desleal”, “Lei de Propriedade Industrial”) e nº 12.529/11 (“Lei de Proteção e Defesa da Concorrência”, “Lei da Livre Concorrência”).

3. Garantias institucionais para a defesa da livre e leal concorrência
Para dar concretude e eficácia social a esse sistema intensamente protetivo, a Lei nº 12.529/11 organizou um sólido e variado aparato de competências, que inclui órgão administrativo, Poder Judiciário e, a partir da dicção do art. 47, a abetrtura para que os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 do Código do Consumidor (Ministério Público, União, Estados, Municípios e o Distrito Federal, entidades e órgãos da Administração Pública e associações legalmente constituídas), possam ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente de inquérito ou processo administrativo. Como se vê, a tutela jurídica aqui construída busca ser eficaz, e jamais mera “declaração de direitos” que os poderosos do turno podem dar-se ao luxo de ignorar.

Se alguns atos e condutas se tornam ilícitos por serem praticados com o propósito de ferir a concorrência, outros, ainda que praticados sem esse propósito, são igualmente rechaçados pelo ordenamento porque, no seu exercício, poderiam causar (ainda que não causem) danos concorrenciais. A mera existência de tais atos contradiz a arquitetura jurídica do dever-ser, edificada sobre os pilares constitucionais e infraconstitucionais.

 O CADE consolidou jurisprudência nesse sentido, decidindo, entre outros, (i) no Processo Administrativo nº 08012.005882/2008-38, julgado em 23 de maio de 2018, quanto aos “ilícitos por objeto” ser suficiente a “comprovação de sua materialidade para a imputação de infração” e (ii) no Processo Administrativo nº 08012.006923/2002-18, julgado em 20 de fevereiro de 2013, que basta a comprovação objetiva da prática, sendo desnecessário realizar a análise “de estruturas de mercado, definições de mercado relevante ou considerações de poder de mercado dos agentes para que a autoridade possa, prima facie, determinar a presunção de ilicitude da conduta”, levando mesmo julgados divergentes a reconhecer esta como a interpretação consagrada no Tribunal.[2]

Como se percebe, é marcante a relação de implicação e complementariedade com com a Lei nº 9.279/96, que arquiteta um sólido regime de  presunções contra o causador do dano, com alocação probatória muito menor para a vítima, buscando também efeito preventivo e disuasório pelo rol de condutas criminosas elencadas no Capítulo VI.

A  dicção do art. 207, (i) que autoriza o “prejudicado a intentar as ações cíveis que considerar cabíveis na forma do Código de Processo Civil”, (ii) vem reforçada pelas previsões da cláusula geral e expansiva do art. 209 (“fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre produtos e serviços postos no comércio”), agregando-se ao sistema (iii) critérios de presunção a favor da vítima, bem como de descompressão de seu onus probandi, contidos nos arts. 208 e 210 (“a indenização será determinada pelos benefícios que o prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido”; “os lucros cessantes serão determinados pelo critério mais favorável ao prejudicado, dentre os seguintes: I – os benefícios que o prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido; (…) III – a remuneração que o autor da violação teria pago ao titular do direito violado pela concessão de uma licença que lhe permitisse legalmente explorar o bem”), (iv) bem como de concreção de tutelas de urgências e garantias satisfativas de materialidade diversa, previstas, por exemplo, nos parágrafos do art. 209.[3]

Esse sistema probatório a favor da vítima e contra o mal-comportado advém da notória dificuldade da prova de tais danos – principalmente em razão do poder econômico detido pelos causadores de danos, capazes de subir muito o custo/ônus da prova, como há tanto tempo ensinou Gama Cerqueira.[4]

Uma economia como a nossa, em que ocorreu um largo processo de privatização e desnacionalização dos mercados, e na qual a capacidade cognitivo-operativa para lidar com as práticas que surgirão da sangrenta batalha econômica entre os grupos econômicos chineses e norte-americanos é ainda muito reduzida, precisará mobilizar, dentre os vários instrumentos de proteção à nossa população, a disciplina jurídica unificada da livre e leal concorrência.


[1] Para um panorama da disciplina jurídica da economia concorrencial na África do Sul, cf. as reflexões do juiz e professor Dennis Davis (nomeado para a High Court em 1988 e para presidente da Corte de Apelação de Concorrência em 2000): DAVIS, Dennis; e outros. Rights and Constitutionalism. Kenwyn: Juta, 1994, passim.

[2] Voto Conselheiro Relator (0297197). Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. PA nº 08012.002874/2004-14, data de julgamento: 01/02/2017, p. 84. “(…) mesmo tendo posicionamento em sentido contrário, me rendo à jurisprudência consolidada deste tribunal (…) no sentido de considerar a conduta praticada pela Unidas infração contra a ordem econômica, independentemente de sua participação de mercado.”

[3] Verbis: “(…) poderá o juiz, nos autos da própria ação, para evitar dano, irreparável ou de difícil reparação, determinar liminarmente a sustação da violação ou de ato que a enseja, antes da citação do réu, mediante, caso julgue necessário, caução em dinheiro ou garantia fidejussória”; “(…) nos casos de reprodução ou de imitação flagrante de marca registrada, o juiz poderá determinar a apreensão de todas as mercadorias, produtos, objetos, embalagens, etiquetas e outros que contenham a marca falsificada ou imitada.”

[4] CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de Propriedade Intelectual. 3ª ed. Vol. 2. Rio de Janeiro: Revista Forense, 2010, p. 1.129-1.131.  

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    é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP; ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade); e autor, entre outros, de "Recursos genéticos e desenvolvimento", "Estatais" (em coautoria com Irene Nohara), e "Estudos, Pareceres e Votos de Direito Econômico" (vols. I e II).

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