Opinião

Burocracia, privilégios e desigualdade: três faces do Brasil injusto

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1 de agosto de 2022, 16h17

Esclarecedora análise assinada por Rômulo Saraiva, advogado e professor, publicada na Folha de S.Paulo, em 19 de julho 2022, registra que o INSS negou cerca de 4,4 milhões de benefícios — aposentadoria, pensão por morte, auxílio-doença e salário-maternidade — por ano, desde 2019, resultando um incremento médio de 1 milhão, por ano, na comparação com a média de 3,4 milhões do período de 2012 a 2018. Explicou que o aumento vertiginoso teve influência de algumas peculiaridades: agências fechadas em decorrência da pandemia, greve parcial de servidores e a necessidade de arrocho nas contas públicas. Mesmo sendo apenas um ponto, quantificado por números da Previdência Social, mostra suficientemente o crescimento dramático da desigualdade social que castiga nosso país e a ponta do monumental iceberg da pobreza.

No mesmo dia 19 de julho 2022, Ricardo Fagundes da Silveira, auditor fiscal, e Márcio Calvet Neves, advogado tributarista, publicaram aqui na ConJur um artigo seminal denunciando "A captura do Estado pelas corporações empresariais: o caso do Carf", lastreado em ampla pesquisa e números oficiais. O corajoso artigo, em apertado resumo, aponta que: 1) o Brasil é o único país que tem três instâncias administrativas para julgar regularidade de créditos da Receita Federal; 2) a maioria dos países tem apenas uma instância administrativa, apenas cinco países têm duas instâncias; 3) no Brasil, na segunda e terceira instâncias fiscais, metade dos julgadores é indicada por confederações empresariais, peculiaridade inexistente em qualquer outro país; 4) o Brasil é o único país do mundo onde julgadores indicados por confederações empresariais podem derrubar autuações fiscais, em decorrência da mudança contida no artigo 23 da Lei 13.988/2020; 5) nosso processo fiscal administrativo dura em média nove anos, enquanto em 44 países dura em média um ano, alguns com limites legal de três a cinco anos; 6) em grande medida, as disputas do contencioso fiscal têm sido utilizadas como estratégia empresarial para postergação do pagamento de tributos ou inviabilização de seu recolhimento efetivo; 7) quanto maior o valor em disputa, mais favorável tem sido a decisão para os contribuintes, tendência que revela existir influência das corporações empresariais no julgamento da segunda instância; 8) a anomalia do fim do voto de qualidade está se alastrando pelos Estados membros da Federação, inclusive via projeto de lei federal (PLP 17/2022), em tramitação com regime de urgência; e 9) o litígio judicial posterior ao administrativo (em até quatro instâncias) dura, em média, oito anos, que, somados aos nove do processo administrativo, ultrapassam 17 anos, inviabilizando a justiça fiscal.

Ao final, destacam que "A captura, por interesses privados, de um órgão público responsável pelo julgamento de bilhões em tributos é absurda e antirrepublicana. O controle de um órgão como o Carf por uma pequena parcela de grupos empresariais é inaceitável. Que o Congresso corrija essa anomalia e faça valer a justiça fiscal". Em conclusão, sugerem: a) redução do número de instâncias administrativas a duas, no máximo; b) estabelecimento de prazos para julgamento de, no máximo, dois anos; c) criação de varas e turmas especializadas nas instâncias do poder judiciário; d) revisão das alterações legais que restringiram a punibilidade para crimes cometidos contra a Fazenda Pública; e) adoção de regras legais que estabeleçam garantias reais como condição para os litígios tributários, dentre outras.

Os dois quadros acima se completam e se explicam. É o retrato da nossa torta República. De um lado, burocracia legal propositadamente montada para inviabilizar a cobrança eficiente de tributos, com modelos jurídicos lentos e injustos, favorecendo especialmente grandes devedores, que podem navegar por um mar de impunidade durante décadas, patrocinados por excelentes operadores do direito, que exercem suas artes numa zona de conforto financeiramente rendosa. Do outro lado, os números da Previdência Social, espaço dos pobres, indicando tristemente um aumento vergonhoso das negativas de acesso ao sistema legal retributivo de anos de trabalho na construção da riqueza nacional. Um modelo perverso de concentração de riqueza e, por consequência, uma multidão crescente de desassistidos pela Previdência Social.

Por outras palavras, sendo propositadamente repetitivo, dado a gravidade e urgência do problema, agasalhamos um monstruoso paradoxo na nossa burocracia estatal, mais uma tragicomédia tupiniquim, pois, ao tempo em que se beneficia intencionalmente grandes e afortunados devedores tributários, prejudica-se a parcela mais desassistida e necessitada da população. Lamentavelmente, é o próprio Poder Público, capturado por interesses privados poderosos, contribuindo deliberadamente para o aumento da desigualdade social, contrariando objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 3º, III, Constituição): erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais.

Calha, para finalizar, a famosa frase do filósofo José Ortega Y Gasset: "Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não a salvo a mim". Os modelos dos sistemas de julgamentos administrativo fiscal e judicial foram produzidos pelo Parlamento. Esse fato não serve de justificativa para excluir responsabilidade também dos operadores que gravitam em torno do aparato injusto, que sustentaram a construção do artifício com belas teses e defendem a manutenção por interesses particulares e benefícios próprios. É incontornável a necessidade de fomentar e fortalecer uma consciência jurídica nova, em prol de mudanças racionalizadoras e justas, para afastar essa desconformidade que faz o Brasil se manter entre os primeiros do planeta em desigualdade social e injustiças. A elite jurídica nacional tem obrigação histórica de debater esse tema, cobrar mudança dos parlamentares e liderar uma virada para um Brasil muito melhor, inclusive para a própria salvação na história, como ensina e recomenda o prestigiado filósofo.

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